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Queria dizer que estou muito satisfeito,
um pouco nervoso também, mas muito satisfeito de estar aqui, nessa reunião,
com pessoas tão ecléticas,
acho que é uma reunião muito caracterizada pela generosidade,
pela amorosidade também, que eu acho que são duas coisas
que o Brasil tem bastante a oferecer para o mundo.
Eu escolhi um tema porque eu acho que a arte e o teatro na rua,
como geradores de cidadania e inclusão social,
e falar sobre esse tema, discorrer um pouco sobre esse tema,
à luz da experiência do Galpão.
Não sei se vocês conhecem o trabalho do Galpão,
o Galpão esteve aqui recentemente em São Paulo.
O Galpão foi um grupo que nasceu em 82, quer dizer,
ele teve um contato com dois diretores de uma companhia alemã
que vieram para o Brasil,
eles trabalhavam com o teatro de rua,
eles, de certa maneira, nos deram um instrumental para ir para a rua.
A gente foi meio que na cara e na coragem para a rua,
não sabia o quê poderia sair daí.
As pessoas consideravam uma loucura, em 1982,
você ir para uma praça, marco zero de Belo Horizonte, a Praça Sete,
e reunir ali, 500, 700 pessoas em volta de uma roda fazendo teatro.
Bom, enfim, acho que essa história do Galpão, ela tem 27 anos,
acho que ela tem uma pesquisa de linguagem,
tem uma pesquisa sobre a forma de fazer teatro brasileira,
da cultura brasileira.
Eu gostaria de centrar a minha breve exposição
sob a luz desse trabalho que nós desenvolvemos
do teatro de rua, com o teatro de rua.
Eu acredito profundamente,
é claro que o nosso trabalho, ele tem uma contribuição modesta,
muito mais precisa ser feito,
mas eu acredito piamente e à luz desse trabalho,
desenvolvido há 27 anos pelo Galpão,
no poder transformador da arte, eu acho que a arte, ela tem esse poder,
no sentido em que, quando você sai dos limites da casa de espetáculo,
que, de certa maneira, oprimiu o teatro e a arte num lugar fechado,
num lugar burguês,
e quando você consegue extrapolar esses limites,
você encontra um público heterogêneo,
esse público da rua.
Eu acho que você consegue potencializar muito esse poder transformador da arte.
Eu acho que são infinitos exemplos que a gente tem de que isso acontece,
porque acho que a partir do momento em que você dá a possibilidade às pessoas
de sonharem, de exercitarem a imaginação, a fantasia, o jogo lúdico,
essas pessoas, imediatamente, elas melhoram muito o estado delas,
elas passam a ter mais confiança nelas mesmas,
elas passam a exercer um direito que eu acho fundamental do ser humano,
que é o direito de imaginar.
Acho que a gente associa muito a cidadania,
e eu acho que é um gravíssimo problema que a gente tem no Brasil,
que a gente tem uma imensa faixa da população que não é cidadã,
não tem acesso mínimo às coisas.
E a gente sempre associa muito esse conceito de cidadania
a essa questão de ter direito à educação, à saúde, a certos bens,
e esquece muito, principalmente os governantes, os políticos,
a necessidade que as pessoas têm,
como artigo de primeira necessidade, de imaginar,
de ter fantasia, de poder exercer ludicamente a vida delas.
Porque eu acho que a partir do momento em que as pessoas ou fruem a arte,
o teatro, especificamente, no nosso caso, o teatro,
ou participam de atividades artísticas,
eu acho que elas conseguem ter uma outra dimensão da vida.
E não estou falando isso teoricamente, eu estou falando isso na prática,
uma prática de 27 anos de encontro com essas pessoas,
principalmente em circuitos fora do que a gente considera
o circuito "oficial" da cultura,
que são cidades do interior, bairros de periferia,
eu sinto que as pessoas, elas conseguem, de certa maneira,
se deslocar dessa miséria do dia a dia da sobrevivência,
e que isso é uma arma absolutamente de primeira necessidade para as pessoas.
Isso é uma coisa que estimula demais as pessoas,
eu acho que isso é uma prática fundamental
para que as pessoas possam se tornar verdadeiras cidadãs
nesse sentido de uma pessoa que tem consciência
dos seus direitos e seus deveres frente à sociedade.
A arte é uma coisa que estimula extremamente a boa auto-estima das pessoas.
As pessoas se sentem mais valorizadas, elas se sentem melhoradas,
elas sentem, a partir do exercício ou da fruição da arte,
o desejo de mudar a vida delas, de melhorar, de se repensar.
Então, eu acho que isso é um elemento fundamental da arte,
especificamente do teatro.
E nesse sentido, eu me sinto extremamente preocupado,
eu sei que depois da minha fala, acho que vem a fala de uma educadora,
que como a educação no Brasil, de uma maneira geral,
e mais tristemente na educação pública,
a educação está absolutamente fora do rumo,
ela está dominada por um tecnicismo vazio,
ela está completamente divorciada de qualquer manifestação artística,
acho que isso é uma questão extremamente grave, extremamente séria.
Então, eu acho que ao longo dessa experiência de 27 anos,
eu atribuo que o grande sucesso do Galpão foi exatamente essa capacidade
de se articular com a comunidade.
Seja ela a comunidade de Belo Horizonte, onde a gente vive, onde tem a sede,
mas também as comunidades de vários lugares
que são visitados constantemente pelo trabalho do grupo.
Então, eu acho que a partir do momento em que você consegue
através do seu trabalho, criar esse vínculo com as pessoas,
com os seres humanos, e darem essa ferramenta,
que é uma ferramenta do exercício da imaginação, da fantasia,
eu acho que você cria, você tem ao seu favor uma arma
que eu acho que não precisa de patrocínio,
quer dizer, precisa de patrocínio sim.
Mas, eu acho que o patrocínio é muito mais uma consequência dessa relação
que você consegue estabelecer com uma comunidade,
porque eu acredito verdadeiramente nisso.
O Galpão hoje tem o patrocínio da Petrobrás,
mas eu acho que, de fato, o patrocínio é uma consequência
de você conseguir estabelecer esse vínculo permanente com a comunidade.
Fatos muito emocionantes da nossa relação com essas diferentes comunidades,
vou citar um exemplo:
Em 1984, nós fomos fazer uma oficina de três semanas
numa cidade do interior de Minas, Uberlândia.
Nessa oficina, participou uma moça, muito atrapalhada,
ela era muito atabalhoada e ela trabalhava como doméstica.
E tinha aquele sonho, era uma pessoa que sonhava, tinha filha
e a patroa queria proibí-la de ir na oficina
e ela faltava porque tinha que ficar com a patroa.
Resultado: coisa de 3 anos atrás, nós voltamos a Uberlândia,
e essa moça, ela veio ver um espetáculo nosso em Uberlândia.
E ela hoje é professora primária,
ela desenvolve um trabalho com teatro com as crianças.
E aquilo ali transformou de fato a vida das pessoas.
Não é uma transformação simplesmente que você aponta o caminho,
eu acho que muitas vezes, viajando pelo interior, os jovens,
"como é que eu faço para formar um grupo de teatro?"
A primeira coisa que a gente tem que falar é que não existe caminho,
o caminho é você que tem que trilhar,
você pode, claro, se espelhar em determinados exemplos que sempre nos ajudam,
mas o caminho, esse caminho é a própria pessoa que tem que construir,
é um caminho contruído.
Então, como disse o Guti, não é uma coisa paternalista,
mas é você permitir àquelas pessoas que elas descubram aquela riqueza,
que eu acho que é essa riqueza do direito à fantasia, à imaginação,
ou é o exercício da imaginação, a ludicidade dentro de todas as pessoas
sem distinção de credo, de classe social, de opção política, ***,
seja lá o que for, é uma coisa humana.
Eu acho que é fundamental isso.
Eu queria falar um pouco também sobre a questão do espaço público.
Eu acho que várias pessoas já se reportaram a essa questão do espaço público.
Acho que no momento, até pela experiência de 27 anos fazendo teatro na rua.
O Galpão nasceu em 82,
nesse momento em que a rua era controlada pelo exército, pela polícia,
era uma rua absolutamente repressiva,
em que a sociedade viu que não podia tomar conta dela.
Se se reunissem mais de cinco pessoas, o DOPS passava e prendia todo mundo.
Eu acho que a gente que está há 20 anos num exercício de uma democracia formal
no Brasil, que eu acho que tem importantes avanços,
mas que ela é, de certa maneira, capenga também.
Eu acho que no momento, a gente está travando uma luta muito grande
pela conquista do espaço público.
Hoje de manhã, quando eu vim do hotel para cá,
e passando pelas ruas de São Paulo,
você vê que nas grandes cidades brasileiras
o espaço público está perigosamente virando o espaço de ninguém,
o espaço sem cara, o espaço ocupado pelos viciados em crack,
quer dizer, virou um lugar perigoso para os cidadãos caminharem,
é um lugar que você deve evitar o espaço público.
Eu acho que isso é extremamente perigoso para a democracia no Brasil,
eu acho que a democracia no Brasil é uma democracia que ainda tem dificuldades,
acho que a desigualdade social é muito gritante,
isso é um perigo para a democracia.
Eu acho um perigo também ver como o espaço público,
a rua, ela se transformou,
ela está se transformando perigosamente num lugar de ninguém.
Eu sinto que essa é missão importante para nós artistas,
é conseguir sair desse gueto em que a arte está incrustrada
e conseguir atingir essas pessoas, esse público amplo e heterogêneo da rua.
Eu queria, só para finalizar, talvez pedir a paciência de vocês, é rápido,
não dá dois minutos.
Porque eu acho que, de certa maneira,
sintetiza muito melhor tudo isso que eu tentei falar aqui para vocês.
Estava na minha mesa, que eu preciso responder, recebi recentemente.
É uma carta de uma moça que chama Márcia Ferreira,
ela é de uma cidade que se chama Salinas, no Vale do Jequitinhonha,
numa das regiões mais pobres de Minas e do Brasil.
O Galpão passou por lá e essa moça me escreveu essa carta.
"Oi, Eduardo Moreira, me chamo Márcia, sou uma jovem mãe
e sonhadora de 22 anos de idade, que daqui a 17 dias vai completar 23 anos.
Sou amante de todo e qualquer tipo de arte, principalmente dos teatros.
É uma pena, pois aqui em minha cidade, as artes não têm muito espaço,
ou seja, estamos carentes de peças teatrais
e de despertar em nossas crianças o desejo de atuar ou desenvolver outros tipos.
Há muitos anos, desde a época do ensino médio, que alimento um sonho,
de um dia poder fazer uma faculdade ou curso de teatro e me tornar uma atriz.
Por diversas vezes tive que adiar este sonho,
mas atualmente, esse desejo só vem aumentando e aguçando.
Sei que no momento ainda não será possível,
mas descobri que posso, aqui mesmo, em minha cidade
e na associação do meu bairro, desenvolver pequenas peças teatrais infantis.
Atualmente, desenvolvo um trabalho voluntário
com 34 crianças aos sábados e domingos.
Começamos a ensaiar uma dança,
para, se Deus quiser, fazer uma brincadeira no dia 12 de outubro.
Caro Eduardo Moreira, o motivo pelo qual estou lhe escrevendo esta carta
é que gostaria de pedir-lhes algumas dicas
ou até, quem sabe, uma apostila sobre teatro, atuação e etc,
se possível, pois sei de tua excelência como diretor.
Até hoje me lembro do dia em que o Grupo Galpão veio fazer uma apresentação
da peça de teatro "Um Moliére Imaginário",
e tenho guardado em meus pertences um cartão, foto.
Enfim, amo demais o teatro e até me emociono,
pois os motivos pelos quais não pude ainda realizar este sonho são:
1. Logo após terminar os estudos do ensino médio e técnico,
acabei engravidando de minha filha, Ana Beatriz.
Também há quatro anos, descobri que tenho umas lesões na córnea
e que me dá uma certa limitação,
pois na claridade só consigo sair às ruas com óculos de sol.
Já me consultei com alguns oftalmos, mas no momento não dá para fazer nada,
só avaliação.
E o último, é que não disponho de recursos para morar em outra cidade,
atualmente, trabalho com vendas diretas Natura e Avon,
mas nunca deixei-me abalar com esses obstáculos em minha vida
e sim, eles me dão força, garra e persistência para continuar a minha caminhada.
Por essa razão é que estou lhe escrevendo essa carta,
pois vou pegar com Deus e continuar desenvolvendo atividades artísticas
aqui em nossa associação com as crianças.
Se possível, gostaria de contar com a colaboração desse exímio diretor,
quando crescer quero ser igual a você,
é brincadeira, mas me espelho e admiro o seu trabalho,
que Deus lhe abençoe, ilumine, e que lhe dê muitos anos de vida e saúde
para que tu possas continuar a desempenhar o teu trabalho.
Finalizo com um afetuoso abraço.