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- FILOSOFIA - UM GUIA PARA A FELICIDADE
COM ALAIN DE BOTTON
SÊNECA E A RAIVA
Mesmo antes de saber qualquer coisa a respeito,
eu me sentia atraído pela idéia da filosofia.
Eu a via como uma matéria prática, capaz de fazer diferença no mundo
e de nos dizer muito sobre percalços cotidianos
como rejeições amorosas, demissões ou falta de amigos.
A filosofia traz uma promessa que pode parecer ingênua,
mas, na verdade, é muito profunda:
a de mostrar um caminho para aprender a ser feliz.
Descobri seis filósofos que me despertaram mais interesse
porque tinham mais a dizer sobre questões da vida
que eu considerava problemáticas.
A primeira delas, que vim para Roma tentar entender, foi a ira.
Com poucos minutos na cidade,
percebi que esse é um problema sério aqui.
A vida moderna é cheia de frustrações, e a maioria das pessoas
não parece capaz de reagir filosoficamente a elas.
Nós perdemos as estribeiras.
A ira é tão comum em nossas vidas hoje
quanto as barbeiragens e os engarrafamentos.
Assim, é interessante descobrir que, na Antiguidade,
ela era vista como um problema ainda maior.
Os romanos antigos eram ainda mais irritados que os modernos.
E há um filósofo da Antiguidade que se dedicou ao estudo da ira
e queria acalmar as pessoas.
Ele nascem em Córdoba, na Espanha, no ano 1 da Era Cristã,
e se chamava Sêneca.
Sêneca foi o filósofo mais conhecido e popular de sua época.
Ele escreveu mais de 20 livros com conselhos práticos
sobre todos os aspectos da vida.
Ele veio para Roma ainda garoto e passou a maior parte da vida aqui,
influenciando a política local como membro do Senado.
Mas nem por isso teve uma vida livre de frustrações.
Ele era um homem melancólico por natureza,
que havia sofrido de tuberculose na juventude
e tinha surtos depressivos, quase suicidas.
Viveu numa época muito perigosa.
Sua carreira política foi construída
durante uma série de governos de líderes tirânicos e imprevisíveis.
Sêneca vivia, literalmente, sem saber o dia de amanhã,
pisando sobre terreno instável.
No ano 49 d.C., ele teve de assumir, contra a vontade,
o cargo mais ingrato da administração do Império:
o de tutor de um menino de 12 anos, Lucius Domitius Ahenobarbus,
o futuro imperador Nero.
Logo ficou claro que Nero era um psicopata homicida.
Sabendo que corria perigo, Sêneca tentou se afastar da corte.
Por duas vezes, entregou ao imperador sua carta de demissão.
Por duas vezes, ela foi recusada com um abraço,
e o argumento de que Nero preferiria morrer a fazer mal a seu tutor.
Nada do que Sêneca experienciava
estimulava-o a crer nessas palavras.
Andando pelo palácio subterrâneo de Nero,
começamos a entender por que Sêneca se preocupava tanto com a ira.
Nero era um homem com poderes absolutos.
As pessoas eram trazidas para essas câmaras e executadas em ***.
Ele atirava romanos aos leões, decapitava-os,
lançava-os aos crocodilos e desmembrava-os vivos.
Virgens capturadas nas ruas eram trazidas para cá e mortas,
gladiadores que não se saiam bem eram lançados aos lobos...
Tudo isso acontecia nestas câmaras subterrâneas.
Vendo resultados tão tremendos da ira,
Sêneca ficou desesperado para abrandá-la.
Um imperador romano tomado pela ira não era só uma visão desagradável,
mas um fenômeno potencialmente catastrófico.
Tendo visto o que poderia acontecer,
Sêneca considerava a ira um problema grave.
Ele dedicou um livro inteiro, intitulado "Da Ira", a esse tema.
"A mais terrível e furiosa das emoções", ele descreveu.
Mas recusava-se a vê-la
como uma explosão irracional e incontrolável.
Que tipo de coisa deixa você irritado,...
irado no trânsito?
Imprudência na direção, gente que não...
Eles devem ter passado no exame, se é que tiraram a carteira.
Mas, pela maneira como dirigem, parecem não ter a menor noção
do que é dirigir na Inglaterra ou em qualquer lugar.
Ficam costurando entre as faixas,
sem a menor consideração pelos outros,
param sem aviso, não sabem manobrar nem estacionar direito.
E qual é seu xingamento preferido para quem faz uma barbeiragem?
Eu uso os gestos.
Deixo explodir a raiva do momento, sacudindo as mãos ao ar.
Você já saiu do carro e agrediu alguém?
Quase bati num sujeito.
Ele abriu a porta para ajustar o cinto.
Eu amassei a porta dele, mas ele me fez um corte no dedo.
Wayne Allinghem é motorista de uma firma de entregas.
Ele tem dificuldade de se controlar no trânsito,
e acha que não há solução para isso.
Sêneca teria discordado.
"Vou chamar a polícia..."
Não adiantou nada.
Eu fui até o hospital,
enfiaram uma agulha no meu dedo, tiraram sangue e costuraram.
Foi isso.
Para Sêneca, a ira era um problema filosófico
que podia ser tratado pela argumentação filosófica.
A ira surgiu de certas idéias racionalizadas sobre o mundo.
E o problema delas era ser otimistas demais.
Na visão de Sêneca,
as pessoas ficam com raiva porque criam muitas expectativas.
Não acredito.
Você se definiria como otimista ou pessimista?
Otimista. Tenho de ser.
Você não acha que, sendo otimista,
está sempre esperando que os outros dirijam melhor,
- mesmo não sendo capazes? - Não, não!
Depois de dias sem nada acontecer, você acha que tudo melhorou.
Mas, de repente, vê um arranhão no furgão ou leva uma fechada.
- Eu sei. - Ou vê crianças sem cinto.
- Há quanto tempo você é motorista? - De furgão? Há dois anos.
Há dois anos.
E todos os dias leva fechadas e vê barbeiragens.
A cada vez, fica surpreso e furioso!
É como se você ficasse surpreso por ver a mesma cena de novo.
Não acha que seria bom ser mais pessimista com o trânsito?
Ou admitir que as pessoas não sabem dirigir?
Num ataque de ira, sentimo-nos surpresos e injustiçados.
O que Sêneca diria a Wayne
é que confusões e barbeiragens no trânsito
não são injustas nem surpreendentes,
mas um fato previsível da vida.
Quem se irrita com elas
tem expectativas erradas em relação ao mundo.
Assim, seu primeiro conselho era que fôssemos mais pessimistas,
para ajustar nossa visão de mundo aos reveses da vida.
E ele nos pede para ter mais uma coisa em mente:
se aceitarmos que nada pode ser feito quanto às nossas frustrações,
não vamos nos descontrolar tanto quando elas acontecerem.
Sêneca acreditava que um dos motivos para nossa raiva
é imaginarmos que as coisas sempre têm de ser como queremos,
que somos capazes de moldar o mundo segundo nossos desejos.
Mas não somos.
Há muitas coisas que temos de aceitar.
Nem sempre temos liberdade para mudá-las.
Para tentar nos fazer compreender isso, para criar uma imagem clara,
Sêneca fez uma comparação inusitada:
ele disse que somos, basicamente,
como cães amarrados a uma carroça em movimento.
A correia é longa o bastante para nos dar alguma liberdade,
mas não para permitir que cada um vá para onde quiser.
O cão logo se dá conta de que, para aumentar sua chance de ser feliz,
ele precisa, algumas vezes, se contentar em seguir a carroça
ou, neste caso, a bicicleta.
É bem melhor segui-la para onde você não quer ir
do que se debater contra algo que não pode mudar.
Porque, além de ir para onde não quer,
você vai acabar estrangulado.
Mas levamos uma vantagem sobre os animais:
somos dotados de razão.
Essa razão nos dá um trunfo:
a capacidade de perceber o que podemos e o que não podemos mudar.
Talvez não possamos alterar certos acontecimentos,
mas podemos mudar nossa atitude com relação a eles.
Era essa capacidade, para Sêneca,
que conferia a liberdade que nos distingue como humanos.
Vamos, Flora, a necessidade manda você vir por aqui. Vamos!
Mas Sêneca não é útil apenas em nossos momentos de fúria.
Sua filosofia nos dá um meio de ficarmos calmos e controlados
diante de qualquer adversidade.
Podemos ter idéia da vida que Sêneca levava,
andando pelas ruínas da antiga Pompéia.
Ele foi um homem rico, e podemos cair na armadilha de imaginar
que ele e outros patrícios levavam uma vida fácil e tranqüila.
Mas basta ler Sêneca para descobrir que essa imagem está errada.
Em meio ao luxo, a aristocracia romana fervilhava em fúria.
Sêneca fez uma análise interessante da ira,
observando o mundo a sua volta.
Ele flanava pela alta sociedade da Roma imperial.
Muitos de seus amigos tinham enormes casas de campo,
com escravos para preparar a comida,
banquetes que adentravam a noite.
Receber todos os convidados.
Sêneca fez uma constatação surpreendente:
a riqueza torna as pessoas mais cheias de raiva, e não mais calmas.
"A prosperidade alimenta o destempero."
Sêneca conheceu um certo Vedius Pollio,
alto funcionário do governo, que certa vez deu uma festa.
Um escravo ficou encarregado de uma bandeja com copos.
O coitado teve o azar de tropeçar e derrubar a bandeja e os copos.
Vedius Pollio ficou tão furioso
que mandou atirar o escravo em um tanque cheio de lampreias,
para que fosse devorado vivo.
O que aconteceu, na análise de Sêneca,
foi que Vedius Pollio vivia em um mundo onde copos não se quebravam.
O filósofo concluiu que o problema de ricos como Vedius
é que eles tinham expectativas absurdas.
O mesmo pode ser dito dos ricos atuais.
Basta observar o check-in da primeira classe
de uma companhia aérea e ver como as pessoas falam mais alto
do que na fila da classe econômica.
Quanto mais rico você for, mais expectativas tende a ter.
Quando elas são frustradas, a fúria emerge.
Os ricos acreditam que o dinheiro vá protegê-los de reveses e frustrações
e essa é a experiência mais absurda de todas.
A filosofia de Sêneca não é importante só para os irritadiços.
Ele pensava que todos nós reagimos mal às frustrações,
e só teríamos a ganhar se reduzíssemos nossas expectativas.
Não sou ninguém pela manhã.
Faço o relógio despertar mais cedo e fico enrolando para levantar,
até me restarem só dez minutos.
Saio correndo e fico impaciente no ponto de ônibus,
porque ele nunca aparece na hora em que você precisa.
Dentro do ônibus, posso relaxar um pouco.
Mas há sempre engarrafamentos.
Eu sento e aproveito para ler uns originais.
Finalmente, chego ao trabalho,
abro os e-mails e os relatórios de vendas.
Olho a agenda e penso: "Meu Deus, tenho de fazer isso ou aquilo".
É assim que meu dia começa.
Venetia Butterfield é gerente de marketing de uma editora.
Ela tem dificuldade para administrar o estresse do cargo.
Fiquei imaginando como Sêneca poderia ajudá-la.
Como é seu cotidiano aqui?
Frenético. São muitas reuniões.
Os editores, em geral, falam demais.
E os autores ligam para saber de seus trabalhos,
você tem de ficar vendo se foram aceitos ou não.
- O que mais te estressa? - Reuniões arrastadas.
A pessoa chega dizendo que é coisa rápida, só meia hora,
e você se pega nervoso na cadeira depois de uma hora e meia,
pensando em tudo que ainda tem para fazer.
O que você faz quando está estressada
e com a mesa abarrotada, como agora?
O que faço?
Saio pela editora dando ordens e broncas.
Pode ser que haja uma solução para isso tudo.
Qual?
Nosso amigo Sêneca dizia uma coisa.
Ele pensava que o mais estressante é o que nos pega de surpresa.
Que nos irritamos mais
com os problemas que surgem quando menos esperamos.
Se você admitir que as coisas podem dar errado,
que o autor pode não ser aprovado,
que sua secretária pode se atrasar etc,
quando essas coisas acontecerem, você já estará preparada.
Ele dizia que a melhor forma de combater a raiva é estar preparado.
E aconselhava-nos a fazer isso.
Mas pode deixar você ainda mais estressado,
se for imaginar com antecedência tudo o que pode dar errado.
Antes de qualquer coisa,
você já vai estar pensando: "Ai, meu Deus!"
Tento manter o pensamento positivo.
Mas pode só se preparar calmamente, sem paranóia.
Costumamos confortar as pessoas dizendo que "tudo vai ficar bem".
Para Sêneca, essas palavras de suposto apoio podem ser cruéis,
pois deixam a pessoa despreparada para situações adversas.
Ele recomendava a estratégia oposta:
uma reflexão tranqüila, mas diária, sobre tudo o que pode dar errado.
A idéia é estruturar esses pensamentos que às vezes nos ocorrem
refletindo sobre eles toda manhã.
- Todas manhãs? - Isso, todas as manhãs.
- Você tentaria fazer isso? - Tudo Bem.
SEGUNDA-FEIRA
Vou me atrasar para o trabalho,
porque vou ter de esperar muito até o ônibus aparecer.
O motorista vai estar com pressa, e vai acabar atropelando alguém
depois de uma freada brusca,
e vou chegar atrasada para a reunião das nove horas.
Quando eu entrar na sala, as vinte pessoas vão olhar e fazer...
TERÇA-FEIRA O acidente não aconteceu,
mas o ônibus demorou e me fez atrasar.
Quando cheguei, as pessoas fizeram...
Mas estavam de bom humor e não se chatearam muito.
QUARTA-FEIRA Vou ao médico hoje, um check-up.
Mas, provavelmente, vão encontrar um câncer no cérebro.
QUINTA-FEIRA
Estou atrasada porque dormi demais.
É meio chato, porque eu queria chegar mais cedo
e escrever a apresentação de um autor.
SEXTA-FEIRA
Fiquei resfriada e, provavelmente, vou pegar uma pneumonia.
Hoje tenho reunião com uma distribuidora de cinema
sobre uma divulgação que vão fazer para nós,
e acho que eles vão pedir uma fortuna que não poderemos pagar.
SÁBADO
Estou chegando ao fim da minha semana de pessimismo diário.
Achei o exercício útil em um certo sentido,
porque deixa você mais preparada e mais consciente da correria,
de como faz tudo em cima da hora.
Você consegue ver as coisas que pode mudar e as que não pode.
As coisas que você não pode mudar, como o ônibus,
as pessoas que não fazem o trabalho delas,
que fazem besteiras ou furam os prazos,
acabam sendo vistas de forma mais filosófica.
Sêneca não proibiria Venetia
de esperar que as coisas funcionassem bem.
Ele só gostaria de vê-la preparada psicologicamente para o contrário.
Sêneca pensava que, muitas vezes,
superestimamos nossa capacidade de mudar os acontecimentos,
de reverter situações frustrantes.
Foi para nos relembrar constantemente
de quantas coisas estão fora de nosso controle
que ele invocou a ajuda de uma deusa.
O nome dela era Fortuna,
e estava representada em muitas moedas romanas.
Havia também estátuas suas pela Itália.
Ela aparecia portando dois objetos:
em uma das mãos, uma cornucópia,
como símbolo de seu poder de conceder favores.
Nessa cornucópia, havia muitas das boas coisas da vida.
Mas Fortuna tinha também um objeto mais sinistro, um leme,
como símbolo de seu poder de desviar nossos destinos.
Em um rompante de crueldade, como lhe era freqüente,
bastava um toque no leme para ela destruir nossas vidas,
levar nossos empregos e nos causar imensa dor de cabeça.
Fortuna simboliza as coisas que devemos aceitar,
as boas e as ruins.
Quando algo sai errado, não devemos gritar e praguejar,
mas lembrar que muitas frustrações são caprichos cruéis de uma deusa
cujos atos não podemos mudar.
A maior parte dos habitantes de Pompéia,
uma cidadezinha aos pés do Vesúvio,
acreditava ter controle sobre o próprio destino.
Mas, talvez, o lembrete mais duro dos limites de nosso controle
sejam as forças da natureza.
Ao meio-dia de 13 de agosto de 79 d.C.,
eles iriam descobrir que Fortuna tinha planos para a cidade.
Em questão de horas, Pompéia foi soterrada por cinzas vulcânicas,
uma demonstração terrível e clara da teses de Sêneca:
nunca estamos a salvo da deusa Fortuna.
Mesmo quando tudo parece tranqüilo, pode sobrevir o desastre.
A melhor maneira de nos protegermos
é estarmos preparados psicologicamente.
Tendemos a pensar que o legado mais importante dos filósofos
são os livros que escreveram,
onde todo o alento e sabedoria estão concentrados.
Mas os antigos agarravam-se à crença mais abrangente de que
também devemos buscar inspiração, nos momentos de necessidade, na
forma como os filósofos viviam e morriam.
Foi no instante de sua morte que Sêneca se mostrou mais inspirador.
A cena foi reproduzida infinitamente desde então,
nas artes plásticas, na literatura e na música.
Em abril de 65 d.C.,
foi descoberta uma conspiração contra Nero
na qual Sêneca acabou incriminado, embora provavelmente fosse inocente.
Nero enviou um centurião à residência do filósofo,
para ordenar que ele se matasse imediatamente.
Quando amigos e familiares souberam da sentença, caíram em prantos.
Mas Sêneca não chorou. Foi sua atitude diante da desgraça
que ajudou a definir o que ele queria dizer,
ao afirmar que devemos ver as coisas filosoficamente.
Calmamente, ele pegou uma faca e cortou os próprios pulsos.
Sêneca morreu da maneira como nos aconselhava a viver.
Como ele lembrou a uma amiga na ocasião da morte de seu filho:
"Por que chorar por fatos da vida
quando toda ela é motivo de lágrimas?"
Com sorte, nada de tão terrível irá ocorrer conosco.
Mas coisas ruins podem acontecer,
e a melhor maneira de amenizar os golpes, se eles vierem,
é estarmos preparados.
Ira e frustração são, em essência, reações irracionais aos reveses,
e a única estratégia racional é manter a calma
diante da constatação de que algumas coisas dão errado.
Dessa maneira, estaremos agindo,
no mais verdadeiro e melhor sentido do termo,
filosoficamente.