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INAPPOSITE VISIONS ON HEALTH PRACTICES
Bom dia a todos. Eu gostaria de agradecer, antes de tudo,
ao convite que me foi feito de fazer parte desta mesa de abertura
e, ao mesmo tempo, dizer que é uma alegria poder compartilhar de alguns pensamentos
que me ocorrem em função de experimentações
investidas no sentido da produção de uma nova maneira de existir;
compartilhar esses pensamentos
e acreditando que eles possam contribuir com aquilo que se deseja,
aquilo que se busca no sentido de,
de fato, encontrar um novo modulador,
para não dizer padrão ou modo de saúde,
um novo modulador de saúde
que geralmente e equivocadamente
acredita-se se opor como entidade a uma outra entidade chamada doença.
Nós, antes de tudo, não acreditamos em entidades,
nem no bem nem no mal,
assim como não na saúde e não na doença.
Existem talvez modos saudáveis e modos mórbidos.
Modos saudáveis que antes de tudo coincidem com um modo ativo de viver.
A gente fala em autonomia
e raramente a gente se dá conta que a autonomia depende, de fato,
das forças que nos constituem,
muito mais do que das forças de fora que podem se compor com as nossas forças que nos constituem...
E as forças que nos constituem muitas vezes são desprezadas ou desqualificadas,
feitas função de um campo social, econômico, político, cultural.
Há essencialmente e -- eu quero chamar a atenção para isso
e vocês me perdoem se a minha fala for demasiado provocativa,
mas eu temo não poder evitar isso --
geralmente um modo de vida estabelecido e cultuado ainda por nossas sociedades.
É um modo de vida - que investe no próprio enfraquecimento.
É difícil dizer isso, mas é preciso dizer.
Porque há uma produção inconsciente, num certo sentido;
involuntária, num certo sentido;
de doença pelo próprio modo de viver da sociedade,
pelo próprio modo de viver das pessoas.
Há um descuido essencial,
um descuido essencial da vida.
Um descuido essencial do corpo; um descuido essencial das mentes;
um descuido essencial das relações de sociabilidade
que nós muitas vezes investimos objetivando uma saúde, uma força,
uma potência, uma liberdade, um objetivo a ser alcançado.
A gente sabe que o que gera a doença é coincidente com o que gera o enfraquecimento.
E o que gera o enfraquecimento é o modo de vida que se descuida da maneira como as forças em nós,
como a potência em nós, se efetua através do corpo, se efetua através da linguagem,
se efetua através do pensamento, se efetua através dos afetos.
O modo de vida que nos descontinua de nós mesmos.
O modo de vida que nos corta; que nos separa do que podemos.
Aqui está a primeira doença.
A primeira doença é sempre uma espécie de mau encontro.
Mas pior do que isso, porque os maus encontros a gente não pode evitar.
Mas algo que a gente pode evitar e geralmente não se evita.
Inclusive há uma espécie de cultura que atravessa a sociedade nesse sentido:
o mau uso dos nossos encontros.
O problema geralmente está aqui.
O mau uso daquilo que nos acontece, porque muitas vezes uma situação de doença, uma situação inoportuna,
até de descaso ou de descuido, ou de decomposição ou de ameaça,
de enfraquecimento, ela pode ser uma oportunidade.
Muitas vezes uma situação de doença pode ser uma experimentação.
E o que se chama de doença exatamente?
Quem estabelece a norma do que é doente, do que é saudável?
O professor que me antecedeu aqui enfatizou o aspecto de que
haveria uma espécie de norma científica que, de alguma maneira, veicula uma tendência
que faria com que a gente se desapossasse de nossas mentes e de nossos corpos.
E essa norma incentiva uma educação relacionada com a saúde
que na verdade tem muito mais a ver com uma educação que ensina a obedecer
do que com uma educação que de fato ensinaria a gente se perceber.
Perceber nosso corpo, nossas mentes, nossos modos de relação,
aquilo que se passa por nossa existência, segundo os encontros que fazemos,
segundo a maneira como nós concebemos as condições dos encontros e das misturas
que a vida pratica ao longo da sua existência.
Na verdade, nós sempre vivemos em sociedades, onde há uma divisão
de poderes que estabelecem padrões, impondo a vidas supostamente impotentes que recebem,
que acolhem esses padrões como sendo, inclusive,
sancionadores de uma saúde estabelecida, muitas vezes, nos fazemos cúmplices, então.
E temos, digamos assim, o nosso quinhão na medida mesma em que
aceitamos esses padrões como fortalecedores de nós mesmos.
Mas na verdade essa cumplicidade tem um preço.
Ela, na verdade, nos torna mais dependentes, mais fracos,
na medida mesma em que nós desinvestimos aquilo que há de mais precioso em nós.
As nossas capacidades de criar sentido e de criar valor.
Eis o ponto essencial.
Há uma dicotomia na medida em que se estabelece uma ciência, segundo uma certa forma,
e esta forma científica geralmente não passa de um regime de linguagem, muitas vezes,
é isso que se dá, assim como uma estrutura gramatical,
e opomos isso a um saber popular, místico, religioso.
Rebaixamos esse saber como destituído de verdade.
Quando, na verdade, a própria verdade não tem nada a ver com padrão.
A própria verdade é sempre um sentido que se faz para a vida.
Muitas vezes uma ficção faz muito mais sentido para a vida do que uma suposta verdade científica.
A gente sabe que a doença acontece, os modos mórbidos de viver se estabelecem
sempre que a vida é tornada função de outra coisa.
E sempre que a vida é tornada função de outra coisa,
ela pode eventualmente - inclusive para funcionar enquanto função,
ela deve receber ela própria o seu quinhão - mas, de alguma maneira,
há um "jogar-se fora" fundamental.
Uma produção de doença que é escondida, sob o nome de um sucesso ou de uma vida equilibrada.
Muitas vezes o equilíbrio é de um outro, o equilíbrio é de um sistema,
mas a própria vida entra necessariamente em decadência.
E então há necessariamente obstruções de nós mesmos.
Obstruções do uso dos nossos movimentos.
O que é o corpo? O corpo é uma potência de mover.
E na potência de mover que o corpo é há um uso do movimento.
Um uso do movimento que cria corpo, que cria corpo fora de mim e em mim.
Que faz o meu próprio corpo, segundo o modo de usar o movimento.
Assim como a mente fabrica ideias e pensamentos, faz uso da potência de pensar,
se serve da linguagem, criando sentidos. Sentidos que continuam a potência de pensar.
Assim como os movimentos do corpo que continuam a potência de mover.
Assim como aquilo que acontece ao corpo, segundo o modo como ele usa o movimento,
aquilo que acontece à mente segundo o modo como ela usa o pensamento,
esses efeitos de pensamento e de movimento,
esse conjunto afetivo que nos preenche, nos alimenta, nos envenena,
nos dá alegria ou nos entristece; nos fortalece ou nos enfraquece;
nos dá mais força e saúde ou mais fraqueza e mais doença.
De alguma maneira nós somos cúmplices disso e nos tornamos descuidados -
e irresponsáveis na medida que entregamos a gerência de nós mesmos, como dizia o professor Lefevre,
a gerência do nosso corpo e da nossa mente a instâncias supostamente mais legitimadas
para conduzir aquilo que é necessário ao meu corpo e à minha mente.
Então, na verdade, antes de haver a verdade e a opinião, na linguagem você tem o sentido.
O sentido é anterior à significação; ele é anterior à designação.
Ele é anterior ao sujeito, o sentido é sempre o sentido de um acontecimento.
E o acontecimento é sempre o acontecimento da minha potência,
é o acontecimento da tua potência, é o acontecimento das potências em relação.
O acontecimento das potências em relação através do corpo,
o acontecimento das potências em relação através da linguagem,
- o acontecimento das potências em relação através do pensamento.
O acontecimento das potências em relação nada mais é do que a variação da capacidade de existir das nossas vidas.
E é a variação da capacidade de existir das nossas vidas que dá sentido ao nosso corpo,
à nossa mente, às nossas relações.
E que também faz escolher o que é mais importante e o que é menos importante.
O que é mais importante? É mais importante de fato a autonomia?
O que é a autonomia?
A autonomia é de fato criar zonas de variação de nós mesmos
ou essas zonas que fazem em nós a capacidade de experimentar o que vem de fora,
de fazer durar em nós esse acontecimento que pode vir de fora.
De criar zonas virtuais, inventar novas respostas para a vida, novas maneiras de viver.
O respeito à vida antes de tudo passa pelo respeito às singularidades.
Não há jamais uma vida igual a outra, jamais um afeto igual a outro.
A diferença não é algo que a gente precisa declarar que apoia através do discurso, porque não funciona.
Não adianta a gente declarar as nossas boas intenções aqui. As boas intenções servem
muito mais para enganar do que para de fato nos engajar num movimento real e mais honesto.
Intenções são sempre falsas, porque a vida não é nunca intencional.
A vida é sempre intensiva.
Ou a gente afirma aquilo que é necessário, a diferença de cada força, de cada potência...
E essa força, essa potência cria as próprias condições de continuidade de si mesma,
e nesse sentido ela se faz mais potente, mais saudável, portanto, mais forte, mais livre,
ou a gente é cúmplice é conivente com instituições tutelares.
A tutela é sempre uma má ideia. Ela se põe sempre no lugar do bem,
mas é um bem que faz muito mal na verdade.
Quanto mais tutela, mais dependência. Quanto mais dependência, mais refém a vida fica
de poderes que não se declaram, que são inconfessáveis, porque jamais investem na autonomia real.
Autonomia hoje está em voga, na moda, vivemos em sociedade ditas democráticas.
Mas a autonomia real jamais é autonomia de um sujeito.
O sujeito já é um assujeitado.
A autonomia real jamais se reduz à questão da consciência.
A consciência é sempre um efeito, a consciência é sempre retardada.
A autonomia real se dá através da criação de modos de viver.
Modos de viver que devolvem a nós a capacidade de criar as próprias condições da existência.
Capacidade tal que é capaz de transmutar qualquer mau encontro num bom encontro,
inimigo em aliado, doença em saúde, fraqueza em força.
Aqui haveria uma grande saúde. Um conceito de grande saúde. Saúde para quê?
Saúde para sobreviver? Saúde para ser mais um soldado obediente do sistema repressivo?
Saúde para fazer funcionar uma máquina que não contempla de fato plenamente a vida?
Até que ponto nós afirmamos a vida?
Então, a questão de dar assistência, de investir na acessibilidade, investir na inclusão,
investir no acolhimento não tem muito mais a ver com a ampliação de uma instância tutelar
que torna a vida ainda mais dependente, fraca e frágil?
Não há de fato um desprezo essencial por uma saúde muito mais essencial que sequer é percebida por nós?
Sequer imaginada ou sonhada?
Então, imagino que enquanto a gente investir em instâncias esclarecedoras, salvadoras de nós mesmas,
em Messias, em referências, mesmo as ciências e a tecnologia estão cheias de mitos...
Aliás a gente encontra muito mais mito e mistificações na própria ciência do que em muitas práticas populares.
Se a gente observar, eu vou só dar um exemplo rápido, eu não sei... O nosso tempo é muito breve,
eu não sei se já esgotou? Eu vou dar um exemplo rapidinho pra gente encerrar,
as sociedades ditas primitivas sempre que há um adoecimento na tribo, se chamam um xamã, um pagé,
um curandeiro, um feiticeiro, e geralmente ele detecta uma espécie de esquecimento, uma não
observância de um sacrifício, uma não observância de um certo ritual, uma não observância de uma memória.
Que memória? De um antepassado. O que é um antepassado? É algo que foi? Não.
Um antepassado é algo que é. O antepassado é uma maneira de viver.
Esse é o espírito do antepassado que vive e que é contemporâneo desse presente
e que está, na verdade, no horizonte, no futuro dessa sociedade.
Na medida em que eu esqueço de um antepassado como maneira de viver,
maneira de viver que era mais potente ou que criava, que ampliava as condições de variação da minha existência,
ampliando portanto a força, a intensidade, não só da minha vida, mas como da vida dos meus, ou do coletivo,
na medida em que eu esqueço essa maneira, eu fico mais fraco, eu fico mais frágil.
Então há uma perda de continuidade de relação, de intensidade, de ampliação da própria capacidade de existir.
Isso é que é a doença para um primitivo.
Então, ele, com um discurso mítico, ou com um discurso místico ou fabuloso, não importa, como uma ficção,
não importa se aquilo é algo científico ou não, aquilo faz sentido. O que faz sentido?
Faz sentido uma maneira de viver, que simplesmente foi esquecida, foi omitida
e que impediu com que ele ampliasse as conexões e as continuidades múltiplas e coexistentes da sua vida
em relação com aquela sociedade.
Nessa medida, um sacrifício, uma dor, uma crueldade, se torna inteiramente aliada de uma saúde,
de uma retomada da força e da potência.
Uma memória de futuro e não uma memória de passado.
Um saber que tem tudo a ver com um acontecimento da vida que se cresce, que faz crescer a potência em nós.
Então, esse ponto é essencial.
Os saberes antes de serem científicos ou míticos ou místicos, eles têm sentido.
Há um sentido ativo, que faz com que as minhas forças disponham de si mesmas para criar
as condições de existência e esse sentido ativo, até que ponto é mais importante?
O que é mais importante para minha vida, para a tua vida, em sociedade?
Não é exatamente aquilo que aumenta as nossas zonas de variação,
as nossas zonas de diferenciação, a nossa capacidade de criar realidade?
Porque a existência não é simplesmente um passar a existência, um viver o tempo e gastar o tempo que eu tenho.
É criar tempo, é criar corpo, é criar movimento, é criar realidade. Isso seria uma grande saúde.
Será que é dessa grande saúde que a gente quer falar?
Então é essa que seria a minha provocação.
Eu agradeço esse tempo.