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Humano, Demasiado Humano
Conheço meu destino
Um dia meu nome será ligado à lembrança
de algo tremendo -
uma crise como jamais houve na Terra,
a mais profunda colisão de consciências,
conjurada contra tudo o que até então foi
acreditado, exigido, santificado.
Onde vocês vêem ideais
eu vejo apenas o que é humano,
ah, demasiado humano.
Estas são as palavras do visionário
filósofo alemão Friedrich Nietzsche.
A crise que previa era a da fé religiosa
que atravessava a Europa no final do século XIX.
Nietzsche foi o primeiro pensador a compreender
que a morte de Deus
daria lugar a algo totalmente novo
na História humana.
A idéia da liberdade absoluta do homem
como única medida do universo.
O que ele descreveu era nada menos que as dores do nascimento
do mundo moderno.
Nietzsche é tão importante quanto Marx, Freud
e Einstein na evolução do modo como as pessoas pensam no século XX.
A principal influência de Nietzsche no século XX,
foi um tremendo enfraquecimento de nossas
certezas morais e intelectuais.
As pessoas estão confusas na distinção entre
o bem e o mal, ou o que é o certo ou o errado.
Deus está morto! Deus permanece morto!
E fomos nós que o matamos!
Como nos consolar, a nós assassinos
entre os assassinos?
O que havia de mais poderoso e sagrado
no mundo, foi sangrado diante dos nossos olhos -
quem limpará este sangue de nossas mãos?
Até então a Igreja era o árbitro da moral.
A guardiã da verdade moral
A idéia de que não existe uma verdade
fixa com "V" maiúsculo
parece-nos um lugar comum no século XX.
Mas, Nietzsche foi um pioneiro nesta forma de pensar.
Hoje parece-nos normal porque aceitamos mais ou menos
a idéia de que não somos determinados
por forças exteriores.
E de que a vida está aí para a construirmos,
fazermos escolhas, nos desenvolvermos
e sermos responsáveis por tudo isso.
Penso que Nietzsche é o primeiro grande filósofo punk.
Eu o imagino no Panteão com um piercing no nariz
com dois dedos apontados na direção do Panteão filosófico.
E isso, paradoxalmente, é um aspecto positivo.
Apesar de seu niilismo mais aparente, ele é o filósofo
mais afirmativo porque nos incita a pensar
por nós mesmos.
A sua filosofia não é um guia para quem pensa como ele
é um guia para quem pensa por si mesmo.
Ainda que Nietzsche tenha sido um grande libertador,
o tipo de liberdade que ajudou a nascer
tinha uma carga terrível.
Era muito consciente de que a morte de Deus
havia deixado um vazio sobre as certezas que existiam.
E para superá-lo tentou algo que ninguém tentara antes
e por isto pagaria um preço muito alto.
Ele queria ser o imoralista da nova sociedade pós-Deus.
Ele se impôs uma tarefa impossível de realizar.
Ninguém poderia realizá-la.
E podemos sugerir de modo grosseiro ou simplista
que ele se refugiou-se na loucura
Creio que uma fuga deste gênero era inevitável.
O drama que se passou na mente de Nietzsche
em seus últimos e decisivos dias
antes de ser encontrado em estado de demência,
refletiam em seus últimos dias
um horrível despertar
ou uma reavaliação dos seus próprios valores.
A viagem filosófica de Nietzsche
terminou em loucura aos 44 anos.
Até que ponto a responsabilidade
que se impôs como pensador
no fim o destruiu como ser humano?
Em sua travessia pelo desconhecido pode-se
descobrir a verdade última sobre o que realmente
significa ser humano, demasiado humano.
Além do Bem e do Mal
Quando chegamos à maturidade
só nos lembramos
dos momentos verdadeiramente notáveis
que dizem respeito à nossa infância.
A seqüência dos anos passa rapidamente.
à minha frente como um sonho confuso.
Apesar disso certas coisas permanecem vívidas
e vitais na minha alma.
E dessas coisas junto ao obscuro e tenebroso
pintarei meu retrato.
Nasci em Röcken, perto de Lutzen, em 15 de outubro de 1844.
Recebi o nome de Batismo de Friedrich Wilhelm.
Meu pai era o pastor do povoado.
O retrato perfeito de um pastor de província.
Cheio de dons do espírito e do coração.
Adornado com todas as virtudes de um cristão.
Teve uma vida tranqüila, simples, e feliz.
Durante o sermão do seu batismo, seu pai perguntou...
"O que será desta criança - o bem ou o mal?"
E descreveu todas as coisas que poderiam acontecer a uma criança tão pequena...
... os pecados e tentações que alguém tão jovem poderia encontrar
Ao fazê-lo, ele traçou uma radical dicotomia entre o bem e o mal
Muito mais tarde, Nietzsche escreveu um livro intitulado "Além do Bem e do Mal"...
... e por toda a sua vida ele tentou borrar esta oposição radical...
relacionando o bem ao mal, para torná-los dependentes um do outro.
A infância de Nietzsche, provavelmente, foi a época mais feliz da sua vida.
Quando tinha dois anos sua irmã nasceu.
E um irmão um ano depois .
Mas em 1847 a catástofre ocorreu.
Diagnosticaram no pai de Nietzsche
uma enfermidade terminal em seu cérebro.
Em 1849, seu pai morreu e um ano depois seu irmãozinho morreu
Nietzsche sempre olhara para o seu pai...
como uma autoridade mundana tanto quanto espiritual...
...e por um ano inteiro...
...ele o tinha visto lutar contra a sua grande dor e sofrimento
E quanto ao Deus para quem seu pai trabalhava, a quem ele servia...
Nietzsche perguntava por que Deus punira seu pai com tanto sofrimento
Isto foi um fator decisivo nas primeiras dúvidas de Nietzsche sobre o cristianismo
Nietzsche tinha apenas 5 anos quando perdeu
seu pai e seu irmão.
Ele mudou-se com a mãe e a irmã para Naumburg
Lá foi enviado ao internato de Schülpforta
a 7 quilômetros de distância.
Uma Escola com uma grande tradição
em educação religiosa.
Quando nos mudamos para Naumburg,
o meu caráter começou a mostrar-se.
Eu já havia experimentado uma considerável
tristeza e dor na minha curta vida.
Já não era tão alegre e despreocupado
como são as crianças.
Meus colegas do colégio caçoavam de mim,
devido à minha seriedade.
Desde a infância buscava a solidão e a encontrava
melhor sempre que me entregava
a mim mesmo
sem ser importunado.
Este é o certificado de quando terminou
seus estudos.
E nos fornece mais informações do que
apenas suas notas.
Diz que era um aluno diligente,
que se comportava bem
e nas aulas de educação religiosa demonstrava
um grande interesse pelos ensinamentos
do cristianismo.
E que aprendia com igual facilidade.
Mais tarde em sua vida,
Nietzsche declararia ser o anticristo.
Mas, por enquanto, não dava mostras deste sentimento.
Depois da Escola foi estudar Teologia na Universidade
de Bonn com a idéia de ser pastor
como seu pai fora antes dele.
No domingo de Páscoa de 1865, recusou-se
a comungar na Igreja local de Naumburg com a sua família.
Neste mesmo ano, abandonou
sua vocação religiosa
para estudar línguas como filólogo clássico.
Na carta para sua irmã, Elisabeth, explica suas razões:
Te escrevo isto, querida Elisabeth, só para contar
as verdades mais comuns para os crentes.
Toda verdade na fé é infalível.
Ela cumpre aquilo que o crente espera encontrar nela.
Porém, não oferece a mínima base para
estabelecer uma verdade objetiva.
Aqui, os caminhos do homem se dividem.
Se queres alcançar a paz e a felicidade, então crês.
Se queres ser um discípulo da verdade, então busca.
Com freqüência encontramos em Nietzsche uma crise
e uma reação relacionada a ela.
Este também é o caso do abandono da religião.
O anticristo é a mais explícita declaração contra
o cristianismo e contra a religião em geral.
Vinte anos depois que havia abandonado a fé.
Escreve seus trabalhos como monumentos às suas crises.
O mais provocativo ataque à religião
veio com a parábola do homem louco.
Escrita no final de sua vida.
Onde ele proclama a morte de Deus.
Nunca ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã
acendeu a lanterna e correu
ao mercado gritando sem cessar: "Procuro a Deus!
Procuro a Deus!"
E como lá se encontrassem muitos daqueles
que não criam em Deus
despertou com isso muitas gargalhadas.
Então ele está perdido? perguntou um deles.
Ele se perdeu como uma criança? disse outro.
Ele se escondeu?
O homem louco se lançou para o meio deles
e trespassou-os com o seu olhar.
"Onde está Deus?" gritou ele.
"Já lhes direi!" Nós o matamos - vós e eu.
Todos somos seus assassinos!
É evidente que o homem louco adverte que
um cataclismo está a caminho.
Creio que o mais importante para Nietzsche é uma série
de eventos intelectuais no século XIX
que em conjunto acabariam por solapar os fundamentos
da civilização e da moral cristã.
Se tomarmos Darwin como exemplo, vemos que
ele foi educado em um
contexto teológico muito religioso.
E Nietzsche assinalava que antes de publicar
sua teoria da seleção natural
a manteve escondida por 20 anos.
Darwin temia as mesmas tremendas conseqüências
do tipo niilista que Nietzsche detectava em sua teoria.
E que terminaria por solapar toda a base metafísica
da moralidade ocidental.
Se demonstraria que o mundo funciona muito bem
e de forma consistente sem necessidade
de qualquer intervenção divina.
Em 1869, dez anos após Darwin publicar
a "Origem das Espécies",
Nietzsche foi nomeado professor de filologia clássica
na Universidade da Basileia.
Havia se libertado das amarras do cristianismo.
Porém, agora procurava algo para substituí-lo.
Sem as recompensas e os castigos divinos,
o sofrimento humano era incompreensível.
Nietzsche buscou a resposta na filosofia
E a encontrou na doutrina do pensador ateu alemão
Arthur Schopenhauer.
Aqui encontrou o consolo que tanto buscava
para trazer sentido a um universo sem Deus.
Uma vez que Nietzsche reconhece que não
se pode crer no benevolente Deus cristão,
É natural que se sinta atraído pela
filosofia de Schopenhauer.
A filosofia de Schopenhauer é necessariamente pessimista.
Reconhece que a experiência humana não é
agradável de maneira geral.
E que existem certas formas para nos acomodarmos
a estas verdades.
Formas a que Nietzsche se refere no seu primeiro livro
"O Nascimento da Tragédia".
A verdade de Sileno:
"A melhor coisa é não ter nascido.
A segunda melhor é logo morrer."
Segundo Schopenhauer, havia uma forma
de escapar ao sofrimento.
Ainda que momentaneamente,
através da arte.
A arte tinha um papel muito importante,
sobretudo a música.
Durante a experiência musical,
você pode transcender seus sofrimentos
por alguns instantes.
Para Nietzsche, a melhor confirmação da teoria
de Schopenhauer era a música de Richard Wagner.
Nietzsche viu três vezes a ópera Tristão e Isolda.
Ele se identificou com o sofrimento dos protagonistas
O comovia a extática experiência
da representação.
Wagner se converteu na figura de pai substituto para Nietzsche.
que com freqüência visitou sua casa
à beira do lago de Tribschen
durante o ano de 1870.
Na arte do compositor, Nietzsche viu a possibilidade
de um renascimento da cultura européia.
Baseado no modelo grego clássico da tragédia.
O livro de Nietzsche, "O Nascimento da Tragédia"
foi amplamente inspirado por Wagner.
A música de Wagner representa o ideal pré-cristão
simbolizado pelo deus grego - Dionísios.
A cultura dionisíaca era selvagemente enérgica;
selvagemente musical.
Nietzsche a relacionava com a dança,
como, de fato, a estudou historicamente.
Era associada à embriaguez,
intoxicação, os excessos, a alegria,
e a mais absoluta insensibilidade à tristeza, à dor, e à tragédia.
Nietzsche buscou uma resposta filosófica
ao sofrimento da existência
à medida que se debilitava pelas enfermidades crônicas,
Nasceu com uma severa miopia, e sempre fora
uma criança enferma.
Durante a guerra franco-prussiana, contraiu disenteria
e difteria quando servia como médico.
E acredita-se que contraiu sífilis em um bordel
quando era estudante.
Por volta dos trinta anos, Nietzsche tornara-se
parcialmente inválido.
A cada duas ou três semanas,
passo 36 horas de cama.
Um autêntico tormento.
Talvez esteja melhorando gradualmente
mas este inverno foi o pior que podia ser.
Não paro de pensar no esforço que representa
passar o dia.
Quando a noite chega não tenho nenhum prazer na vida.
Surpreendo-me o quão difícil representa viver.
Refere-se a si mesmo como um enfermo
Porém, nunca explica qual é a enfermidade, jamais.
Faz tratamento de algo relacionado à época dos anos 80.
Já que nunca confessou que padecia de sífilis
não estava seguro de que deveria
discorrer sobre isso em suas obras.
Porém, descreve seus sintomas com tanta clareza
que é difícil acreditar que seus leitores,
os homens, pelo menos, não soubessem
o que estava descrevendo.
Porém, isso afetou profundamente sua vida.
dado que vivia como um inválido muitos dias do ano.
Pois, havia muitas coisas que não podia fazer.
A enfermidade de Nietzsche vai ser
um ponto de mudança decisivo em sua vida,
tanto física quanto filosoficamente.
Em 1876, na inauguração do grande teatro
de Wagner, em Bayreuth,
Nietzsche sai depois do primeiro ato do Anel
sofrendo de uma misteriosa doença.
A sua relação com Wagner estava tensa devido
às objeções de Nietzsche ao nacionalismo do compositor.
Abandonar o Teatro em meio a uma apresentação
foi a gota d´água.
Em Bayreuth, Nietzsche sentiu literalmente náuseas
e estas náuseas eram evidentemente
um ponto de mudança simbólico e um sintoma físico
que expressava um estado psicológico.
Não tinha estômago para suportar o falso entusiasmo.
O tipo de reverência que Wagner impunha e ostentava
causava-lhe náuseas. Teria de partir.
A ruptura com Wagner tornara-se inevitável.
Não podia mentir. Sinto muito maestro, não me sinto bem.
Wagner não perdoava algo assim.
Sua saúde havia deteriorado, e creio que
ele necessitava da sua própria filosofia
para enfrentar a vida e seus problemas.
E a solução de Schopenhauer e Wagner
a fuga momentânea pela música já não era
suficiente para ele.
Deixei de ser pessimista nos piores anos de minha vida.
O instinto de auto-restauração proibiu-me
uma filosofia de pobreza e desalento.
É assim que me parece agora,
um longo período de enfermidade.
Descobri a vida de novo, incluso a mim mesmo,
por assim dizer.
Dedicarei minha vontade à saúde, à vida, a uma filosofia
à Vontade de Poder.
Em algum lugar, ele diz: Vós mesmos sois
esta Vontade de Poder.
E creio que, em última instância, Nietzsche acreditou
que tudo era uma questão de autodomínio,
de adquirir uma espécie de autoconhecimento
que não seja apenas abstrato ou intelectual. Pois, para
Nietzsche, todo conhecimento tem sua
raiz no corpo.
Porque para ele, o autodomínio implica em
adquirir tanto conhecimento quanto possível
sobre o corpo humano, sobre o seu corpo,
sobre a sua fisiologia, sobre a sua psicologia.
Ele sentia que uma das grandes influências do cristianismo
fora banir o corpo da cultura.
E vai dizer que talvez toda a filosofia ocidental
fora um mal entendido sobre o corpo.
E considerava que nossa natureza física
e nossa natureza psicológica
têm relação com a nossa forma de pensar.
E creio que a expressão Vontade de Poder
em alemão "Wille zur Macht"
pode ser entendia como "fazer-se a si próprio".
Podemos considerar isto como parte
do seu legado ao século XIX.
a institucionalização do "fazer-se a si mesmo"
como terapia.
Penso que isto é um aspecto
pioneiro do seu trabalho
que nos leva a Freud.
Quero dizer que sem Nietzsche não haveria Freud.
A nova filosofia de Nietzsche
resultou na publicação de "Humano, Demasiado Humano"
cujo subtítulo é "Um livro para espíritos livres".
Escrito na solidão da pensão da Suíça
era tanto um livro de psicologia quanto de filosofia.
Foi a primeira grande afirmação da
individualidade de Nietzsche
e desafiava a humanidade a pensar por si mesma.
Escreveu-a em forma de curtos aforismos
E em meio a grandes passeios.
Um método de trabalho que continuaria
pelo resto da vida.
E adiante na floresta. Por um caminho de sabedoria,
com passo firme, com enérgica confiança.
Sejas como fores, sejas tua própria fonte de experiências.
Jogues fora o descontentamento com
a tua natureza.
Perdoa a ti mesmo
está em teu poder misturado às tuas vivências.
Teus momentos hesitantes, erros, ilusões, paixões
teus amores e tuas esperanças. Tua própria meta
e nada mais.
Havia se libertado das amarras das antigas
tradições e opiniões que não eram suas.
E para o espírito livre, isto
significava estar disposto, poder atrever-se
a ter novas perspectivas.
E a questionar continuamente as próprias opiniões.
E a ser imparcial o bastante para encontrar
o seu próprio caminho.
De 'Humano, Demasiado Humano' prá frente
Nietzsche condena a si próprio a uma solidão selvagem.
Está consciente de que o livro é muito polêmico
e de que ao publicá-lo, em 1878,
está se afastando de muitos de seus amigos.
O próprio Wagner viu o livro como uma prova
da instabilidade mental de Nietzsche.
Assim, Nietzsche encontrou-se cada vez mais isolado.
Concebeu-se a si mesmo como uma espécie
de heróica figura errante dirigindo-se às montanhas,
rumo a um novo território.
Um ano após a publicação de 'Humano, Demasiado Humano',
Nietzsche renuncia à sua cátedra na Basiléia
devido à problemas de saúde.
Muda-se para St. Moritz, nos Alpes Suíços.
Vivendo de uma pequena pensão, buscou uma morada
nesta casa de hóspedes,
na Vila de Sils Maria.
Durante os próximos dez anos, passaria os verões aqui
e os invernos na Riviera francesa ou italiana.
Mudava-se de acordo com as variações climáticas
para adequá-las à sua saúde.
O ar fresco e rarefeito o encantava
bem como o frescor no verão.
Parece que este era o clima que mais o agradava
já que acreditava que assim pensava melhor.
Encontrou o que buscava em sua prosa,
refiro-me às imagens que utilizou
já que estava buscando algo de uma dureza
não suscetível às emoções humanas.
O que ele encontrou nas montanhas era o retrato
de um mundo em que as emoções humanas
eram insignificantes.
A filosofia, tal como até agora entendi e vivi,
é a vida voluntária no gelo e nos cumes -
a busca de tudo o que é estranho e questionável
na existência, de tudo o que até agora foi banido pela moral.
O gelo está próximo, a solidão é tremenda,
mas quão serenamente se vê as coisas sob a luz.
Com que liberdade pode-se agora respirar.
Quantas coisas sente-se abaixo de si!
Em 1882, quando viajava para a Itália,
o solitário de Sils Maria, como gostava de se chamar,
conheceu o único amor romântico de sua vida:
Lou Andreas Salomé.
Uma jovem estudante brilhante.
Ainda que tivesse apenas vinte anos,
Nietzsche descreveu-a como tão sagaz quanto uma águia
e tão corajosa quanto um leão.
E a considerou sua protegida filosófica.
Ela foi apresentada pelo seu amigo, o psicólogo Paul Reé.
E durante todo este ano, os três foram inseparáveis.
Viajaram juntos pela Itália, vivendo como espíritos livres.
Tentava viver sua filosofia
em companhia.
E durante estas férias na Itália,
falou sobre a idéia de fundar uma comunidade
filosófica quase religiosa.
Em um velho monastério ou algo assim.
Esta era uma de suas fantasias.
Creio que não via Lou como apenas
a companheira ideal desta comunidade de eruditos
mas também sentia atração por ela como mulher.
Nietzsche propôs casamento à Lou Salomé
que não queria casar-se com ele, nem com ninguém.
E chegou a propor um menage a trois
com ela e Reé.
Pouco depois tiveram um outro encontro em Leipzig
e então Lou e Reé partiram.
À medida que o tempo passa, Nietzsche se dá conta de que
o haviam abandonado.
Estava furioso! Odiava-se a si mesmo.
E suas cartas desta época são muito compulsivas.
Em uma delas disse: "Só sinto desprezo da parte
dos que me conhecem!"
Era evidente que voltaria às suas jornadas filosóficas.
"Este último pedaço da vida tem sido
o mais difícil de mastigar.
E ainda é possível que ele me asfixie.
Tenho sofrido com lembranças humilhantes e
atormentadoras deste verão.
Como se fosse um ataque de loucura.
Tenho que exercitar até o último grau o autodomínio.
E a menos que eu descubra algum truque alquímico
que converta esta imundície em ouro,
estou perdido!"
Ele escreveu: "Se não for capaz de converter
esta imundície em ouro, estou acabado!"
Por "esta imundície" referia-se ao seu estado
mental e emocional.
E conseguiu ao escrever Assim Falava Zaratustra
Zaratustra é um personagem de ficção
que empresta a maior parte das características
do próprio Nietzsche.
"Quando Zaratustra tinha 30 anos,
partiu de sua casa e se foi para as montanhas.
Ali, desfrutou de seu espírito e de sua solidão
e durante dez anos não se cansou de sê-lo.
Mas, ao fim, seu coração mudou de parecer
E uma manhã levantou-se ao amanhecer e falou
ao Sol do seguinte modo: 511 00:32:22,760 --> 00:32:24,240 Olhe, estou cansado da minha sabedoria
como abelha que acumulou demasiado mel.
Preciso de mãos estendidas para recebê-lo.
Assim Falava Zaratustra é a obra de um homem isolado.
E isto é evidente na figura de Zaratustra
que tem tanta dificuldade para encontrar discípulos.
No primeiro livro, ele prega para um povo que encontra
após descer a montanha solitária.
E descobre que não têm ouvidos para ele.
Zaratustra é uma figura solitária. Não encontra...
imediatamente o público adequado.
O livro é de algum modo uma busca para encontrar
o público adequado.
E uma busca por parte de Zaratustra para descobrir
qual é sua tarefa.
"Quando Zaratustra chega ao próximo povoado
perto da floresta
encontra muita gente reunida na praça do mercado.
E Zaratustra fala assim às pessoas: 530 00:33:37,350 --> 00:33:39,230 "Ouçam! Eu lhes ensinarei sobre o além do homem.
A humanidade é algo que deve ser superado."
Nietzsche propõe o ideal de superar-se a si mesmo.
Um ideal que ele chama de "o além do homem".
Não como um recurso metafísico fora do indivíduo
mas dentro das possibilidades humanas.
É uma noção paradoxal, mas Nietzsche
insiste que a consideremos.
Como podemos nós, humanos transcendermo-nos?
A idéia do além do homem tem sua origem
na batalha que Nietzsche travou para conseguir
o domínio de si mesmo.
Argumentava que os seres humanos em geral têm
o dever de superar as limitações da sua própria condição.
Mas, o termo original em alemão "übermensch"
podia ser interpretado de muitas formas.
Ainda é com freqüência traduzido
como "super-homem".
Este é um legado da época do Nazismo.
Quando muito depois de sua morte,
Nietzsche foi transformado em um herói
do Terceiro Reich.
O "super-homem" de Nietzsche foi corrompido
pela ideologia fascista
por causa das atividades de sua irmã, Elisabeth.
Ela reeditou alguns dos seus escritos
para promover o ideal ariano.
O übermensch não deveria ser mal interpretado
do jeito que os Nacional- Socialistas fizeram
quando, por meio de sua irmã, idolatraram a Nietzsche...
como o pai espiritual de suas teorias raciais.
Isto é uma interpretação ruim.
Ubermensch realmente quer dizer 'superar-se'...
buscar um novo caminho desprovido de Deus
É sobre a procura da humanidade por seguir em frente com total liberdade...
e que está, neste sentido, sem Deus.
Ao se traduzir super-homem como "homem superior"
como fazem algumas pessoas com ubermensch.
As montanhas são de certo modo,
o mundo superior.
Representavam para Nietzsche um lugar
para a transcendência de si mesmo.
E o oposto era a Terra abaixo.
A vida ordinária, a vida mundana,
que, segundo ele, devemos transcender.
"Eu sou um andarilho errante e um escalador de montanhas.
Zaratustra disse ao seu coração.
O que pretendes?
O que finalmente volta à mim é o meu próprio eu.
Finalmente, iniciei o meu passeio mais solitário.
Porém, quem é como eu sou não pode evitar esta hora.
A hora disse para ele:
'Só agora segue o seu caminho para a grandeza!'
Cume e abismo estão agora unidos.
Já que todas as coisas são geradas
no útero da eternidade.
E estão além do bem e do mal."
Ao conceber o mundo além do bem e do mal,
além das preocupações triviais da condição humana,
Nietzsche transcende a "imundície" como ele a chama,
da sua própria experiência vital
e a converte em ouro filosófico.
Porém, agora vivendo virtualmente
na mais absoluta solidão de Sils Maria
Sacrifica todo contato humano por este mundo
da sua própria imaginação.
A filosofia converteu-se em uma fonte de consolo
para uma vida de decepções e profunda solidão.
"Meu principal artigo de fé é que não se pode florescer
entre as pessoas que compartilham das mesmas idéias
e uma vontade também idêntica.
Eu não tenho nenhuma.
Esta é a minha enfermidade.
Se ao adotar um costume popular eu recomendo Schopenhauer
ou Wagner aos alemães, ou invoco Zaratustra;
estes são os meus remédios.
Acima de tudo, estes são os esconderijos
onde posso perder-me durante algum tempo."
Mas, até mesmo para Nietzsche, uma solidão
levada ao extremo cobra seu preço.
Em 1888, deixa os Alpes para viver na cidade italiana de Turim.
Ecoando a descida de Zaratustra
de sua montanha solitária.
Após haver libertado a humanidade do seu passado
Nietzsche se dedica a redefinir seu futuro.
Começa formulando um novo sistema de valores
para uma sociedade em que Deus não tem lugar.
Uma nova moralidade para além das virtudes cristãs
tais como abnegação e piedade.
Chama este projeto, que esperava que fosse o coroamento
da sua obra de "transvaloração de todos os valores".
"O que é o bem?
Tudo aquilo que eleva no homem
o sentimento de poder.
A Vontade de Poder.
O poder em si mesmo.
O que é o mal?
Tudo aquilo que nasce da fraqueza.
O que é mais nocivo que qualquer vício?
Piedade ante todos os fracassos e debilidades.
Isto é o cristianismo.
Cristianismo é a religião da piedade.
Somos privados de toda força
quando sentimos compaixão.
Tinha grandes planos de transvalorar todos os valores.
Este era o seu projeto.
E os livros que escreveu, O Anticristo
O Crepúsculo dos Ídolos,
Eram parte desse projeto.
Mas, creio sinceramente que ele sabia
que seu tempo chegava ao fim.
Eu encontrei certas evidências
de que ele tinha consciência de sua incapacidade crescente.
Da natureza de sua enfermidade, e que pensava
em sua própria mortalidade.
É um homem que morreu jovem
e que havia passado a maior parte de sua vida morrendo.
É compreensível que se impregnasse de pessimismo
e tivera a tendência a alinhar-se estranhamente
com a morte da mesma cultura que descrevia.
As duas coisas, de uma forma curiosa para ele,
convertiam-se em uma só.
E por isso o encontramos afirmando a
reavaliação de todos os valores.
Coisa que afirma em seu último livro Ecce ***.
Um título previsto para um plano ***ânico de cinco volumes
que nunca escreveu.
E daí o seu pessimismo de não poder realizar após tudo,
a destruição sistemática de todos os sistemas.
O que planejava fazer.
A transvaloração dos valores. Esta é a minha fórmula
para o ato de um reexame supremo
por parte da humanidade.
O destino quis que eu fosse o primeiro ser humano decente.
Ele considerava sua tarefa prescrever
uma moralidade para uma civilização
que teria que seguir adiante sem nenhuma sanção divina.
Ele estava certo ao questionar a história,
ao questionar a lógica, ao questionar todas as suposições
que tinha direito.
Porém, quando chegou o momento
de reconstruir algo
a tarefa lhe resultou impossível.
Tinha uma inteligência absolutamente maravilhosa.
Mas, esta inteligência maravilhosa
o levou a um labirinto sem saída.
E não há saída que se possa encontrar.
Se dermos uma olhada nas cartas que escreveu
no início de janeiro de 1889,
creio que parece óbvio que havia enlouquecido.
Ele assina essas cartas como Dionísio
ou o Crucificado.
Ele realmente se considerava um Deus
suportando todos os sofrimentos da humanidade.
Uma espécie de figura de Cristo.
Mas, creio também que isto refletia a sua teoria
de que todo homem deveria ser um Deus para si mesmo.
Creio que Nietzsche compreendeu
o desafio do ser humano
em uma frase muito simples:
Dizia que toda a humanidade está
entre o animal e o ubermensch.
Isto é, entre o animal e o além do homem.
Este é o desafio da condição humana.
O que cada um faz com seu próprio dom como animal
até onde se pode chegar no caminho
para tornar-se um Deus.
Em janeiro de 1889, Nietzsche sofreu um colapso
em uma rua de Turim.
Sentiu simpatia por uma cavalo que, sobrecarregado,
escorregou no gelo e caiu.
Nietzsche se aproximou do cavalo e o abraçou.
Nietzsche era conhecido como um filósofo
que se opunha à compaixão.
Porém, foi capaz de expressar
em um dos seus últimos gestos ao mundo.
Profunda simpatia pela condição de vida
que animais e seres humanos partilham em comum.
O último ato lúcido de Nietzsche
foi afirmar a sua identidade
não como um Deus
mas como um homem repleto de fraquezas humanas.
Pouco depois de seu colapso em Turim,
foi levado para um sanatório
e em seguida para a casa de sua mãe, na Alemanha.
Foi declarado clinicamente louco.
E passou seus últimos anos sob os cuidados
de sua irmã Elisabeth,
nesta casa em Weimar.
Elisabeth permitia que as pessoas fossem ver
seu irmão, um filósofo,
como se se tratasse de um animal.
E que já estava mentalmente em outro mundo.
Tem-se especulado muito sobre a natureza da sua enfermidade.
Uma paralisia progressiva que podia ser o resultado
de uma infecção sifilítica.
Mas, há certas coisas do diagnóstico que não se encaixam.
Por exemplo, o fato de que viveu como um vegetal
mais ou menos durante onze anos.
É um tempo enormemente longo para alguém
com uma paralisia como a sua.
Em 1900, Nietzsche morreu de infecção pulmonar.
Durante os seguintes trinta anos, Elisabeth controlou
o legado literário de seu irmão.
Incluso a sua obra inacabada
"A Transvaloração de Todos os Valores".
Ela reeditou seções desta obra junto a seleções
de suas notas não publicadas em uma
coleção intitulada "A Vontade de Poder".
Foi através deste livro que ela tentou promover
falsamente Nietzsche como um pensador Nazista.
Quando ele morreu, Elisabeth converteu sua casa
em um santuário para o culto à Nietzsche.
Um culto à sua pessoa e à sua filosofia.
Muitos intelectuais nazistas gostavam de vir aqui.
Até mesmo o Füeher, Hitler.
E ela assegurou a Hitler que Nietzsche
se convertera no filósofo oficial do Terceiro Reich.
O que era absurdo pois Nietzsche odiava todo tipo de nacionalismo.
Podemos dizer que Nietzsche foi
um dos primeiros europeus autênticos.
É muito difícil discutir a questão da relação
entre Nietzsche e o fascismo alemão.
É realmente doloroso contemplar o quão próximo
do nazismo ele parecia estar em declarações como
"eu sou dinamite e vou mandar tudo para os ares."
E é difícil não perceber isto como um desejo genuíno
de que isto acontecesse.
Porém, não creio que fosse assim. Creio que em algum
nível filosófico ele entendeu a idéia de que a sua filosofia
representava um ponto de ruptura, a partir do qual
não percebia que pudesse acontecer esta possibilidade.
Parece irônico que Nietzsche fosse visto como
uma espécie de pensador protofascista.
Pois, ele se coloca enfaticamente contra
qualquer coisa que denigra o indivíduo desta forma.
E diz que se você não pode viver além ou sob a lei,
e a obrigação do filósofo é questionar todos os valores,
o que significa que ele deve viver "fora de"
ou "além de qualquer regra".
Se você não puder fazer isto,
se, como filósofo, achar que esta tarefa é grande demais,
então deve criar outra lei
ou do contrário, buscar refúgio na loucura.
E é interessante como podemos interpretar
a divergência de Nietzsche
no buraco *** da loucura.
No caso desta responsabilidade, o peso era enorme
de modo que ele não suportou e entrou em colapso
sob o peso das questões que colocara a si mesmo.
Talvez estas questões sejam grandes demais
para que apenas um indivíduo as pense.
A melhor virtude do grande pensador
é a magnanimidade com que, como homem do saber,
intrepidamente e amiúde com certo embaraço,
freqüentemente com uma sublime zombaria
oferece a si mesmo e sua vida
ao sacrifício supremo!