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Muito louca essa história, jovem
Isso significa que há algum tempo atrás
existiu uma filosofia nazista nesse lugar.
E eu até então fiquei pasmo, né?
Faz parte da história do mundo
A origem?
Certo dia estava eu e o empregado tratando dos porcos.
Em um belo momento de uma briga de porcos...
E como a parede já vinha sendo destruída
há alguns dias pelos porcos, né,
aí eles acabaram de arrebentar a parede e fugiram do chiqueiro,
que era uma casa velha que se transformou em chiqueiro
Aí numa dessas, na hora que o empregado saiu correndo
para cercar a porcada, ele gritava para mim.
E eu fiquei pasmo, olhando para o tijolo, né?
Um belo dia que a minha enteada estava tendo uma aula de História,
ela comentou que na propriedade dela no interior
tinha tijolos com a suástica nazista.
Até então riram todo mundo, né?
Aí na outra semana ela levou um tijolo
e na mesma semana o professor Sidney veio
para começar todo esse inventário para chegar onde chegou hoje.
Na época, verifiquei realmente uma quantidade significativa
de construções da década de 1930 e 1940,
com uma grande profusão de simbologias nazistas,
não só marcadas nos tijolos,
mas que também apareciam em fotografias de época,
em lombos de animais, em bandeiras de times de futebol,
em talonários...
E aí eu tomei a decisão de iniciar a pesquisa por conta própria.
O que mais me chamou a atenção não foram as simbologias nazistas.
Foi a associação entre a simbologia da extrema direita
e a transferência de meninos negros de um orfanato católico
do Rio de Janeiro para o interior de um outro estado,
que me chamou muito a atenção.
A presença de um único gênero, o masculino...
De uma faixa etária também única, de 9 a 12 anos.
E foi esse conjunto comprobatório
que acabou me levando a esta relação
Depois de um trajeto relativamente longo,
que durou alguns anos, eu acabei chegando
aos documentos do Educandário Romão de Mattos Duarte,
onde eu acabei localizando nos livros de saída de internos
os nomes de pelo menos duas dezenas deles.
E encontrei documentações assinadas a próprio punho
por Osvaldo Rocha Miranda, que se punha como responsável
pela retirada legal e pela transferência dos meninos
do Rio de Janeiro para Campina do Monte Alegre.
Seu Aloísio Silva foi um dos meninos
que foi retirado do Romão de Mattos Duarte
e acabou servindo como uma das principais guias da pesquisa.
Ele recuou nós tudo num canto do quintal da gente brincar,
que lá era bola, bicicleta, patinete...
Outros faziam casinha para passarinho,
isso e aquilo, fazia de tudo.
Aí ele mandou recolher nós, botou nós num canto,
tudo empilhado ali.
Então naquilo tinha um passador de nós dormir no alojamento,
que a gente chama de passadiço, né?
Eles ficavam lá em cima com um saco de bala desse tamanho
e lá de cima o major, Osvaldo Rocha Miranda,
pegava e jogava um punhado de bala.
E nós íamos catar, que nem galinha cantando milho.
Nós não sabia de nada.
Então ele olhava ali e ia apontando:
André, põe esse para lá, e aquele de lá põe pra cá.
E assim foi, ele apartou 20 da nossa turma.
Ele disse:
-Pois é, vocês vão lá para a minha fazenda,
vocês vão viver uma vida boa.
No Rio de Janeiro o que que eles ouviram
é que eles estavam sendo transferidos para um lugar
que era muito legal, que tinha rio, que tinha passarinho...
Que tinha cavalo para andar.
E eles ficaram, a princípio, entusiasmados com a ideia
e já na transferência começava a se mostrar outros
aspectos não tão dóceis assim do processo de retirada.
Foi dois carros de polícia lá, pra embarcar nós,
e ficar lá na Estação D. Pedro II para pegar o trem.
Aqui é a estação Hermillo, aqui que chegou os meninos.
Eles vieram de trem até essa estação, aqui eles desceram,
foram colocados num caminhão e levados até a fazenda.
Quando chegaram aqui, eles viram que era só mato
e então eles simplesmente queriam voltar.
E ao chegarem, rapidamente foram submetidos
a práticas de trabalho, acompanhando o ritmo dos adultos.
E por isso os relatos também de castigos,
de uso da força, das ameaças.
Já tinha 400 alqueires localizados lá para ele juntar com nós
e daí a gente ficar tudo junto ali para usos e frutos.
Só trabalhar para eles e mais nada.
Carpir, arrancar praga de campo, tudo.
A mão da gente chegava a sangrar
que a gente ia para a escola e não podia nem escrever.
Usou a gente ali porque a gente era...
Não tinha pai nem mãe, não tinha quem socorresse.
É isso aí, virou escravidão.
Vários fugiram, vários fugiram.
Seu Argemiro foi um dos meninos que fugiu, não foi o único.
E acabou em Foz do Iguaçu, onde ainda vive e onde tem
filhos e netos.
Era três irmãos. Tinha a Fazenda Santa Albertina,
Fazenda Cruzeiro do Sul e fazenda do doutor... Retiro Feliz.
Naquelas fazendas, cuidava de quê?
De porco, ali, né?
Cuidava de um boi, um tal de Sereno, que era meu amigão.
Eu gritava lá e ele vinha lá de longe correndo, no portão.
Me ouvia, coisa e tal, sacudia o rabo, tirava o time...
Como tinha gente que cuidava só de gado,
outros cuidavam só de carneiro,
outros cuidavam só de galinha.
Agora, para sair da fazenda era difícil,
não tinha condição de você ir para lugar nenhum.
Já tinha um tutor lá para tomar conta de nós.
Um homem, um paraibano ruim, ruim mesmo.
Ele tinha uma vara de marmelo
e uma palmatória aqui na cinta, com 5 furos.
Se você errasse bem errado:
-Vem aqui para dar um bolo.
Pá! O cara berrava daqui no ***ão.
E tomava a quantidade de bolo,
conforme o que fizesse da trapalhada.
E aquilo era de lascar, doía para burro a ver.
Pois é, quando ele foi bater, eu puxei,
tava no joelho dele, pô, quase que mata a pau.
E aqueles que batiam, são comandados pelos donos da fazenda.
Quando vinha da fazenda aqui na Campina,
vinha tudo em forma lá e ele, o chefão,
com os cachorros junto e o chicotão aqui no ombro.
Ah, se nós fugisse, corresse e os cachorros farejassem nós,
pegavam a gente mesmo.
Ele tinha dois cachorros, uma cachorra e um cachorro,
ensinados já para...
O nome da cachorra era Fiança e do cachorro era Veneno.
Ele só falava: -Lá.
E o cachorro ia lá e trazia nós de lá aqui
e botava nós junto com os outros.
Foi num dia que eu notei assim e falei assim:
-Eu vou cair é fora desse negócio.
Quando eles pensaram que eu tava lá,
eu peguei um caminhão que passou por ali,
fui embora, vim para Engenheiro Hermillo, conhece, né?
Lá em Engenheiro Hermillo, fiquei,
quando aparecia alguém, eu me escondia.
Quando apareceu o trem, eu: Pum! Sorocaba.
Ah, caí fora, caí fora. Ficar ali toda vida?
A cabeça ajudou.
Alguém me ajudou, né? Ficar lá fazendo o quê?
Não, me aventurei, me dei bem... Sofri um pouco, né?
Fui um pouquinho devagar e hoje estou aqui.
Que se ficasse naquela vida lá, tá louco, não dá!
Tem muitos deles que já morreram,
tem muitos deles que sofreram,
tem muitos que ficaram loucos.
Porque foram atrás de papo...
Fui calçar a primeira botina com 16 anos.
Aqui geava pra valer mesmo.
A gente pisava naquela geada, ia derretendo,
chegava domingo, o pé da gente não aguentava.
Dinheiro, era difícil.
Esse negócio de dinheiro não existia naquele tempo.
Se existisse, eu não estava nem lá, que eu pegava o dinheiro e...
Não, não existia dinheiro.
Eu conheci diversos deles, eu conheci muitos.
O Aloísio, o Dois... E até se falava, assim,
que eles não tinham salário,
mas eu, eu tenho assim, gosto até de esclarecer isso...
Porque tinha sim uma moeda lá, um vale,
que tinha o nome de boró.
E daí, então, eles compravam o que queriam: doce,
bala, né. E, depois, esse contador, ele ia até a Campina e
procurava o dono da venda e dizia assim:
-Quanto tem de vale da fazenda aí, quanto tem de boró?
E daí o comerciante, somava lá:
-Ah, tem tanto.
Ele dava o cheque, o pagamento,
e trazia os borós para a fazenda,
para continuar repartindo novamente.
Então, eu acho que esse era o dinheiro deles, né?
Era o salário que eles recebiam.
Quando chegamos aqui,
o fardamento do integralismo era uma calça branca,
uma camisa verde, com um emblema aqui e outro aqui.
O uniforme era verde, verde, negócio de alemão.
Só para vestir sábado e domingo.
Para dia da festa da fazenda, que vinha os fazendeiros,
tinha 3 fazendas, né?
O baile eles faziam, Dr. Sérgio fazia dentro da cocheira
do gado, para o gado acostumar,
para quando era dia de exposição não dar trabalho.
Esse aí, ó. Essa marca aqui é o emblema do nazismo.
Sabe disso, né?
E aqui nenhum deles tiveram documento,
eles eram chamados por números.
Na primeira turma, meu número era Sete,
daí foi por escada de tamanho...
Aí fui para Vinte e Três.
Nunca era chamado Aloísio, seu Aloísio:
-Ô, Vinte e Três, ô, ***, Vinte e Três.
Era o termo que usava com eles.
Encontrava assim: -Anauê!
É, era o sinal, é. E não era proibido, não.
Depois é que Getúlio Vargas proibiu.
É a saudação do alemão na época da guerra, né?
Era bom dia, mesma coisa que se falar 'bom dia'.
Tal de anauê.
A presença da simbologia nazista na região
e a presença do integralismo na região
não podem ser simplistamente confundidas.
Mas se deve perceber também os pontos de contato.
Otávio Rocha Miranda, Osvaldo Rocha Miranda
e Renato Rocha Miranda
fizeram parte da Câmara dos Quarenta, da AIB.
Sérgio Rocha Miranda que, nos anos 1930 e 1940,
era proprietário da Fazenda Cruzeiro do Sul,
não aparece nas documentações da AIB.
Mas era assumido nazista. É na fazenda dele,
na fazenda Cruzeiro do Sul, que foi encontrada grande
quantidade de simbologia Nacional Socialista alemã.
A família de sobrenome Rocha Miranda
em Campina do Monte Alegre
era quase sempre vista como benfeitores
Afinal de contas, o município de Campina do Monte Alegre,
chamado lá "Campininha", ele surge praticamente cercado
pelas fazendas da antiga família Rocha Miranda.
Eu nasci na Fazenda Cruzeiro do Sul,
cinco irmãos meus nasceram lá.
Daí viemos embora, daí ficamos para cá.
Era muito animado, uma fazenda que parecia uma cidade.
Todas duas eram muito animadas,
hoje em dia se acabou tudo,
depois que morreram os Miranda.
A do Cruzeiro, você ia lá e, nossa, que linda era
aquela fazenda. Lindo, lindo. Coisa que eles faziam todas
as casas, as cocheiras, tudo eles trouxeram a cópia
do Rio, né? Que eles já tinham casa lá no Rio.
Eles fizeram tudo igual que era lá, então ficou uma coisa
diferente para cá, ficou muito bonito, muito bonito.
Eles aí ajudaram a fazer o ginásio, clube, essas coisas.
Tem a placa deles lá, então, aquela rua principal
é Renato Rocha Miranda.
Eles eram umas pessoas muito queridas para cá,
era muito bom, então todo mundo queria bem à família
dos Miranda.
Era muito alegre, mesmo esses meninos que vieram
do Rio de Janeiro, que eu conheci... A gente não
sabe a vida interna deles, eu não posso contar, assim,
o que eles passaram, como que era a vida dos órfãos.
Mas eles tinham a escolinha deles,
o time de futebol, tinha a banda, né?
A gente via, assim, aqueles animais da raça, né,
aqueles touros, cavalos, que iam para as exposições também
e tudo da Fazenda Cruzeiro do Sul, com a marca,
com a suástica do tijolo.
E a gente via, achava bonito e não entendia nada
sobre isso...
Olha, eu fui ridicularizado quando eu comecei a comentar isso.
Me chamaram de tonto, bobo, louco,
de querer aparecer, isso e aquilo...
Não, não. Muito pelo contrário.
Eu queria saber o porquê isso veio parar aqui.
E hoje está comprovado:
existe seu Aloísio que é uma testemunha incontestável,
em perfeitas condições mentais e de saúde
para falar e tem falado. Ele tem aberto o coração mesmo.
Seu Aloísio ficou nas fazendas dos Rocha Miranda
até a sua, entre aspas na palavra dele, 'liberação'.
Os traumas foram marcantes pelos acontecidos na infância,
teve uma vida marcada pelo alcoolismo até a terceira idade.
E foi somente na terceira idade que seu Aloísio começa
a reconstruir-se emocionalmente com relação
aos traumas do passado.
Na verdade até que, isso que vocês estão falando aí,
nem triste, nem alegre. Eu esqueci desse lugar,
para mim não existe.
Seu Argemiro, por um caminho diferente,
depois de ter morado alguns anos nas ruas
da cidade de São Paulo, quando há a eclosão da Segunda Guerra,
viu por bem se alistar na Marinha.
Em Sorocaba fiquei ali engraxando, era jornaleiro...
Até arrebentar a guerra, arrebentou a guerra, me apresentei.
Escutei o Repórter Esso:
- A Marinha está precisando de voluntários,
que o Brasil entrou em guerra.
É comigo! Para morrer, eu vou morrer lá.
Vai morrer engraxando?
O cara Dizia: - Mas você está ficando maluco!
Maluco estamos nós aqui, engraxando esse troço aí.
A guerra totalmente eu não fui direto, né?
Mas fui da patrulha no navio.
Portugal, França, Toulon, Ilha da Madeira,
nos Estados Unidos, tudo por ali.
Então dava patrulha ali à noite,
porque o alemão tava meio abusado.
Submarino, aqueles troços lá.
Aí tinha a Capitania dos Portos aqui,
precisava de um taifero para servir aqui com o comandante.
Quando falou Foz do Iguaçu, eu vim peleando, mas vim.
Larguei tudo que tinha lá e falei:
-Eu vou, eu vou! E vim.
Quase dois meses para chegar aqui, mas cheguei.
E eu fiquei sabendo de tudo isso agora há pouco tempo,
porque ele nunca contou da infância dele.
Mesmo porque o tempo foi passando
e ele foi esquecendo, na realidade,
das coisas do passado.
E eu percebi que ele teve, assim...
A vida proporcionou para ele fatos melhores
depois que ele veio para Foz do Iguaçu,
onde ele passou a criar uma família, na realidade.
Porque ele foi criado fora da família
-E quer regressar? Eu digo: -Não!
Mas aqui não tem nada! Não tem nada é que tá bom.
Que adianta? você já viu tudo,
nasceu no Rio de Janeiro, conhece o Rio, conhece
São Paulo, conhece um pouco da Europa,
vai fazer lá o quê? Fica onde está.