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No século XVII, quando Galileu descobriu
que a Terra girava ao redor do Sol, e não o contrário,
muitas pessoas entraram em estado de choque.
Eles tinham longamente acreditado que a humanidade era o centro do
cosmos, e desenvolveram todo seu sistema de crenças em torno desta ideia.
De repente, este não parecia ser mais o caso.
A teoria de Foucault pode ser esclarecida ao apontarmos que,
em relação à cultura, ele adota uma posição similar à de Galileu.
Desde os tempos de Galileu, quando as pessoas pensavam
em temas como cultura e sociedade, acreditavam que os humanos realmente estavam no centro.
Afinal, foram eles que as criaram.
Foucault nega isso.
Não é o indivíduo, ele argumenta, que dá conta da cultura,
mas a estrutura, o universal.
Algo que em si mesmo é prontamente compreensível
quando alguém percebe que as regras através das quais a humanidade comporta-se
em sua maior parte já haviam sido inventadas muito antes do nascimento deste indivíduo.
E o nome do inventor continua completamente desconhecido para nós.
Pode-se comparar Foucault à Galileu, mas de outra perspectiva
pode-se também comparar Chomsky a Galileu
porque seu trabalho na ciência da linguagem -- a Linguística --
teve influência revolucionária em todo o mundo.
Chomsky trouxe à tona uma grande transformação no campo da Linguística.
De maneira interessante, as teorias de Chomsky apontam em direção oposta
às teorias de Foucault.
Chomsky dá maior primazia ao indivíduo.
No confronto entre estes dois pensadores completamente diferentes,
é salutar lembrarmos que eles trabalham em campos bastante diferentes.
Foucault pesquisa a Cultura; Chomsky é um pesquisador da Linguagem.
Em outras palavras, o interesse de Foucault reside na história da linguagem científica.
Enquanto os interesses de Chomsky residem sobre o nosso uso diário da linguagem.
É interessante, e talvez não por coincidência,
que o debate entre estes dois pensadores torna-se realmente emocionante
na segunda metade, quando começam a discutir política.
Ainda acredito que é bom este debate ser precedido de uma parte teórica,
pois em qualquer discussão sobre filosofia e sociedade,
o que importa não é o ponto de vista político eventualmente adotado por certos pensadores,
mas as bases dos argumentos pelos quais eles o fazem.
Pode ser bom notarmos que essa discussão foi realizada
no auditório do Colégio Técnico de Eindhoven.
Uma discussão entre dois filósofos, dois pesquisadores, cujos trabalhos são caracterizados
por uma grande precisão, uma grande riqueza de detalhes e muita clareza.
Além disso, penso ser muito simbólico que o debate tomou lugar em um espaço com muitos vidros
pois o mundo interno - e externo - estão mesclados.
Durante a transmissão, podemos notar o tráfego externo passando:
simbólico de fato, pois a relação entre mundo interno e externo
é central à primeira metade do quarto debate de filósofos
sobre a natureza humana e a sociedade ideal.
Senhoras e senhores,
Bem-vindos ao quarto debate do International Philosophers' Project.
Os debatedores desta noite serão o Sr. Michel Foucalt do College de France
e o Sr. Noam Chomsky do Massachusetts Institute of Technology.
Ambos os filósofos têm pontos em comum e pontos de diferença.
Talvez a melhor maneira de compararmos estes dois filósofos
seria de os vermos como escavadores de montanhas trabalhando em lados opostos
da mesma montanha com ferramentas diferentes, sem sequer saberem
se estão trabalhando um em direção ao outro.
Todo aprendizado concernente ao homem,
variando entre a história, a linguística e a psicologia,
enfrenta a questão: se, em última instância,
nós somos o produto de todos os tipos de fatores externos
ou se, apesar de nossas diferenças, nós teríamos algo que poderíamos chamar de
uma natureza comum pela qual nós podemos chamarmos uns aos outros
de seres humanos.
Então minha primeira pergunta é para o Sr. Chomsky,
porque o Sr. Chomsky emprega com frequência o conceito de natureza humana,
no âmbito da qual você inclusive usa termos como "ideias inatas" e "estruturas inatas".
Quais argumentos você pode derivar da Linguística
de maneira a oferecer uma posição central a essa noção de natureza humana?
Bom, deixe-me começar de uma maneira um pouco técnica.
Uma pessoa interessada em estudar a linguagem
enfrenta um problema empírico claramente definido.
Ele está face a um organismo, um maduro, digamos, um falante adulto,
que de alguma forma adquiriu uma impressionante gama de habilidades,
que o permite, em particular, dizer o que ele quer significar,
entender o que as pessoas falam para ele,
e fazer isso de uma maneira que penso ser apropriado chamar de altamente criativa.
Agora, a pessoa que adquiriu esta intrincada, altamente articulada
e organizada coleção de habilidades
-- a coleção de habilidades que chamamos "conhecer uma língua" --
essa pessoa foi exposta a uma certa experiência; ela foi apresentada
durante o curso de sua vida a uma certa quantidade de dados
de experiência direta com a linguagem.
E podemos investigar os dados que estão disponíveis para esta pessoa.
E, ao fazer isso, em princípio
estamos face a um razoavelmente claro e bem delineado problema científico.
A saber, o problema é dar conta da diferença entre
uma quantidade muito pequena de dados, uma pequena e precária quantidade de dados
apresentadas à pessoa, à criança,
e um conhecimento resultante altamente articulado,
bastante sistemático e profundamente organizado que essa pessoa de alguma
forma deriva destes dados. Além disso, e ainda mais notável.
notamos que em uma grande variedade de línguas,
de fato todas que foram seriamente estudadas, existem notáveis limitações nos tipos
de sistemas que emergem dos diferentes tipos de experiência
às quais as pessoas estão expostas.
Bom, só há uma explicação possível,
que devo apresentar de maneira bem esquemática para
para este fenômeno notável, a saber, a suposição de que o próprio indivíduo
contribue um bom tanto,
uma parte esmagadora na verdade
na estrutura esquemática geral e talvez até no conteúdo
específico do conhecimento que ele, em última instância,
deriva desta experiência bastante difusa e limitada.
Ou seja, definindo de maneira menos rigorosa:
a criança deve começar com o conhecimento,
certamente não com o conhecimento de que ele está ouvindo
Inglês ou Holandês ou Francês, ou algo assim,
mas ele começa com o conhecimento de que está ouvindo
uma língua humana de um tipo bastante limitado e explícito,
que permite uma pequena gama de variações.
E é porque ela começa com esse esquematismo bastante
organizado e bastante restritivo que ele está apto
a dar um grande salto a partir de dados difusos
e precários para um conhecimento altamente organizado.
Eu afirmaria, portanto, que este conhecimento instintivo, se quiser, esse
esquematismo que torna possível derivar este conhecimento intrincado e complexo
a partir de dados parciais é um elemento
fundamental da natureza humana.
Então, assumo que em outros domínios da inteligência
humana, em outros domínios da cognição humana
e até de seu comportamento, algo nesse sentido deve ser verdade.
Bem, a coleção desta ***
de esquematismos, princípios inatos de organização,
que guiam nosso comportamento social, intelectual e individual.
É isso que quero dizer quando me refiro ao conceito de natureza humana.
Bom, Sr. Foucault, quando penso em livros seus
como História da loucura e As palavras e as Coisas,
fico com a impressão de que você está trabalhando
em um nível completamente diferente,
com um objetivo e um alvo opostos.
Quando penso na palavra esquematismo
em relação à natureza humana, então você está tentando
trabalhar em diversos períodos, os diversos esquematismos.
O que você acha disso?
Com sua permissão, eu vou responder em Francês porque meu Inglês
é tão ruim que eu ficaria envergonhado de responder em Inglês
É verdade que sou bem cauteloso com essa noção de natureza humana.
E eu não confio pela seguinte razão
Eu acredito que entre os conceitos, entre as noções que nossa ciência pode se servir,
há certamente algumas noções que apresentam um nível diferente de elaboração.
Tomemos a Biologia como exemplo.
No interior do domínio da Biologia há conceitos
que são mais ou menos bem estabelecidos, como o conceito de "reflexo".
Ao mesmo tempo, existem outras noções que são periféricas
e que não possuem papel de organização
dentro da ciência, conceitos que
não são instrumentos de análise e conceitos que tampouco são descritivos.
São noções que, de qualquer sorte,
servem simplesmente para indicar os problemas,
ou então para apontar o domínio do objeto a ser estudado.
Por exemplo, existe uma noção que acredito ser muito importante à história
da Biologia, que é a noção de vida.
Bom, no séculos dezessete e dezoito as pessoas que estudavam a natureza
não se serviam do conceito de vida
Eles classificavam os seres naturais
tanto os vivos quanto os não vivos,
em uma espécie de grande tabela, de grade hierárquica.
Vida era uma noção da qual não se servia, que não tinha necessidade.
Em seguida, no final do século dezoito, certo número de problemas são postos
como por exemplo o problema
da organização interior destes seres, na qual faziam sua classificação.
Além disso, com o progresso do microscópio
nós vimos aparecer todo um quadro de fenômenos que até então não haviam sido percebidos,
e cujos mecanismos e cujo funcionamento ainda não estava claro.
Os progressos da Química fizeram igualmente aparecer problemas concernentes
à relação entre as reações químicas e os processos fisiológicos dos organismos.
E eis que todo um domínio de objetos apareceu. Um domínio de objetos
absolutamente novo para os biólogos, e foi isso que foi chamado de vida.
E vida era uma noção que servia para indicar o campo de objetos e de novos domínios
que a ciência deveria percorrer.
Eu diria, enquanto historiador da ciência, que a noção de vida foi um indicador epistemológico;
Um índice de problemas a serem percorridos.
E eu me pergunto se podemos dizer a mesma coisa sobre a natureza humana.
Foucault está comparando o conceito de natureza humana
defendido por Chomsky, com o conceito de vida tal qual usado
na Biologia e na história dessa ciência.
Ele faz isso porque ele vê o conceito de natureza humana
mais como um indicativo de um programa de pesquisa,
do que uma indicação do potencial de realização da humanidade.
Para ele, "natureza humana" atua como uma lista de compras científica,
e nada mais.
Chomsky está disposto a aceitar isso desde que fique claro que os campos da
da Biologia, Fisiologia e Neurologia não possuem meios
para descrever adequadamente a natureza humana e a capacidade humana para a linguagem.
No começo do debate, o moderador apresenta dificuldades
em manter a interação fluindo entre estes dois falantes.
Isso ocorre, em parte, pelas diferentes línguas que eles falam, mas, mais importante, devido
ao fato de que Chomsky e Foucault habitam mundos de pensamento distintos, ao ponto de
suas ideias deslizarem uma ao lado da outra. No fundo, observa-se o curioso fenômeno
de dois cérebros a pensar simultaneamente, no qual um toma a última afirmação do outro
de modo a elucidar isto em seu próprio sistema de pensamento.
Para Chomsky, o conceito de criatividade tem papel importante
e a parte seguinte do debate será dedicada a este assunto.
Para Chomsky, criatividade é uma característica de todos os seres humanos.
Todos a usam. Pessoas presas no trânsito que inesperadamente
precisam pensar no que fazer em seguida.
O educador que não quer cair em um padrão autoritário de comportamento
e que confrontado a um aluno difícil, precisa inventar um novo comportamento.
Mas, acima de tudo, essa criatividade aplica-se à criança
que aprende uma língua e que, de maneira curiosa aprende a produzir uma nova língua.
Foucault opõe-se a esta ideia. Ele dá ênfase constante
ao denominando "campo epistemológico" no qual a atividade humana tem lugar.
Esse "campo epistemológico, ou "epistême"
é descrito como a totalidade de regras inconscientes
que orientam a totalidade dos diferentes campos do conhecimento.
Foucault também fala em "quadros", ou em "sistemas de elementos",
e no debate também é mencionada a palavra "grade".
Talvez seja interessante falar em uma rede na qual todos os membros
de uma cultura em particular pensam, queiram eles ou não.
É um conjunto de regras às quais o pensamento de todo mundo obedece
e com as quais as pessoas buscam por identidade, coerência, e assim por diante.
Esse sistema não é uma criação dos indivíduos em particular:
ele embasa as regras dos habitos "pensar-e-fazer", que nós chamamos de cultura,
à qual todo indivíduo
está sujeito. Este sistema não é uma coisa ou uma ideia, mas reside entre os dois.
Para Foucault, a história do pensamento não deve ser associada à história das ideias
ou ao desenvolvimento da mente,
pois deve ser considerada como transformações discontínuas
transitando de uma rede para outra.
Essa é uma abordagem diferente da feita por Chomsky,
para quem a criatividade assume papel central. Neste ponto, deparamo-nos
com a deposição do indivíduo feita por Foucault, como ilustrado no exemplo de Galileu.
A filosofia de Foucault é uma filosofia na qual o filósofo
constantemente desaparece de vista.
Pode-se dizer, de maneira paradoxal, que é uma filosofia sem filósofos:
uma ideia a ser generalizada porque o humano é, de acordo com Foucault, bastante ausente
dentro de sua própria cultura. A esse respeito, a reação forte e negativa de Foucault
em direção ao moderador, que mostrou interesse em assuntos privados de sua vida.
Quando Foucault debate, é sobre tudo , menos sobre Foucault.
Essa é uma introdução à seguinte -- bastante detalhada -- parte teórica do debate
que parece focar-se principalmente sobre uma questão:
Em que medida é o indivíduo capaz de descobrir algo novo e,
se assim for, como devemos extrair sentido disso? Esta me parece uma questão relevante,
especialmente se nos lembrarmos que precisamos de novas formas
de comportamento, conhecimento e ciência se quisermos sobreviver juntos neste mundo.
Nós retomamos o debate a partir do ponto em que Foucault explica
porque ele não dá muita atenção
à criatividade dos sujeitos em uma perspectiva histórica.
Na história tradicional da ciência, a criatividade dos sujeitos
foi tida como de máxima importância.
A história da ciência, até recentemente
consistia essencialmente em mostrar como um indivíduo
-- seja ele Newton, Mendel, pouco importa --
havia sido, efetivamente, o criador,
ou o descobridor, acima de tudo,
de uma verdade que que estava lá, inscrita nas coisas e no mundo,
e que ninguém havia descoberto antes.
O postulado que reside, acredito, no fundo da história da ciência tradicional,
é o seguinte:
a verdade está lá para ser conhecida; e que, portanto, o espírito do homem,
por efeito de certo número de inibições
ou de obstáculos, não conseguiu ver esta verdade.
O espírito do homem é feito para ver a verdade
e um obstáculo contingente o impede de vê-la.
Este obstáculo pode ser, de acordo com alguns historiadores,
as condições econômicas e sociais,
pode ser diferentes formas de mentalidade,
ou pode ser a credulidade, os velhos temas, os mitos religiosos,
a moral por exemplo.
O fato é que constituem, assim, os obstáculos,
as cegueiras sobre os olhos daqueles que querem ver.
Mas, por direito, o espírito é feito para ver, para ter acesso à verdade.
Nesta concepção tradicional da história da ciência
por um lado, dá-se toda criatividade ao indivíduo que é, por direito, proprietário da verdade
Ainda assim, um sistema de obstáculos,
que emergem através de todos os tipos de contingência,
irá impedi-lo de capturar, de formular
de construir essa verdade à qual ele tem direito desde o princípio.
Bom, então para mim o problema
que se põe é o inverso,
porque o que se passa quando presenciamos
uma grande transformação científica?
Em uma grande transformação científica,
como o nascimento da Biologia no meio do século XVII
ou o nascimento da filologia no fim do século XVIII e começo do século XIX,
um certo número de obstáculos, um certo número de pressupostos
um certo número de ideias pré-concebidas, de repente, desaparecem.
O que me incomoda é que uma ciência no momento
em que nasce, não somente se livra de um certo número
de obstáculos de obscuridade, como, ao mesmo
tempo, ela suprime um certo tanto de saber
e de conhecimento existentes que ela oculta, que ela esconde.
Como se estivesse sendo aplicada uma grade nova,
que enquanto permite aparecer fenômenos escondidos
esconde conhecimentos adquiridos.
Então uma ciência, seu progresso e aquisição
não é simplesmente obliterar velhos pressupostos
nem queda de obstáculos.
é uma verdadeira grade nova que esconde um certo número de coisas
e faz aparecer novos conhecimentos.
Então, quando eu critico a noção de criatividade,
quero dizer com isso que a verdade não é adquirida
como uma espécie de criação contínua e acumulada,
mas como um jogo de grades que se aplicam umas sobre os outras
e que suprimem velhos conhecimentos.
Eu penso que estamos falando com objetivos um pouco distintos,
dados os diferentes usos do termo criatividade.
Na verdade, devo dizer que meu uso do termo criatividade
é um tanto idiossincrático,
e que, portanto, o ônus recai sobre mim e não sobre você, nesse caso.
Quando eu falo em criatividade, não estou atribuindo
ao conceito a noção de valor que é normal quando falamos sobre criatividade.
Ou seja, quando você fala em criatividade científica,
você está falando, de maneira apropriada, das façanhas de um Newton.
Mas no contexto em que venho falando de criatividade
é um evento humano comum.
Estou falando do tipo de criatividade que qualquer criança demonstra quando
está apta a enfrentar uma nova situação, a descrevê-la de maneira apropriada,
a reagir de maneira apropriada, dizer algo sobre, a pensar sobre isso
de uma maneira própria e assim por diante.
Penso ser apropriado de chamar estes atos de criativos,
mas, claro, sem pensar esses atos como sendo os atos de um Newton.
São níveis mais baixos de criatividade de que estou falando.
Agora, até o ponto em que você diz ser concernente à história da ciência, penso
que é correto, iluminador e particularmente relevante, de fato,
aos tipos de empreendimento que vejo debruçados
diante de nós na Psicologia, Linguística e a Filosofia da Mente.
Ou seja, eu acho que certo assuntos que foram, em suas palavras, reprimidos
ou postos de lados durante os avanços científicos dos últimos séculos.
Mas acho que agora podemos superá-los,
é possível colocar de lados estas limitações e omissões, e trazer
às nossas considerações precisamente os assuntos que animaram uma boa parte do
pensamento e especulação dos séculos dezessete e dezoito,
e de incorporá-los a uma mais vasta e, penso, muito mais profunda
ciência do homem, que dará um papel muito mais completo
-- embora certamente não se espera dar um entendimento completo a estas noções, como
inovação e criatividade, liberdade e produção de novos elementos de
pensamento e comportamento dentro de um sistema de regras ou esquematismo.
Estes são conceitos que eu penso que podemos enfrentar.
Acredito haver contra o que disse o Sr. Chomsky
e a favor do que tentei mostrar:
há muita semelhança; ou seja,
não existem, de fato, criações possíveis, inovações possíveis.
Não podemos, na ordem da linguagem ou do conhecimento
produzir algo novo quando colocamos em jogo
certo número de regras que vão definir a aceitabilidade
ou gramaticalidade destes enunciados,
ou que vão definir na cadeia do saber,
a cientificidade destes enunciados.
Então, podemos dizer
grosso modo, que linguístas antes do Sr. Chomsky insistiram sobretudo
nas regras de construção dos enunciados e menos sobre a inovação
que representam todos os enunciados novos,
ou a audição de um enunciado novo.
Assim, na História da Ciência ou na
História do Pensamento
temos por hábito insistir na criação individual,
e nós tivemos ao longe, deixadas à sombra,
essas espécies de regras comuns, gerais,
que se manifestam obscuramente através de toda descoberta científica
todo avanço científico,
até mesmo toda inovação filosófica.
A regragem não é somente linguística, mas epistemológica,
e que caracteriza o saber contemporâneo.
Bom, acho que, talvez eu possa reagir a estes comentários
dentro de meu próprio framework,
de maneira que talvez joguemos alguma luz nisso.
Como é que estamos aptos a construir qualquer tipo de teoria científica?
Como é que, dado uma quantia de dados, é possível a vários cientistas
até mesmo para os gênios,
após um longo período de tempo, chegarem a
a algum tipo de teoria, ao menos em alguns casos, que é
mais ou menos profunda, mais ou menos empiricamente adequada?
Este é um fato notável e, não fosse o caso de
estes cientistas, incluindo os gênios. Se eles não tivessem construído em suas mentes
de alguma maneira e obviamente inconsciente, uma especificação
do que é uma possível teoria científica
então este salto indutivo certamente seria impossível.
Assim como cada criança não tivesse construído em suas mentes
o conceito de linguagem humana, de maneira bem restritiva,
então o salto indutivo dos dados para o conhecimento da linguagem
seria impossível.
Então, apesar do processo, digamos,
de derivar conhecimento de Física através de dados
é bem mais complexo, bem mais difícil
para um organismo como nós, mais elaborados ao longo do tempo,
requer a intervenção de gênios e assim por diante.
Ainda assim, em certo sentido, a realização
de descobrir a ciência física,
ou biologia, ou o que quiser,
está baseado em algo bastante similar
à realização de uma criança normal
em descobrir a estrutura de sua linguagem.
Ou seja, isso deve ser realizado com base em uma limitação inicial
uma restrição inicial na classe das teorias possíveis.
E o fato de que a ciência converge e progride, isso, por si só
mostra-nos que tais limitações iniciais e estruturas existem.
Ou seja, eu não acho que o progresso científico é uma simples
questão de soma acumulativa de novos conhecimentos
e absorção de teorias e assim por diante.
Prefiro pensar que ele tem esse
padrão entalhado que você descreve:
Esquecer certos problemas e pular para novas teorias.
E transformando o mesmo conhecimento
-Certo. Mas eu acho que se pode
esboçar uma explicação para este fato.
Simplificando grosseiramente, eu realmente não quero dizer literalmente
o que estou para dizer.
É como se, enquanto seres humanos,
um organismo biologicamente dado,
nós temos, em nossas cabeças, para começar,
um certo conjunto de possíveis estruturas intelectuais,
possíveis ciências, ok?
Agora, no feliz evento de que algum aspecto da realidade
aconteça de ter o caráter
de uma destas estruturas em nossa mente,
então nós temos uma ciência.
E é por causa disso
por causa dessa limitação inicial em nossas mentes para um certo tipo de ciência possível.
É precisamente isso que provê a grande riqueza
e criatividade do conhecimento científico.
Ou seja é importante frisar -- e isso tem a ver
com seu ponto sobre limitação e liberdade
-- não fossem por essas limitações
não teríamos o ato criativo de partir de um pouco de conhecimento,
de um pouco de experiência
para uma rica, altamente articulada e complicada ordem de conhecimento.
É precisamente por conta disso que
o progresso da ciência tem esse caráter errático, entalhado
e transformacional que você descreveu.
E isso não quer dizer, necessariamente, que tudo irá recair
no domínio da ciência. É bem o contrário.
Pessoalmente acredito que muitas das coisas que gostaríamos de entender,
e talvez muitas coisas que gostaríamos de entender mais,
como a natureza do homem, ou a natureza de uma sociedade decente,
entre muitas outras coisas,
podem realmente fugir ao escopo de uma possível ciência humana.
Bom, eu acho que temos agora duas perguntas a partir desta afirmação
Uma pergunta é: se você pode concordar, Sr. Foucault
você concorda com essa afirmação de uma combinação de limitação
Não a combinação
Esta não é uma questão de combinação.
A criatividade só é possível a partir de um sistema de regras.
Não é uma mistura de regularidade e de liberdade.
Esta liberdade só pode ser exercitada
a partir de um sistema de regularidade.
Então, o problema que me coloco, e é
onde talvez eu não concorde com o Sr. Chomsky,
é que ele coloca estas regularidades
no interior de algo como o espírito ou a natureza humana.
Eu me pergunto se o sistema de regularidades
e de restrições que tornam um ciência possível
não pode ser encontrado fora da mente humana.
Nas formas sociais, nas relações de produção,
nas lutas de classe.
Mas qual a razão para você falar,
de tempos em tempos, da morte do homem
ou do fim do período do século XIX e XX?
Mas o que isso tem a ver com o que estamos falando?
Eu não sei, porque eu tentei aplicar isso que você disse
à sua noção antropológica. Você já se recusou a falar
sobre sua própria criatividade e liberdade, não é?
Então, eu me pergunto quais as razões psicológicas para isso.
Bom, você pode se perguntar, mas não posso lhe ajudar.
Mas quais são as razões objetivas, em relação à sua concepção de saber,
de conhecimento, de ciência, para recusar a se responder estas perguntas pessoais?
Isso tem a ver com sua concepção de sociedade?
Então, quando há um problema para você responder:
quais são as razões para fazer de um problema uma questão pessoal?
Não, não estou fazendo de um problema uma questão pessoal;
Eu faço de um problema pessoal uma ausência de problema.
Quer dizer, em toda história tradicional do pensamento,
das ideias e da ciência sempre foi colocado
o problema do saber.
"Com qual idade Newton estava maduro para conceber a gravitação universal?"
"Em qual período Cuvier encontrou sua primeira amante
de modo a descobrir os fósseis e a anatomia comparada, etc?"
Eu acredito que estes tipos de análise, que agora simplifico, não são muito interessantes.
Por outro lado, considero ser mais interessante pegar as transformações de um saber
geral no interior do domínio geral da ciência e igualmente em seu domínio vertical
que constitui uma sociedade, uma cultura, uma civilização em um dado momento.
E, quando se exibe o conjunto da transformação nós percebemos
que estes momentos individuais do sábio não são importantes.
Novamente, o último comentário de Foucault sugere que a vida individual
do pesquisador tende a desaparecer de vista.
Mas como explicamos a relação política do homem em sua cultura e
talvez, até como mudar esta cultura e sociedade?
Afinal, alguém pode mostrar na história da ciência e da cultura,
que o input do indivíduo é quase insignificante.
A pergunta 'como eu atuo?' -- a pergunta política - permanece em pé.
No momento, pode-se esclarecer que esta pergunta política,
do ponto de vista de Foucault,
rapidamente desenvolve-se para "Até onde pode a humanidade escapar de sua cultura?"
É importante notar que Foucault não quer se distanciar da política.
Ao contrário, ele afirma: "Eu teria que ficar ideologicamente cego
para não me interessar por aquilo que é o mais substancial à existência humana:
relações econômicas, relações de poder, ou nomes similares".
Portanto, Chomsky e Foucault concordam sobre a importância da questão política.
Também é elucidativo mencionar explicitamente que Chomsky define-se
como anarco-sindicalista.
Em sua opinião, deve-se abolir e destruir as diferentes formas
do capitalismo
de maneira a favorecer a participação
dos trabalhadores em conselhos trabalhistas e afins.
Decentralização, socialização e participação
são palavras-chave no programa político de Chomsky.
Chomsky pode dizer que não vê relação óbvia entre suas visões políticas e científicas,
mas a seguinte declaração de abertura revela que
ele caminha diretamente de suas concepções científicas para a política.
Suas visões científicas e políticas podem não derivar logicamente uma da outra,
mas com certeza caminham na mesma direção.
Deixe-me começar referindo-me a algo que já discutimos,
ou seja, se é correto, como acredito que seja, que um elemento
fundamental à natureza humana
seja a necessidade por trabalho criativo, para a averiguação criativa,
para a livre criação
sem os efeitos arbitrariarmente limitantes das instituições coercivas,
então, depreende-se que uma sociedade decente deve maximizar as possibilidades
para que esta característica humana fundamental para seja realizada.
O que significa tentar superar os elementos de repressão ou opressão
e destruição e coerção que existem em qualquer sociedade existente,
a nossa, por exemplo,
como um resíduo histórico.
Agora, um sistema federado e decentralizado de livres associações
que incorpore tanto as instituições econômicas como sociais,
seria o que me refiro como anarco-sindicalismo;
e parece-me ser uma forma de organização apropriada
para uma sociedade tecnológica avançada,
na qual seres humanos não devem ser forçados
a uma posição de ferramentas, de engrenagens da máquina.
Na qual o impulso criativo que penso ser intrínseco
à natureza humana será de fato capaz de realizar-se de qualquer maneira que deva.
Eu não sei quais sentidos irá.
Em minha caminhada, eu estou muito menos avançado,
menos longe que o Sr. Chomsky.
Ou seja, admito não ser capaz de definir, e tenho menos a oferecer
para propor um modelo de funcionamento social ideal para
nossa sociedade científica e tecnológica.
Em compensação, uma das tarefas que me parecem urgente,
imediata e acima de todas as outras, é a seguinte:
nos temos o hábito, ao menos em nossa sociedade europeia,
de considerar que o poder está localizado nas mãos do governo
e é exercido por um certo número de instituições bastante particulares,
que são a Administração, a Polícia, o Exército.
Sabemos que todas estas instituições são feitas para transmitir ordens,
aplicá-las e punir aqueles que não obedecem.
Mas eu acredito que o poder político é exercido ainda
pelo intermédio de um certo número de instituições que dão a impressão de
nada possuir em comum com o poder político, que dão a impressão de serem independentes,
mas não são.
Sabemos bem que a universidade, e de maneira geral
todo o sistema escolar, em aparência é feita para distribuir este saber.
Sabemos que este aparelho escolar é feito para
manter no poder certa classe social e excluir
dos instrumentos de poder outra classe.
Algo como a psiquiatria, que, aparentemente,
nasce destinada ao bem da humanidade e aos conhecimentos do psiquiatra.
A psiquiatria é também uma maneira de impor
um poder político sobre um grupo social.
A Justiça, igualmente. Parece-me que a tarefa política atual
em uma sociedade como a nossa é de criticar o jogo das instituições
aparentemente mais neutras e mais independentes.
Criticá-las, atacá-las de tal maneira que
a violência política
exercida obscuramente sobre eles
surgisse e que pudéssemos lutar contra elas.
Se procurarmos de todo modo fornecer o perfil e
a fórmula da sociedade futura,
sem haver bem feito uma crítica de todas
as denúncias de violência política que se exercem
em nossa sociedade.
Arriscamos deixá-la se reconstituir,
mesmo através de fórmulas tão nobres e aparentemente tão puras
como esta do anarco-sindicalismo.
Certamente concordo com isso, não só na teoria como na prática.
Ou seja, existem duas tarefas intelectuais
uma, que era a que eu estava discutindo
de tentar criar a visão de uma sociedade futura justa.
Outra tarefa é entender claramente a natureza do poder, da opressão e terror
e destruição em nossa sociedade.
E isto certamente inclui as institituições
que você mencionou,
bem como as instituições centrais de qualquer sociedade industrial.
A saber, as instituições
econômicas, comerciais e financeiras.
Em particular, no período atual,
as grandes corporações multinacionais,
que não estão fisicamente distantes de nós esta noite.
Estas são as instituições básicas de opressão, coerção e regra autocrática
que aparentam ser neutras, afinal, eles afirmam
que estamos sujeitos à democracia de mercado.
Ainda assim, acho que seria uma grande vergonha colocar inteiramente de lado
a tarefa um pouco mais abstrata e filosófica de tentar
esboçar as conexões entre um conceito de natureza humana
que forneça escopo completo
à liberdade, dignidade, criatividade e outras caraterísticas humanas fundamentais,
e relacionar isso à alguma noção de estrutura social
na qual estas propriedades possam ser realizadas
e na qual uma vida humana significativa
poderia tomar lugar.
E de fato, se estamos pensando em uma transformação ou revolução social
apesar do absurdo que seria desenhar em detalhes
o ponto ao qual esperamos atingir,
ainda assim deveríamos saber
algo sobre o lugar onde pensamos ir,
e isso é algo que tal teoria pode nos dizer.
Sim, mas não há aí um perigo?
Se nós dissermos que existe certa natureza humana, e que essa natureza não recebeu
na sociedade atual os direitos e possibilidades que a permitem se realizar.
Foi isso que você disse, acredito.
Sim.
Se admitirmos isso, não arriscamos definir esta natureza humana
--que ao mesmo tempo é ideal e real, essa natureza escondida e reprimida até hoje
--não corremos o risco de defini-la com termos
que emprestamos de nossa sociedade, civilização e cultura?
Eu te dou um exemplo que é um pouco caricatural; o marxismo -- no fim
do século XIX e começo do século XX o marxismo admite que
na sociedade capitalista, o homem não recebeu todas essas possibilidades
de desenvolvimento e de realização,
que a natureza humana esteve efetivamente,
alienada no sistema capitalista.
E o marxismo sonha com uma natureza humana enfim liberta
Sobre esta natureza humana, que modelos os marxistas
do fim do século XIX utilizavam para
concebê-la, para sonhá-la?
É, na realidade, o modelo burguês.
O marxismo considerou que uma sociedade feliz
é uma sociedade que deu lugar por exemplo, a uma sexualidade
do tipo burguês, a uma família do tipo burguês, a uma estética do tipo burguês.
E é tanto assim que foi o que se passou na União Soviética:
uma sociedade na qual o homem realiza enfim sua natureza
Nós reconstituímos uma sociedade ao mesmo tempo real e utópica
que é transposta da sociedade burguesa do século XIX.
De sorte que a noção de natureza humana você mesmo reconheceu
que não sabia muito bem o que era a natureza humana.
Então não corremos o risco de nos induzir ao erro?
Você sabe que Mao Tsé-Tung falou em uma
natureza burguesa e uma natureza proletária
e ele considera que elas não são a mesma coisa?
Bom, você vê, eu penso que no domínio intelectual da ação política,
ou seja o domínio de tentar construir uma visão de uma sociedade justa e livre
com base em alguma noção de natureza humana, enfrentamos o mesmo problema
que enfrentamos em ações políticas imediatas.
Por exemplo, para ser bem concreto, muito de
minha própria atividade realmente tem a ver com a guerra do Vietnã,
e boa parte de minha energia vai para a desobediência civil.
Bom, desobediência civil nos E.U.A.
é uma ação empreendida em face de
consideráveis incertezas sobre seus efeitos.
Por exemplo, ela ameaça a a ordem social
de maneiras pelas quais, alguém pode pode argumentar,
pode-se evocar o fascismo,
que seria uma coisa ruim para a América, Vietnã, Holanda e todo o resto.
Então, há um perigo em empreender estas ações concretas.
Por outro lado há grande perigo em não empreendê-las;
a saber, se não houver empreendimento,
a sociedade da Indo-China será rasgada em pedaços
pelo poder americano.
E em face dessas incertezas deve-se escolher um percurso de ação.
Bom, de maneira similar no domínio intelectual,
uma pessoa está em face das incertezas que você corretamente colocou.
Nosso conceito de natureza humana é certamente limitado, parcial
socialmente condicionado, constrangido por nossos próprios
defeitos de caráter e limitações
da cultura intelectual na qual existimos.
Ainda assim, ao mesmo tempo,
é de importância fundamental que tenhamos alguma direção,
para saber quais objetivos impossíveis
estamos tentando alcançar, se quisermos atingir os objetivos possíveis.
E isso quer dizer que devemos ser corajosos o suficiente
para especular e criar teorias sociais
com base no conhecimento parcial,
enquanto permanecemos bem abertos
à forte possibilidade,
e de fato esmagadora probabilidade de que,
ao menos em alguns aspectos,
estamos bem longe da marca.
Bom, talvez seja interessante aprofundar um pouco este problema da estratégia.
Então, por exemplo, no caso da Holanda nós tivemos algo
como um censo populacional
As pessoas eram obrigadas a responder questões
em um formulário oficial.
Você chamaria de desobediência civil
se alguém se recusasse a preencher os formulários?
Bom,eu seria um pouco cuidadoso sobre isso,
porque, voltando a um ponto importante
levantado pelo Sr. Foucault: uma pessoa
não necessariamente autoriza o Estado a definir o que é legal.
Mas o Estado tem poder para reforçar o que é legal, mas o poder não implica justiça
ou mesmo correção.
Então o Estado pode definir algo como
desobediência civil, e pode estar errado ao fazê-lo.
Por exemplo, nos Estados Unidos o Estado
define como desobediência civil algo como, digamos,
descarrilhar um um trem com munição que está indo para o Vietnã.
E o Estado está errado em definir isto
como desobediência civil, porque é legal, apropriado e deve ser feito.
É apropriado executar ações que irão evitar atos criminosos do Estado.
Assim como é apropriado violar uma determinação legal
de tráfego de modo a evitar um assassinato.
Se eu estivesse parado em um cruzamento
e a luz do semáforo estivesse vermelha,
e eu ultrapassasse a luz vermelha para prevenir
alguém de, digamos, metralhar um grupo de pessoas.
Claro que isso não é violação da lei; é uma ação adequada e apropriada.
Nenhum juíz são o condenaria por tal ação.
De maneira similar, boa parte do que as
as autoridades de Estado definem como desobediência civil
não são realmente desobediência civil.
Na verdade, é comportamento obrigatório, legal, em violação aos comandos do Estado
que podem ou não ser legais.
Então deve-se estar bastante atento ao chamar as coisas de ilegais, eu penso.
Sim, então eu gostaria de lhe fazer uma pergunta.
Quando, nos Estados Unidos, você comete um ato francamente ilegal
Que eu considero ilegal não apenas o Estado
Não; quando o Estado considera ilegal.
Você faz essa ação porque você a considera justa em virtude de uma justiça ideal.
ou você a faz porque considera necessária à guerra de classes?
Novamente, muitas vezes que faço algo que o Estado considera ilegal,
Eu vejo como legal, porque eu vejo o Estado como criminoso.
Mas em algumas instâncias isso não é verdade.
Deixe-me ser bastante concreto sobre isso e mover
da área da guerra de classes para a guerra imperialista,
na qual a situação é um pouco mais fácil e clara.
Tomemos a lei internacional: um instrumento bem fraco, como sabemos, mas ainda assim
incorpora alguns princípios bem interessantes.
Bom, a lei internacional, em diversos aspectos é o instrumento dos poderosos:
ou seja, a lei internacional permite uma gama demasiado ampla
de intervenção armada internacional em suporte das estruturas de poder existentes
que se auto-definem como Estados, e contra os interesses das massas de pessoas
que por acaso estão organizada em oposição aos Estados.
Mas, de fato, a lei internacional não é somente daquele tipo.
E de fato há elementos interessantes da lei internacional
embutidas na Carta das Nações Unidas, que permitem, de fato,
acredito, requer do cidadão uma ação contra seu próprio Estado
de maneira que o Estado será falsamente
considerado como criminal.
Mas, ainda assim, ele está agindo legalmente porque a lei internacional também
proíbe ameaça ou uso de força em assuntos internacionais,
exceto sob algumas circunstâncias bem restritas, das quais
a guerra no Vietnã não faz parte.
O que quer dizer que, no caso particular da Guerra do Vietnã,
que me interessa mais,o Estado americano está agindo
com uma capacidade criminal.
E as pessoas têm o direito de parar criminosos de matar pessoas.
Só porque o criminoso chama de ilegal a sua ação quando você tenta pará-lo
não significa que é ilegal.
Um caso perfeitamente claro disso é o caso presente
dos papéis do Pentágono nos Estados Unidos
que, imagino, você saiba.
Reduzido à sua essência e esquecendo legalismos,
o que está acontecendo é que o Estado está tentando processar
pessoas por exporem seus crimes.
E é isso o que temos.
Então é em nome de uma justiça mais pura que você critica o funcionamento da justiça?
Para mim é importante saber isso porque há,
atualmente na França um debate sobre o problema da Justiça e
sobre a instituição de um tribunal popular.
A propósito da justiça, você conhece bem o problema,
e algumas pessoas, como por exemplo Sartre,
pensam que para fazer a crítica do sistema penal na França
ou para fazer a crítica das práticas policiais,
a maneira como a polícia se conduz,
é necessário fazer um tipo
de tribunal que em nome de uma justiça ideal, uma justiça superior e humana,
condenará as práticas dos juízes franceses ou dos policiais franceses.
E há outro grupo de pessoas, incluindo gente com quem trabalho,
que dizem não, não deve ser assim, porque quando você se refere à justiça ideal
-- que o tribunal deve aplicar --
você se refere, de fato, a certo número de ideias de justiça que foram formadas
em nossa época por certo grupo de indíviduos que são, da maneira direta ou indireta
o produto da sociedade na qual nos encontramos.
Deve-se atacar as práticas da justiça deve-se atacar a polícia,
deve-se atacar as práticas policiais,
mas em termos de guerra, não em termos de justiça.
Você certamente acredita que seu papel na guerra é um papel justo
que você está lutando uma guerra justa
para trazermos o conceito de outro domínio.
Eu acho que isso é importante.
Se você estivesse lutando em uma guerra injusta você não seguiria essa linha de raciocínio.
Eu gostaria de reformular levemente o que você disse.
Não me parece que a diferença esteja legalidade e uma justiça ideal
mas entre legalidade e uma justiça melhor.
Agora, este sistema melhor pode ter seus defeitos, e certamente terá.
Mas comparando um sistema melhor com o existente, sem sermos
confundidos a pensar que nosso sistema melhor
é o sistema ideal, podemos argumentar,
acredito, como segue: o conceito de legalidade
e o conceito de justiça não são idênticos;
mas tampouco são inteiramente distintos.
Enquanto a legalidade incorporar a justiça nesse sentido
de uma justiça melhor, referindo-se a uma
sociedade melhor, então deveríamos seguir e obedecer a lei,
e forçar o Estado a obedecer a lei, e forçar as grandes corporações a obedecer a lei,
e forçar a polícia a obedecer a lei, se tivermos poder para fazê-lo.
Se nestas áreas do sistema legal acontecer de representar não uma justiça melhor,
mas técnicas de opressão
que foram decodificadas em um sistema autocrático particular,
bom, então um ser humano razoável deveria se opor a elas e desconsiderá-las,
ao menos em princípio; ele pode não, por alguma razão, fazê-lo de fato.
Eu gostaria de somente responder toda sua primeira frase;
quando você disse que a guerra que você faz contra a polícia, se não a
considerasse justa, você não a faria.
Então eu vou lhe responder em termos de Espinoza
e dizer que o proletariado não faz a guerra
à classe dirigente porque ele considera esta guerra justa.
O proletariado faz a guerra à classe dirigente
porque, pela primeira vez na história
ele quer tomar o poder.
E é porque ele quer tomar o poder que ele considera esta guerra justa.
É, eu não concordo
Faz-se a guerra para ganhar não porque ela é justa.
Pessoalmente eu não concordo com isso.
Por exemplo, se eu pudesse me convencer que a obtenção do poder pelo proletariado
levaria a Estado policial terrorista, no qual liberdade e dignidade e
relações humanas decentes seriam destruídas,
então eu não quereria que o proletariado tomasse o poder.
De fato a única razão para querer atingir qualquer coisa, acredito, é porque alguém
pensa, certa ou erradamente,
que alguns valores humanos fundamentais serão atingidos
por essa transferência de poder.
Quando o proletariado toma o poder, há a possibilidade desse proletariado
exercer, a respeito da classe que ele superou, um poder violento,
ditatorial e mesmo sangrento.
Não vejo que tipo de objeção
pode ser feita a respeito disso.
Você diria: e se o proletariado
exercer seu poder sangrento, tirânico e injusto
sobre o próprio proletariado?
Eu responderia que isso não poderia acontecer
se o proletariado realmente tivesse tomado o poder,
mas uma classe exterior ao proletariado,
ou um grupo de pessoas no interior do proletariado,
uma burocracia ou o resto da pequena burguesia
tomaram o poder.
Bom, eu não estou nem um pouco satisfeito com essa teoria
da revolução por muitas razões; históricas e outras.
Mas mesmo se a aceitarmos para fins argumentativos,
ainda assim esta teoria está sustentando que é apropriado ao proletariado
tomar o poder e exercê-lo de maneira violenta, sangrenta e injusta, porque
é reivindicado que,
falsamente em minha opinião,
que isso irá levar a uma sociedade mais justa,
na qual o Estado irá perder o vigor,
na qual o proletariado será uma classe universal e assim por diante.
Não fosse essa justificativa adicional, o conceito de ditadura do proletariado,
violenta e sangrenta, será certamente injusta.
Eu por exemplo; eu não sou um pacifista comprometido.
Eu não sustentaria que sob todas as circunstâncias imagináveis
é errado usar a violência
mesmo que o uso da violência seja injusto em alguns sentidos.
Eu acredito que se deve estimar as injustiças relativas.
Mas o uso da violência e a criação de algum grau de injustiça pode somente ser
justificado com base na afirmação e na avaliação -- que devem ser sempre
levadas muito, muito seriamente e com uma boa dose de ceticismo -- que essa
violência está sendo exercida porque um resultado mais justo será atingido.
Se não houver esta base, é de fato totalmente imoral, em minha opinião.
Eu não penso que o ideal da
guerra de classes tenha por meta,
aquela a que se propõe o proletariado;
eu não acredito que
ela seria suficiente para ser ela própria
uma justiça maior.
O que o proletariado irá querer fazer caçando a classe atualmente no poder
e tomando o poder é a supressão, precisamente, de um poder de classe no geral.
Mas essa é a justificativa adicional...
é a justificativa! Não em termos de justiça, mas em termos de poder.
É em termos de justiça; e o é porque o fim que será atingido
é alegado como um fim justo.
Nenhum Leninista, ou o que você quiser
ousaria dizer "Nós, o proletariado, temos o direito de tomar o poder,
e jogar todos os outros em crematórios."
Se esta fosse a consequência da tomada de poder pelo proletariado,
com certeza não seria apropriado.
A ideia é -- e pelas razões que mencionei sou cético sobre -
que um período de ditadura violenta, ou talvez uma ditadura violenta e sangrenta,
é justificada porque significa a submersão e término da opressão de classe,
um fim apropriado para se atingir na vida humana.
Mas me parece que a noção mesma de justiça funciona
no interior de uma sociedade de classes enquanto reivindicação
da classe oprimida e como justificativa do lado do opressor.
Eu não concordo com isso.
E em uma sociedade sem classes, não tenho certeza
se podemos usar esta noção de justiça.
Bom, aqui eu realmente discordo.
Eu acredito que há uma espécie de base absoluta
-- se você pressionar bastante eu terei um problema, porque é algo que não consigo esboçar --
mas uma espécie de base absoluta, ultimamente residindo em qualidades humanas fundamentais.
em termos nos quais está assentada uma noção "real" de justiça.
Acho que é muito apressado caracterizar nossos sistemas de justiça existentes
como meramente sistemas de opressão de classe; eu não acho que eles são isso.
Eu acho que eles incorporam sistemas de opressão de classe
e incorporam elementos de outros tipos de opressão,
mas eles também incorporam uma espécie de tatear em direção aos humanamente verdadeiros
e valiosos conceitos de justiça e decência, e amor, e bondade
e simpatia, assim por diante, que eu penso serem reais.
Bom, eu tenho tempo para responder?
Sim
Quanto? Porque...
Dois minutos?
Eu diria que isso é injusto.
Absolutamente.
Eu não quero responder em tão pouco tempo.
Eu direi simplesmente que não posso me impedir, contrariamente ao que você pensa,
de acreditar que estas noção de natureza humana, esta noção de bondade, de justiça,
de realização do senso humano.
Todas estas são noções e conceitos que foram formulados
no interior de nossa civilização,
em nosso tipo de saber, em nossa forma de filosofia,
e que, por consequência, fazem parte do nosso sistema de classes
e que não podemos, quão lastimável isso pareça, não podemos fazer valer estas noções
para descrever um combate que deveria -- e deve em princípio -
perturbar os próprios fundamentos de nossa sociedade.
Há aí uma extrapolação para a qual eu não encontro uma justificativa histórica.
Bom, acho que podemos começar imediatamente a discussão.
Sr. Chomsky; gostaria de fazer uma pergunta.
Em sua discussão você empregou o vocabulário do proletariado, "nós como proletários";
é a ironia da história que o momento em que jovens intelectuais
vindos das classes média e alta,
chamam a si mesmos de proletários e dizem que devemos nos juntar ao proletariado.
Mas eu não vejo proletários com consciência de classe. E isso é um grande dilema.
Não é verdade em nossa dada sociedade que todos realizam um trabalho útill e produtivo,
ou que garanta satisfação própria -- obviamente isso está longe de ser verdade.
Muitas pessoas são excluídas da possibilidade de trabalho produtivo.
E acho que a revolução, se você quiser, deveria ser em nome de todos os seres humanos;
mas isso deve ser conduzido por certas categorias de seres humanos, e estes serão,
eu acho, os seres humanos que estão realmente envolvidos com o trabalho produtivo da sociedade.
Agora, o que é isso irá diferir, dependendo do tipo de sociedade. Em nossa sociedade,
acho que isso inclui os trabalhadores intelectuais.
Então eu penso que os estudantes revolucionários, se assim quiser, têm um ponto, um ponto parcial:
ou seja, é uma coisa muito importante em uma avançada sociedade industrial
como uma intelligentsia treinada identifica-se.
Se eles serão tecnocratas, ou servos tanto do Estado como do poder privado,
ou, alternativamente, se eles irão se identificar como parte da força de trabalho,
que estão fazendo um trabalho intelectual.
Se for o último caso, então eles podem e devem atuar em um papel decente na revolução social progressiva.
Se for o primeiro caso, então eles são parte da classe de opressores.
Tenho uma pequena pergunta adicional -- ou, melhor, um comentário para você. Que é:
você, com sua corajosa atitude diante da guerra do Vietnã,
como você pode sobreviver em uma instituição como o MIT,
conhecido por aqui como um dos grandes empreiteiros e criadores intelectuais desta guerra?
Existem dois aspectos para isso: um está na pergunta de como o MIT tolera-me,
e a outra questão é como eu tolero o MIT.
Bom, a respeito do MIT tolerar-me, novamente, acho que não se deve ser abertamente esquemático.
É verdade que o MIT é uma grande instituição de pesquisa bélica.
Mas também é verdade que incorpora valores libertários importantes, que são,
penso eu, bastante arraigados na sociedade Americana. Para felicidade do mundo...
Eles não estão arraigados o suficiente para salvar o vietnamitas, mas são profundas o suficiente
para prever desastres ainda maiores. E aqui, penso, deve-se estar um pouco qualificado.
Existe o terror imperial e a agressão, existe a exploração, o racismo,
e muitas coisas desse tipo. Mas há também uma preocupação real, coexistindo com isso,
pelos direitos individuais de um tipo que, por exemplo, estão incorporadas à Carta de Direitos,
que é, de forma alguma, uma expressão da opressão de classe.
É também uma expressão da necessidade de defender o indivíduo contra o poder do Estado.
Agora estas coisas coexistem. Não é tão simples, não é de todo mal ou de todo bom.
E é o balanço particular na qual elas coexistem que faz
um instituto que produz armas de guerra disposto a tolerar,
e em muitos sentidos até a encorajar, para ser bem honesto,
uma pessoa evolvida em desobediência civil contra a guerra.
Agora, como eu tolero o MIT, isso levanta outra questão.
Existem algumas pessoas que argumentam, e eu nunca entendi a lógica disso,
que um radical deve disassociar-se de todas as instituições opressoras.
A lógica deste argumento é que Karl Marx não deveria ter estudado
no Museu Britânico que era o símbolo do mais perverso
imperialismo no mundo, o lugar no qual todos os tesouros que um império havia reunido,
o espólio das colônias, foi todo despejado lá.
Mas acho que Karl Marx estava certo ao estudar no Museu Britânico.
Ele estava certo em usar os recursos e os valores liberais
da civilização que ele estava tentando tentando superar, contra ela.
E acho que o mesmo aplica-se neste caso.
Mas você não teme que sua presença no MIT dê-lhes uma consciência limpa?
Não vejo como, realmente. Quero dizer, acho que minha presença no MIT serve marginalmente,
e espero que, não sei o quanto,
para crescer o ativismo estudantil contra muitas coisas que o MIT apoia, por exemplo.
Senhoras e senhores, acho que este precisa ser o fim do debate.
Sr. Chomsky, Sr. Foucault, agradeço-lhes imensamente pela discussão de longo alcance,
tanto filosófica quanto teórica, bem como as questões políticas.
Agradeço-lhes imensamente em nome da audiência, aqui e em casa.