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Bom dia. A primeira declaração
que eu quero fazer é que vou falar em espanhol.
Vocês já perceberão a razão
o estado defeituoso do meu português.
Então, vou agradecer, especialmente, às pessoas
que me convidaram à Universidade de Santa Catarina.
Um convite sempre é emocionante,
apesar de que estamos obrigados a ser pudicos
em qualquer conferência, ou numa palestra.
Agradeço muito especialmente ao Raul Antelo
e a surpreendente lembrança
que fez de um escrito que tinha esquecido.
Agradeço à professora Liliana Reales
e à diretora de Cultura da Universidade de Santa Catarina,
ao cônsul Emilio Nefa.
Todos esses agradecimentos, já se disse aqui,
não são, senão, a tarefa última do orador.
O orador é grato de que haja
a benevolência de poder ser escutado.
É um velho momento civilizatório,
este que estamos protagonizando aqui:
alguém fala, outros escutam;
os que escutam falarão – nesse momento ou em outro.
É uma sorte de contrato primordial da cultura.
Daí a pudica emoção de todo ato como este.
Quero fazer uma primeira pergunta para anunciar nosso tema,
que é o tema das Malvinas:
Quando a Inglaterra escolheu o mar?.
É um tema central da história contemporânea.
O grande estudioso da história inglesa,
Carl Schmitt, que é um pensador profundo e problemático,
pensou que o momento fundamental da história inglesa
- que foi sua escolha pelo mar,
não pela terra - foi seu ato massivo,
e tecnológico e comercial, voltar-se para o mar,
pode-se encontrar esse ato no centro de uma obra literária.
Carl Schmitt disse que só revisando
profundamente Hamlet de Shakespeare
é que se pode entender em que momento a Inglaterra
decidiu converter-se em um império moderno do mar.
Chama a atenção que uma decisão marítima e mercantil,
por meio da qual se formou um grande império do século XVII em diante
possa ser encontrada em um grande texto literário.
Será esse um vício do analista?
uma paixão literária indevida do pensador político,
que procura encontrar na literatura
o que se poderia encontrar muito mais facilmente
em uma simples história mercantil?
Ou é uma projeção refinadíssima de análise histórica,
em que os textos literários não são só literários,
mas contêm eles mesmos todas as tensões da história?
Se isto for assim,
se encontrássemos nos grandes monólogos
de Hamlet, ou do Rei Lear, ou Macbeth,
as razões pelas quais a Inglaterra
se volta para a dominação dos mares;
se encontrássemos nos grandes textos de Shakespeare
a ideia da soberania marítima imperial da Inglaterra,
sem dúvida, a tarefa latino-americana
de pensar as Malvinas recuperadas
para o Continente
tem que ser uma tarefa política,
diplomática, econômica e também literária.
Todas essas forças da reflexão, da análise,
do pensamento crítico -desde a literatura
até a economia política- devem colocar-se em jogo,
por meio de algo que possa construir
um horizonte que as conjugue ou as contenha.
Esse horizonte não pode ser outro
que o de uma ética anticolonialista,
anti-imperialista, capaz de fazer
um novo chamado de convivência entre os homens,
e gerar um novo humanismo reparador.
É tarefa política de nossos países chegar
a esses grandes níveis de compreensão da história.
Isso pedimos a nossos políticos,
a nossos economistas, a nossos diplomatas.
Essa é uma grande tarefa política,
de dimensões éticas absolutamente inovadoras,
porque implica reformular as condições da vida
nas novas perspectivas históricas do nosso planeta.
Essa é a importância que têm as Malvinas.
E deve-se começar a pensá-las
a partir da história contemporânea
e da formação do Império Inglês.
Não digo essas palavras fazendo reparos morais,
nem críticas insubstanciais,
que poderiam servir
a um anti-imperialismo de circunstâncias
–estas circunstâncias seriam passageiras.
Se digo a palavra "imperialismo"
é porque quero fundamentá-la efetivamente
em fatos políticos, éticos,
sociais e literários, que pressuponham
a vocação anti-imperialista de nossos povos;
uma capacidade efetivamente reconstrutiva
de seu próprio pensamento político.
Não é cômodo o que estamos dizendo,
nem vão ser cômodas as possibilidades políticas
do nosso Continente,
porque não pensamos por meio do anátema,
senão da auto-reconstrução
de nossas próprias vidas políticas.
E isso nos obriga a dizer que a Inglaterra,
ou Grã-Bretanha ou o Império Britânico,
é uma construção histórica extremamente complexa.
Não responde somente
a uma mera vocação de domínio
que se poderia encontrar na alma obscura dos povos.
Responde a um projeto,
que se intitulou "projeto civilizatório".
Quando a Inglaterra conquista a Índia
não pensa somente que ali vai encontrar
matérias-primas,
ainda que isso ocorra.
Na ambição econômica da conquista da Índia
pode-se ver em primeiro lugar
a reflexão e a ideia de que se construía
um império mercantil sobre as matérias-primas
têxteis que a Índia lhe permitia elaborar.
Quando a Inglaterra pensa na Índia,
pensa com seus comerciantes de têxteis,
com sua infantaria da marinha;
pensa com seus fuzileiros de infantaria da marinha,
pensa com seus capitães dos barcos de guerra
e pensa também com seus poetas.
A Inglaterra fez da Índia
a jóia mais importante da coroa.
Na Índia, a Inglaterra encontra
possibilidades econômicas em um grande quadro mundial
da divisão internacional do trabalho
e encontra também possíveis razões
de auto-justificação como império.
O estudo da relação entre a Índia e a Inglaterra
é célebre no trabalho de muitos economistas.
Quero recordar, em especial, o modo em que
essa relação figura nos grandes escritos de Leon Trotsky.
Em A revolução permanente, um texto
de grande importância na história do século XX,
Trotsky analisa esse nó da história mundial,
quase com a mesma pergunta que faz Carl Schmitt
em relação à obra de Shakespeare,
e à expansão marítima da Inglaterra:
"Como definir o século XX?"
Trotsky diz: “Na relação desigual
e combinada que se institui nas relações políticas
e sociais que entabulam a Inglaterra e a Índia;
uma é a dominadora, mas ambos os polos da relação
estabelecem o modo em que temos que compreender
um mundo em desequilíbrio,
um mundo com uma estrutura de injustiça
e um mundo em revolução.”
Isso escreveu Trotsky em A revolução permanente.
O nó do século XX era
a relação entre a Inglaterra e a Índia;
relação díspar, desigual e de exploração colonial.
Portanto, desatar esse nó do século XX
era a entrada principal para a compreensão do modo
em que se estabelecia a civilização contemporânea.
No século XX, as coisas não ocorreram
do modo que Trotsky as previu,
e não ocorreram do modo previsto por Trotsky
em relação à Índia.
É sabido que a descolonização da Índia aconteceu
por meio de um grande movimento
profundamente enraizado nos valores culturais
e religiosos do país;
que seu líder foi um autêntico líder,
que entendeu a política
não como a expressão de uma força,
senão como a expressão vigorosa da ausência de uma força:
o pacifismo de Gandhi e a não-violência eram formas da ausência de uma força.
A famosa foto de Gandhi tecendo em seu tear
é um emblema do século XX, também.
A Índia poderia ser,também, um país
que fabricasse manufaturas obtidas
por meio de suas próprias matérias-primas.
Mas a roca do tear, instrumento
primitivo do tecelão indiano,
estava no próprio centro
da memória descolonizadora da Índia.
A Inglaterra criou uma cultura na Índia,
que é a cultura do colonizador angustiado.
Ou é a cultura do colonizador orgulhoso
de sua missão civilizatória.
Estão as grandes poesias de Rudyard Kipling,
que é conhecido por seus escritos Kim,
e O livro da selva,
mas muito mais conhecido por suas apologias
ao homem branco: o homem inglês,o dominador do mundo.
Esse é um grande poeta do colonialismo inglês
–porque se o colonialismo faz suas apologias,
devemos saber criticar as apologias
que o colonialismo faz de si mesmo
com instrumentos políticos e poéticos
da mesma dimensão
daqueles com que o imperialismo construiu sua apologia.
O império inglês quis construir sua apologia poética
por meio de escritos fundamentais, como os de Kipling,
em que a tarefa do homem branco é lamentável.
“O homem branco não goza na dominação”,
diz Kipling.
A resposta dos anti-imperialistas de todo o mundo
foi dizer o oposto: que o homem branco
entendia a dominação como um gozo obscuro,
e que esse gozo era um traço
de inumanidade na humanidade do homem.
Kipling diz: “Nós temos de enfrentar
a pesada tarefa do homem branco como tarefa
não agradável, mas sim como uma tarefa civilizatória,
com todos os custos gravíssimos
que envolve tal tarefa”.
Assim sendo, os movimentos de libertação,
de emancipação e de reconstrução da própria figura
do homem, devem ter em consideração, necessariamente,
o nível em que chegou o imperialismo
na auto-celebração,na celebração do que se atribui como missão
na ordem de criar formas de vida superiores.
A crítica a esse imperialismo,
no sentido de que suas obras não eram superiores,
que o que se chamava superioridade, universalidade,
democracia, eram grandes conceitos,
e seguem sendo grandes conceitos,
mas eram conceitos que encobriam
uma forma de dominação que não se declarava.
O pesar do homem branco, segundo Kipling,
mascarava, no entanto, formas econômicas
e políticas de dominação.
Mas essas poesias eram grandes poesias.
Quem sabe, talvez grandes poesias,
não equivocadas na ordem da poíésis,
mas profundamente equivocadas na ordem política.
Por isso, a tarefa anti-imperialista
ou a tarefa anticolonialista,
que ainda persiste para nossos povos,
tem que ser uma tarefa que indague
mais profundamente também em suas forças literárias.
Dentre os imperialistas angustiados,
está o grande romance
Passagem para a Índia, de Edward Forster.
Também forma parte da história
do colonialismo britânico, mas a partir
de sua crítica sutil e aristocrática.
Existe uma crítica aristocrática
ao colonialismo no romance de Forster,
que põe no centro da vida colonial inglesa o intelectual
que vive a vida de colônias,
que pode ser funcionário colonial,
que pode estar expatriado nas colônias
como um personagem angustiado, banido, exilado.
É o colonialista exilado e se é muito exilado,
se seu exílio é um exílio profundo,
é menos anticolonialista.
Essa é a tese aristocrática do grupo
de Virginia Woolf, por exemplo,
em relação ao imperialismo inglês.
É uma sutil literatura que não critica
a política colonial inglesa,
mas põe no centro de atenção
um personagem desgarrado
que encontra no outro, supostamente selvagem,
que tem outra religião,
no outro que seria inferior a ele, encontra o inverso:
encontra um fator de fascinação,
de sedução, e daí provém
a profunda tese da cultura aristocrática inglesa,
que é a sedução da barbárie.
Por isso, o imperialismo, ou o colonialismo
inglês, não é uma simples peça do mundo contemporâneo.
É uma peça muito complexa
do imperialismo contemporâneo.
Toda a saga de Thomas Edward Lawrence,
conhecido também como Lawrence da Arábia,
pertence aos impulsos do Foreign Office no mundo,
pertence aos impulsos do Serviço Secreto Britânico.
Mas não pertence somente aos impulsos de dominação do Serviço Secreto Britânico,
também pertence a uma alta literatura,
pertence à arqueologia,
pertence ao desenvolvimento das ciências naturais,
em todo o mundo,
e pertence à construção de
uma antropologia do colonizador
profundamente (como disse) angustiado e,
no caso de Lawrence da Arábia,
preparando-se para se tornar o chefe expatriado
daqueles aos que domina
e ao mesmo tempo quer conduzir-los para a libertação.
Que Lawrence da Arábia tenha sido
um agente do Foreign Office
é também um dos acontecimentos
fundamentais do século XX,
porque é um dos grandes escritores
da língua inglesa do século XX;
é um renovador da língua inglesa
com seu livro Os sete pilares da sabedoria
e nesse sentido,como parte do imperialismo britânico,
como parte dos serviços secretos
do imperialismo britânico,
sente a profunda tentação,
como chefe dos que domina,
como chefe das tribos árabes
na Primeira Guerra Mundial,
em combate contra o exército turco;
sente também o sintoma dos membros
da aristocracia intelectual inglesa
que acompanharam o imperialismo britânico
britânico em seu momento de esplendor,
quer dizer,é a pergunta civilizatória por excelência:
“Estará certo o que estamos fazendo?”
Essa pergunta é a de Edward Forster,
é a pergunta de Virginia Woolf,
é a pergunta de Lawrence da Arábia,
poderia ter sido a pergunta de Shakespeare
ou de Coleridge.
E será a pergunta de Borges, também,
que leu todos esses autores.
Essa pergunta -"Estará certo o que estamos fazendo?"-
pode ser respondida com a poética de Kipling:
“Sim, está certo, mas é muito pesado
o que estamos fazendo;
nós o fazemos a serviço da humanidade”.
É uma resposta falsa, mas uma alta poética.
A resposta do outro setor
da aristocracia intelectual inglesa é:
“talvez não esteja certo
o que estamos fazendo, mas,
por via das dúvidas,
façamo-lo de uma forma estetizada,
façamo-lo com as estéticas mais relevantes
do nosso século,
façamo-lo com a estética da anulação do Eu,
estabeleçamos a vontade de domínio da Inglaterra
com uma estética que abandone
toda possibilidade de nos considerar dominadores.
Sofremos com o que fazemos.
Sofremos sendo imperialistas".
Essa é a alta doutrina aristocrática do imperialismo.
Não escarnecemos disso, não rimos disso,
não pensamos que isso seja um gesto absurdo,
banal, de pessoas inadequadas.
Pensamos que essas pessoas exigem
de nosso anti-imperialismo,
de nosso latino-americanismo,
esforços intelectuais ainda mais profundos,
a aquisição de novidades teóricas
ainda mais explícitas,
e de todo o pensamento filosófico da humanidade.
Porque para responder a este estilo intelectual do imperialismo
(que já não existe,
o imperialismo de agora é um imperialismo decadente,
basta ver os políticos ingleses falando,
por exemplo Cameron, são muito grosseiros.
Seus grandes poetas não estão mais aí,
não existem mais.
Basta ver hoje um debate da Câmara dos Lordes,
é um debate de uma grande pobreza intelectual.
Em qualquer um dos nossos países,
ainda que com as suas deficiências políticas,
que não são poucas,
qualquer debate em nossos parlamentos,
que são muito deficientes,
tem, às vezes, traços muito mais iluminados
que o debate da Câmara dos Lordes.
Esses grandes nomes já não existem mais,
esses que eu quis pronunciar aqui,
revelar até que ponto este momento
da história da humanidade,
de tanta transcendência para nós,
chegou a tal ponto que
devemos ser nós os últimos
que escreveremos a história dos impérios.
Desse império que estou falando,
e do outro, daquele que teremos que seguir falando.
Sabemos a que império estou me referindo).
Foram necessárias obras como a de Sartre,
ou de Frantz Fanon, nos anos 60,
para colocar-se ao mesmo nível
de crítica intelectual do imperialismo…
porque o imperialismo britânico
teve forte presença na vida intelectual, filosófica…
A história da Argentina está absolutamente
unida à história do Império Britânico.
Há uma linha interna de referência
na história Argentina da presença da Inglaterra
com operações sigilosas, secretas, ou explícitas.
A cultura inglesa é uma parte fundadora
da cultura argentina.
Para muitos autores relevantes
da história da cultura argentina,
a literatura argentina foi fundada
pelos viajantes ingleses.
Quem eram esses viajantes ingleses do século XIX?
Os viajantes ingleses são muito célebres
na história argentina,
alguns só conhecidos na Argentina,
como os irmãos Robertson, ou Woodbine Parish,
que são grandes escritores e são comerciantes;
são os que vêm por trás do capitão de navio,
são os que vêm com a infantaria da marinha inglesa.
Ou são os que vêm sem infantaria da marinha,
com a literatura inglesa,
que é a literatura dos grandes naturalistas.
Há um viajante da Argentina, que é muito conhecido
(porque também é um viajante do Brasil),
Darwin, que passa pelo Rio grande do Sul
à Argentina e, passa pelas Malvinas,
antes da ocupação británica em 1833.
Esse acontecimento nos interessa.
Darwin, como se sabe, fez uma das obras,
das ciências naturais,
de maior relevância no século XIX.
Sua ideia de que a origem do homem
tem que ser buscada na evolução,
e de que a construção das sociedades
tem que ser buscada na luta pela existência,
são ideias centrais do pensamento evolucionista,
positivista.
Muitas vezes afirmado,
tantas outras vezes refutado,
fez tremer as grandes religiões mundiais;
os espiritualistas de todos os tempos,
sejam religiosos ou não,
tencionaram refutar Darwin.
E Darwin ainda segue causando problemas.
A ideia de que a origem das espécies
surge da natureza, ao longo
de milhões de anos de trato
com o material que a natureza oferece
–sendo o homem parte da natureza,
estabelecendo sua relação com ela por meio da luta–
é uma ideia central do pensamento de Darwin.
Há uma teoria estética muito cruel em Darwin:
o canto dos pássaros, as vozes dos animais,
que ele celebra como poucos,
somente conseguem essa perfeição que têm de,
ao longo dos séculos, sacrificar o mais fraco.
O canto de um pássaro é mais bonito
porque pôde sobreviver na luta pela vida.
De modo que na tese de Darwin
existe sempre uma ideia artística:
sobrevive o mais poderoso
e é esse quem cria as formas da arte.
Mas não podemos fazer uma continuidade aí.
Não podemos dizer isso,
temos que saber diferenciar entre um estilo científico
(queiramos ou não, Darwin segue sendo motivo de discussão)
e as operações de ocupação
militar e comercial do império.
Temos que saber diferenciá-las.
Digo isso porque eu li,
entre tantos artigos que se publicam em Buenos Aires,
que Darwin esteve, suspeitosamente,
uns meses antes (da invasão) na famosa viagem…
Quando passa pelo pampa argentino
recebe um salvo-conduto.
Quem lhe dá esse salvo-conduto?
o senhor dos pampas, o homem poderoso dos pampas,
o governante daquele momento, Juan Manuel de Rosas,
que é o centro de uma viva polêmica na Argentina.
O encontro de Darwin com Rosas
um episódio central da história
das ciências naturais e da história política argentina.
Quando Marx morre, em Londres em 1882,
seu amigo Engels faz um famoso discurso
discurso no cemitério de Highgate.
Diz: “acaba de morrer
o segundo grande cérebro do século XIX.”
O primeiro era Darwin e o segundo era Marx.
Existe uma tentação darwinista
em certos aspectos do marxismo,
assim como existem marxismos antidarwinistas.
Digo isso para que se entenda a complexidade do problema
de Darwin e das ciências naturais:
é a antropologia contemporânea,
é a paleontologia contemporânea,
são as ciências naturais contemporâneas,
parte do império britânico? Ou não?
Se decidíssemos que o são,
seria um inadequado ato de redução das ciências do homem,
as ciências da natureza, a meros atos de ocupação.
Se decidirmos que não,
seríamos também muito ingênuos
ao não ver o grandioso espetáculo das ciências
se expandindo ao conjuro das ações militares.
Não seríamos adequados historiadores,
capazes de compreender o século XIX,
se não víssemos algum tipo de relação,
não causalista, não determinada grosseiramente.
Pelo contrário, há que pontuar
que se o império teve suas voltas,
também protegeu e amparou seus grandes cientistas.
Por isso, pedir para que a Inglaterra
sente à mesa de negociações não é uma tarefa simples,
porque na memória inglesa estão todos esses episódios.
Embora a classe política britânica
seja a mais tosca em toda sua história,
ou, quem sabe, seja o que mais se pareça
às épocas profundas de violência que formaram o império;
a saga dos requintes, dos sonhos incríveis
de sua cultura literária e científica
(apesar de que isso quase já não existe mais)
impõe que, de todas as maneiras,
conhecer esta história possa ser fundamental.
Também para o Brasil,
porém mais para a Argentina,
porque na Argentina existe uma linha interna
da presença britânica que levou
a que no século XX,
alguns governantes dissessem que,
como a Índia,
a Argentina também era uma jóia preciosa da coroa inglesa,
devido ao comércio, às ferrovias inglesas,
às companhias de eletricidade inglesas.
A Argentina tinha todos os seus serviços básicos
nas mãos dos ingleses,
a cultura ferroviária argentina é uma cultura inglesa
e a cultura ferroviária não é qualquer cultura,
a cultura ferroviária ainda tem algo do império britânico.
É a cultura ferroviária que está na Índia,
está nos países africanos.
É a cultura ferroviária que inventa a Inglaterra.
A Inglaterra inventa a ferrovia,
e a ferrovia é uma cultura de formação de povos,
de trabalho disciplinado, é uma cultura do trabalho industrial;
a ferrovia resume toda a indústria do século XIX:
o carvão, o ferro, o transporte de mercadorias.
De modo que a cultura inglesa -e desmentindo um pouco
o prognóstico de Carl Schmitt,
de que a Inglaterra é o mar assim como a Alemanha é a terra,
e isso para Carl Schmitt tem profundas implicâncias na guerra do século XX
– também a Inglaterra inventa a ferrovia.
É a terra, fundamental para o mar,
porque para a divisão do trabalho internacional da Inglaterra
a ferrovia era tão importante como os barcos.
E a Argentina, como o Brasil também,
não tinha nem barcos, nem ferrovias próprios.
O império já era um império transmilitar,
o tecido militar do império
sempre subjazia no interior da demarcação da linha ferroviária,
no itinerário dos barcos, nos frigoríficos...
O frigorífico é muito interessante,
porque os frigoríficos são barcos,
existem barcos frigoríficos e frigoríficos que são barcos,
e a cultura argentina é a ferrovia inglesa,
o frigorífico inglês, os barcos ingleses.
A independência argentina também tem muito da presença britânica,
a independência argentina não pode se escrever sem a ação do Foreign Office.
O Foreign Office é uma presença
fundamental no século XIX e no século XX:
todas as operações de Lord Stanford,
entre Rio de Janeiro e o Rio da Prata,
ajudado pela corte portuguesa,
são parte inerente da história argentina,
impossíveis de separar dela.
É impossível se pensar a Argentina,
a independência argentina,
sem a presença inglesa.
A independência argentina se faz com a aceitação da Grã-Bretanha
–depois da Grã-Bretanha ter tentado
invadir Buenos Aires em duas oportunidades.
A Inglaterra compreende muito rapidamente
que o caminho militar não era o mais adequado,
o compreendem para as cidades centrais e para o território,
e pedirão aos primeiros patriotas argentinos
que não se independentizem da Espanha de uma maneira formal,
por isso que os primeiros exércitos patriotas
seguem atuando em nome do Rei da Espanha,
Fernando VII, que está aprisionado por Napoleão.
Por que existe essa situação?
Porque se os primeiros patriotas argentinos
houvessem declarado de imediato a independência,
a Inglaterra - que estava aliada com a Espanha contra Napoleão –
houvesse tido que atuar, a pedido da Espanha,
contra aqueles patriotas, ou aqueles países,
onde estavam as matérias-primas
que interessavam de fato ao reino da Inglaterra.
Esta situação torna a independência da Argentina
muito complexa, e a partir de aí,
como existe esta situação
(que não existe no Brasil,
na história brasileira não existe esta mesma situação),
na Argentina se desenvolve uma linha pró-britânica
em todos os seus políticos,
sejam de esquerda ou de direita,
e uma linha nacionalista antibritânica
de muitos políticos e intelectuais, sejam de direita ou de esquerda.
Nacionalismo antibritânico de direita e de esquerda.
Essas linhas políticas na Argentina são atuais
e estão em pleno debate em relação às Malvinas.
Quando os ingleses invadem Buenos Aires
(estamos falando do ano 1806 ou 1807),
a frota invasora vem do Sul da África.
E é uma frota muito importante:
são dez mil soldados em uma cidade que é praticamente uma fábrica,
que tinha poucos habitantes a mais que a frota.
Talvez tinha o triplo ou o quádruplo de habitantes
que os soldados ingleses que a invadem e a conquistam.
A gesta da reconquista de Buenos Aires
de algum modo funda a Argentina, antes de sua independência.
E os ingleses não vêm só com o exército,
os ingleses não vêm só com a armada.
Já nesse momento, a armada inglesa era a mais importante do mundo,
posto que havia ocorrido a batalha de Trafalgar,
em que haviam derrotado definitivamente a armada espanhola,
que até esse momento era a mais importante.
O almirante Nelson,
que morre na batalha de Trafalgar,
é o grande herói da marinha inglesa.
Para os nacionalistas argentinos
sempre foi o grande herói da marinha argentina,
também, o almirante Nelson.
Os nacionalistas argentinos zombam dos marinheiros liberais argentinos
dizendo que na calça da infantaria da marinha argentina
levam uma listra negra
que segue sendo o luto pela morte do almirante Nelson
-anedota da política argentina.
A Inglaterra vem também com uma imprensa,
os clássicos não se movem sem imprensa.
Recordam da primeira grande cena de El reino de este mundo, de Carpentier?
Não, de El reino de este mundo de Carpentier não...
El siglo de las luces,
quando a revolução francesa desembarca no Caribe
e da costa se veem as sombras de uma guilhotina e de uma impressora.
A revolução francesa: a imprensa e a guilhotina,
deixo essa interpretação de Carpentier.
O exército inglês que ocupa Buenos Aires
vem com uma grande imprensa
que não consegue se estabelecer em Buenos Aires,
estabelece-se em Montevidéu.
A relação triangular Montevidéu-Buenos Aires-Malvinas,
até hoje nos demarca,
porque a relação das Malvinas sempre foi com Montevidéu,
estando velada a Buenos Aires,
e muito mais problemática,
é a relação Chile-Argentina-Montevidéu-Malvinas.
Por isso, desfazer este nó,
é uma questão latino-americana de suma urgência.
Nessa imprensa se editou um jornal formidável,
chamado La estrella del sur, The southern star,
que imprimiu doze números, que era um jornal de guerra,
o jornal da Task Force inglesa.
Esse jornal era um jornal que promovia a liberdade de culto,
a liberdade de comércio,
é um jornal ideológico de altíssima qualidade.
Porque a Inglaterra não ia só com o exército,
ia com as letras.
E é um jornal de grandes poesias,
poesias ao almirante Nelson
que acabava de morrer na batalha de Trafalgar.
E não eram poesias de pouca importância.
De modo que o império britânico novamente aparece,
não com seus políticos toscos de hoje,
senão que aparece com almirantes e poetas,
e com grandes jornalistas, que muitas vezes eram nativos do lugar.
Queriam que a vida do monopólio espanhol acabasse,
em nome da liberdade de culto, da liberdade de comércio,
de todas as liberdades.
Então o império inglês é um profundo paradoxo
que é a atração pela liberdade em nome da dominação.
Esse é um enigma da humanidade,
e os povos, nossos povos
(que antes chamavam de terceiro mundo:
hoje temos que buscar outro nome,
que tenha a mesma força),
temos que desfazer este paradoxo
de que em nome da liberdade se estabeleça a dominação,
porque também queremos todas as formas de liberdade
e sabemos que a liberdade se vincula a necessidades,
e está, como quem diria, lacrada por necessidades.
Então o império inglês não é uma construção arbitrária,
mas sim uma construção anômala que desfaz,
suga, impede e proíbe liberdades em nome de liberdades.
Daí a complexidade do tema Malvinas também na Argentina,
em que se cruza a tradição nacionalista com a tradição liberal,
que hoje estão em pleno debate.
Antes de terminar esta fala e dizer qual é esse debate,
que é muito importante -também para o Brasil-
queria dizer que as Malvinas sempre foram importantes,
inclusive o debate pelo seu nome.
Existem cartas geográficas inglesas,
sobretudo francesas, que dizem “Falklands ou Malvinas”.
As cartas argentinas do século XIX
dizem “Malvinas ou Falklands”,
existe certa indecisão quanto ao nome,
e algumas cartas inglesas também dizem “Malvinas”.
Hoje isso não seria possível no estado em que está a questão:
ou é “Falklands” ou é “Malvinas”.
O mundo binário que estabelecem as Malvinas,
ligado ao nome; existe aqui uma questão binária
que não caberia nas cartas geográficas do século XIX.
Isto possui várias razões,
e uma delas é a presença da França
na história das Malvinas.
O nome das Malvinas é um nome francês,
não é nem inglês nem espanhol, é um nome francês.
Além disso, as Malvinas foram descobertas pelos holandeses.
Assim como, estabeleceram-se no Brasil, em Pernambuco,
e célebres artistas brasileiros portam o nome "de Holanda",
como o presidente francês.
A Holanda está em muitos lugares,
menos nos territórios dos nobres
célebres do Brasil ou da França.
A primeira posição importante nas Malvinas foi francesa
e o primeiro nome importante
que as Malvinas tiveram foi holandês:
"Ilhas Sebaldinas”,
chamavam-se assim devido ao marinheiro
holandês que dizem tê-las descoberto,
mas não se sabe bem quem descobre as Malvinas.
Estamos falando de 1620, 1630,
estamos falando das primeiras décadas do século XVII.
As ilhas “Sebaldinas” não se chamam mais “Sebaldinas”,
mas poderiam ser chamadas “Sebaldinas”
se a Holanda tivesse sido a Inglaterra.
A Holanda não pôde ser a Inglaterra, e quis ser a Inglaterra.
Porque de alguma maneira
teve que se resignar a um destino continental, a Holanda.
Não pôde ter destino marítimo
como teve, e tem, a Inglaterra.
O primeiro estabelecimento é fundado por um naturalista.
As Malvinas sempre estão ligadas aos estudos dos naturalistas,
ingleses ou franceses.
E, no caso deste naturalista francês
que funda o primeiro porto das Malvinas,
é um marinheiro e naturalista
da zona francesa do norte, de Saint-Malô.
De aí que vem “Malvinas”, ou seja,
o nome provém de um povo marítimo francês,
de Saint-Malô, que está ao norte da França.
É uma pequena localidade portuária da França
e Bougainville, a quem estou me referindo,
provém de Saint-Malô,
é o primeiro que explora as Malvinas como naturalista,
como comerciante, e como político, e como marinheiro.
E desta exploração sai um grande livro de memórias,
em sua volta pelo mundo,
que tem quase a mesma importância
que as memórias de Humboldt sobre América Latina.
E são os naturalistas mais interessantes,
Humboldt, Bougainville...,
que deixam seus nomes nas flores,
nas plantas, nos animais, lhe dão nomes...,
como Colombo que, ao novo continente,
lhe dá nomes religiosos,
lhe põe nomes vinculados à religião católica, às ilhas que descobre,
em nome da Cruz...
Os frades naturalistas vão em nome da Razão
e, ao continente, dão-lhe nomes latinos, não-cristãos.
Daí que os nomes latinos, não-cristãos,
que têm nossos animais, nossas flores,
vêm desses naturalistas: Humboldt,
ou Bonpland que atuou mais na Argentina.
Humboldt mais no norte da América.
Humboldt é um dos grandes mestres de Bolívar.
Bolívar não pôde ter uma relação com Marx
–Marx não o apreciava, ao contrário, o questionava bastante.
Por outro lado Humboldt, o grande naturalista alemão,
estimava muito Bolívar, e Bolívar estimava muito Humboldt,
aí temos um viés muito importante para pensar a história latino-americana.
O bolivarismo, o primeiro bolivarismo,
tem mais a ver com as ciências naturais
românticas que com as primeiras ideias da revolução social,
porque Marx desprezava Bolívar
e Humboldt se encontra com Bolívar, sobe o Chimborazo,
Bolívar sobe atrás de Humboldt
ao Chimborazo e escreve, também,
as memórias poéticas de sua subida ao Chimborazo,
o grande vulcão do Equador.
Por que o vulcão?
Porque a teoria da natureza de Humboldt
é vulcânica e a teoria político-militar
de Bolívar, não a de San Martín, a de Bolívar,
é também vulcânica;
são vulcanistas, não netunistas, ou seja,
não a natureza vista como forma de água,
a veem como parte do fogo,
daí o romantismo e a teoria naturalista
de Humboldt herdada por Bolívar.
E daí o modo no qual o bolivarismo
tem interpretações de direita e esquerda,
também é muito mais ativa no continente
que a gesta sanmartiniana do exército argentino do século XIX.
As razões se encontram menos na política militar
que nas visões sobre a natureza.
Pois Bougainville não teve muita sorte com os nomes
mas deixou seu nome em uma flor: a buganvília,
que é a Santa Rita, em nossos países
a chamam de Santa Rita e em outros países a chamam de buganvilia.
E este homem que colocou seu nome em uma flor cede,
em nome da França, as ilhas à Espanha,
que as reclama sempre, porque de acordo com o Tratado de Tordesilhas,
-está claro ao olhar o mapa- as Malvinas estão encostadas
no território continental do Vice-reino do Rio da Prata.
Então, Bougainville aceita os argumentos da Espanha
e tratados firmados em Londres, em Madrid, e em Buenos Aires,
consente em abandonar o porto San Luís, não...
Porto Luís – o nome de Luís XV – o rei da França.
Por isso, quando explode a guerra,
entre os militares argentinos e a Inglaterra em 1982,
um assessor vai até Miterrand e rapidamente lhe informa:
"monsieur le président há guerra no sul do Atlântico,
os argentinos invadiram as Malvinas”,
e Miterrand pergunta: “que história é essa das Malvinas?”
vá e averigua, e num instante volta
–isto deve ser uma piada–
volta o assessor e diz:
"monsieur le président les Malvines sont françaises" .
Essa era a averiguação que o assessor havia feito,
e não deixava de ter razão
do ponto de vista das lutas dinásticas.
Hoje as dinastias são petroleiras:
British Petroleum, Exxon, Chevron,
por isso é tão importante a questão petrolífera,
são impérios dinásticos, os impérios petrolíferos.
A British Petroleum herda do império britânico
o mesmo olhar do império.
A British Petroleum se chamava antes Oil Iran
– não sei se o cônsul saberia nos dizer –
depois muda seu nome para British Petroleum.
O governo do Irã em 1953
encabeçado pelo ministro Mosaddeq,
era um Primeiro Ministro laico, cai pela questão petrolífera.
E na Argentina também caem governos por causa da questão petrolífera.
A relação entre a França, Holanda, Inglaterra
e Espanha sobre as Malvinas, faz das Malvinas
um lugar estratégico em relação ao olhar
sobre a Antártida, ao petróleo, à pesca.
E em relação à pesca vem desde o século XVII em diante:
pesca de focas, pesca de pequenos peixes chamados de Krill...
Em relação ao petróleo acontece no século XX,
mas nunca as Malvinas deixaram de ser importantes,
não eram ilhas desconhecidas,
eram ilhas sobre as quais os grandes impérios da época,
encabeçados pela Grã-Bretanha, que é a que fica com as Malvinas,
a disputam permanentemente,
e quando o governo argentino se estabelece como tal,
herdando os direitos da Espanha,
as reivindicações foram constantes,
governos de diferentes índoles, o de Rosas que mencionei,
que era um governo de características rígidas
e com certa simpatia para com a Grã-Bretanha,
apesar de encabeçar grandes resistências militares à Grã-Bretanha,
pessoalmente Rosas tinha certa amizade
com o Primeiro Ministro da Grã-Bretanha, sobretudo, com o Lord Palmerston.
No entanto, encabeça um grande feito militar
que é o impedimento da invasão inglesa sobre o Rio Paraná,
algo que implicava a conquista da América-latina,
praticamente era entrar ao interior do continente,
não pela costa.
Era mais importante, que tomar as Malvinas, tomar o Paraná.
Quer dizer, poderiam chegar até São Paulo,
perfeitamente, os brasileiros não podem permanecer tranquilos com isso.
E nesse momento acontecem importantes batalhas marítimas,
mas de rio, marítimo-fluviais, Inglaterra e França coligadas.
Nesse sentido, as reivindicações,
tanto do governo Rosas como dos governos liberais posteriores
-que derrocam Rosas,
com o auxílio inestimável do outro império, o império brasileiro,
sem o qual Rosas não haveria sido derrubado.
A ação militar contra Rosas
tem a importante participação
do exército do Duque de Caxias,
e é o exército que, posteriormente,
se coligará com o exército argentino na guerra contra o Paraguai.
Sem esse exército, dificilmente Rosas teria caído.
Se pode entender a queda do governo de Rosas de muitas maneiras,
essa é uma discussão aberta,
mas o fato é que os governantes posteriores
também reivindicam as Malvinas.
E isso é o que a torna uma causa de todas as correntes ideológicas.
Os grandes governantes que derrocam a Rosas,
e posteriores: Sarmiento, Mitre, os socialistas...
todos reivindicam as Malvinas,
é um ponto de convergência de todas as forças ideológicas da Argentina.
lugar difícil de convergência,
porque aí também converge uma ideologia oficial do exército argentino,
que não há uma única ideologia, no exército argentino:
antes do terrorismo militar dos anos 1970,
conviviam as ideologias nacionalistas e liberais.
Os liberais argentinos escreveram grandes livros
mencionando e demonstrando os direitos argentinos sobre as Malvinas.
O principal livro da tradição liberal
foi escrito por um francês, Paul Groussac, que era um francês argentinizado.
Diretor da Biblioteca Nacional durante 40 anos,
cargo que, paradoxalmente -entendam o paradoxo- agora eu ocupo.
A Biblioteca Nacional da Argentina são dois grandes nomes:
Paul Groussac y Jorge Luis Borges.
E ambos intervêm de modo muito explícito na questão das Malvinas.
Se me permitem também a anedota,
posso dizer que os dois estão intervindo
na forma de como eu estou intervindo também aqui
Raul saberá compreender meu ácido humor.
Não, não é ácido humor, é um humor cético.
Paul Groussac escreve um livro em francês
com a mais interessante documentação que existe.
Tentei expor aqui algumas partes, Bougainville...,
e os demais são os temas de Paul Groussac.
Borges escreve o poema "Juan López y John Ward"
depois da guerra de 1982.
Se me permitem que fiquem cabos soltos em toda a exposição,
porque não poderei retomar todos os assuntos que estive abordando,
vou dizer algo muito breve sobre o debate
entre liberais e nacionalistas na Argentina depois da guerra.
A guerra introduz uma situação nova e de difícil interpretação
porque o governo militar que toma a decisão da guerra,
é o governo militar que tortura,
que faz desaparecer corpos no mar,
é uma ditadura terrorista, cuja compreensão
ainda desafia a vida intelectual da Argentina.
Como um número importante de oficiais das Forças Armadas
pode se converter em um bando de assassinos?
Isso é um tema de trabalho para a vida intelectual.
Não é um enigma, mas não é fácil se converter em assassino,
não é fácil converter os exércitos em máquinas assassinas,
quem sabe seja fácil para os imperialismos,
basta ver a ação dos exércitos de ocupação do Iraque,
Líbia, mas para os nossos exércitos,
o plano sistemático de desaparecimento de corpos...
não era fácil tomar essa decisão,
porque, é claro, havia violência,
evidentemente que se torturava,
evidentemente, que haviam operações clandestinas de eliminação dos divergentes,
dos contestadores, dos dissidentes, evidentemente.
E tudo isso eram ações criminais,
mas o crime sistemático e planejado
era pela primeira vez que ocorria em um país latino-americano.
As tentativas de implantar esse mesmo
sistema no Brasil, de algum modo fracassaram.
E não é porque as Forças Armadas brasileiras
não tiveram projetos nessa linha.
Por muitas razões que não são desconhecidas para vocês
os planos nas Forças Armadas brasileiras
da mesma índole que nas Forças Armadas argentinas
sempre se frustraram em grande medida pela oposição
de altos oficiais do mesmo exército brasileiro,
que queriam reprimir os insurgentes
sem utilizar as hipóteses últimas do poder do Estado,
quer dizer, a morte na clandestinidade do dissidente,
a operação sobre os desaparecidos,
que é a última reflexão que um estado faz sobre o corpo das pessoas,
é uma operação de caráter muito extremo, quer dizer,
matar o opositor e fazer desaparecer seu corpo,
é uma operação de uma abstração
que faz da crueldade última uma forma de governo.
O exército brasileiro teve uma discussão interna acerca disso
e não triunfou o setor que o propunha.
No exército argentino não houve nenhuma discussão
interna e no primeiro momento do golpe se produziu essa política,
que ainda hoje é difícil de definir.
Uma política que nem sequer se parece a nenhuma outra no mundo.
Compará-la com o nazismo é possível
porque houve campos de concentração,
mas houve outras tecnologias, estava o mar,
jogavam corpos no mar,
ou no Río da Prata, que tem uma parte de rio e outra de mar.
Quando esse exército vai às Malvinas
tentando se introduzir na grande corrente sentimental
e emotiva que implica a questão Malvinas na Argentina,
essa questão sentimental e emotiva está em discussão
por setores ultra-liberais que pretendem
uma Argentina despojada dessa questão sentimental.
Quero dizer, pessoalmente, que minha posição
ao respeito é uma Argentina não despojada da questão sentimental,
mas também sustentada nas melhores argumentações,
nas melhores documentações,
nas melhores elaborações e análises éticas universalistas.
Bom, esse exército que vai às Malvinas
tem um primeiro morto, que é o capitão da armada,
Giachino, que era um militar torturador da Armada argentina.
Vejam, é um tema tipicamente borgiano,
o tema do traidor e do herói,
então isto sacode o pensamento nacionalista e o pensamento liberal,
e qualquer nuance que exista entre eles.
Os matizes mais humanistas, o novo humanismo argentino,
porque o capitão Giachino é um herói para certos setores
que cultuam com certos segredos o heroísmo do primeiro morto argentino
nas Malvinas; e a posição liberal,
que hoje é minoritária na Argentina,
e que se expressam em alguns diários importantes,
da tradição liberal argentina, como o diário La Nación.
Estão mal encaminhadas as negociações argentinas com a Grã-Bretanha,
precisamente, porque qualquer tentativa
de desconhecer os direitos da população
–agora também posso falar um pouquinho sobre isso
da população inglesa das Malvinas-
implicaria em trazer toda a questão
para o momento em que morre o capitão Giachino, quer dizer,
um torturador do exército argentino que morre
em frente à casa do Governo nas Malvinas,
frente à casa do Governador.
E nesse sentido não há nenhuma possibilidade para a Argentina de escapar
da instauração do heroísmo do capitão Giachino,
se não se abandona o estilo de negociação que está tendo o governo argentino,
que é um estilo de negociação de forte reprovação da ditadura militar
e de profundo pacifismo,
não só porque é profundo nas convicções
dos políticos argentinos atuais senão porque,
além disso, não há outra possibilidade.
Mas a posição liberal extrema que, curiosamente,
está conduzida menos por políticos argentinos
que por críticos literários argentinos
é que há que abandonar qualquer tipo de negociação
com a Grâ-Bretanha que não inclua os direitos primordiais dos povoadores,
e o abandono total da questão do imperialismo e o colonialismo,
isso supõe, praticamente, construir uma nação chamada Malvinas à margem da Argentina.
Esse raciocínio conduz, indiretamente,
a uma apologia do império britânico.
Mas tampouco temos que deixar de compreender este pensamento,
é um pensamento horrorizado frente
à atrocidade de que o capitão Giachino,
torturador,possa ser um herói.
E esta possibilidade tem tido certa expressão
em um ato que foi feito em Ushuaia,
a última grande cidade no mapa latino-americano,
a cidade mais extrema da Argentina, que está frente às Malvinas.
Esse ato foi encabeçado pela Presidenta da república,
e o Comitê Central dos Veteranos de Guerra
foi encarregado de fazer o discurso antes ao da Presidenta.
O presidente da Comissão de Veteranos de Guerra da Argentina
fez uma apologia ao capitão Giachino
diante da Presidenta da República.
Este é um tema delicadíssimo,
e a Presidenta da República não respondeu nesse momento,
fez um discurso totalmente diferente, antibelicista,
que descartava implicitamente qualquer possibilidade
de declarar herói nacional o capitão Giachino,
e há três dias mudou o representante
do Comitê de Ex-combatentes de Veteranos de Guerra
e colocou no lugar um jovem recruta daquela época,
um jovem soldado que cumpria o serviço militar obrigatório
e tem uma posição totalmente adversa
à que expressou o anterior representante dos ex-combatentes.
Essa é uma discussão terrível na Argentina,
uma discussão da alma nacional…
Hoje a presidenta, não havendo
dito nada no dia do discurso,
responde uns dias depois
mudando esse personagem por outro
que possui uma interpretação totalmente diferente,
quer dizer, o mencionado capitão da Armada
não é um herói de guerra, é um torturador.
Mas agora, na própria exposição deste dilema,
se vê qual é a disjunção que atravessa a Argentina;
é uma disjunção em que o espírito liberal
universalista cosmopolita diz:
"não toquemos mais no assunto;
os habitantes das Malvinas têm o direito à autodeterminação".
E a posição do governo,
que não é uma posição
nem de nacionalismo abstrato
nem está disposta a conceder
heroísmo a nenhum torturador,
e que, ao mesmo tempo,
lê a conjuntura mundial em que
existem forças internacionais
de caráter colonialista e imperialista,
e o diz com diversas linguagens.
Não é a linguagem do texto
que mencionei no início desta exposição,
de Leon Trotsky, não é esta a linguagem;
não é uma linguagem facilmente localizável
como nao seja nos parâmetros de
um constitucionalismo patriótico,
um patriotismo constitucional,
uma nação capaz de recuperar
suas raízes humanísticas, que são muitas,
junto a suas raízes de violência e de terror,
que também não são poucas.
Então, nesse sentido,
está a questão dos habitantes das Malvinas:
quem habita as Malvinas?
Porque as Malvinas têm um núcleo pequeno,
como dizia o cônsul,
um núcleo de povoadores,
majoritariamente, de origem inglesa,
de religião anglicana,
e de certa cultura inglesa arcaica, quer dizer,
não existe nas grandes cidades da Inglaterra,
uma cultura que provém de uma ilha,
é uma cultura insular,
como ilha é Grã-Bretanha também,
e essa cultura tem um pequeno núcleo fundador
de pessoas que estão estabelecidas desde os anos 40,
quer dizer, depois da ocupação britânica.
Em 1840 alguns desses povoadores,
ainda existem seus descendentes,
e uma das descendentes dos primeiros povoadores,
que vêm pelos barcos de guerra ingleses,
é diretora do Penguin News,
que é o único diário que existe nas Malvinas,
onde não há cinema, não há teatro,
há somente um pub, a Globe Tavern,
e nenhuma outra coisa a mais… e internet.
E, além disso, as enormes riquezas
que trazem as licenças de pesca.
Essa é outra grande discussão na Argentina,
que não é fácil resolver.
Seria muito imprudente dizer,
no contexto desta fala,
“essa discussão está totalmente acabada”;
porque os habitantes das Malvinas,
como qualquer habitante em qualquer lugar,
são sujeitos de direito.
O que não pode ser estabelecido de nenhuma maneira
é o direito de autodeterminação
porque seria um direito anti-histórico ou a-histórico,
não existem direitos a-históricos.
Os direitos realmente a-históricos são
os direitos da humanidade que finalmente são históricos.
E se estes direitos da humanidade
são revertidos na história real da criação das nações, efetivamente, estes habitantes têm direitos,
são sujeitos de direito,
de todas suas criações culturais,
de sua língua, sua religião,
desde seu estilo arquitetônico até
a maneira de circular por suas ruas...
As mãos das ruas são diferentes,
as faixas de circulação pelas vias
são as da Grã-Bretanha,
não é uma diferença menor.
Quando o exército argentino ocupa as ilhas,
mudam as vias de circulação nas Malvinas
conforme as que existem na Argentina,
essa foi uma grave alteração cultural.
A posição do governo argentino atual,
é não alterar nenhum dos elementos culturais das ilhas,
invocando o argumento de que a população argentina
tem muitos núcleos de raiz e cultura inglesa
em seu interior territorial.
Não é exatamente a mesma situação,
mas subsistem ainda importantes núcleos de cultura inglesa
no território argentino,
pelas leis argentinas e com a cultura inglesa,
igualmente, sua parte mais importante,
ocorre em nosso país: o futebol...
elemento fundamental, e muitos outros costumes,
e formas literárias, inclusive a questão Borges,
da qual não vou falar aqui,
porque está intimamente ligada ao que diz seu poema:
o profundo lamento pela guerra;
porque toda a literatura e a poética de Borges
têm a ver com um apelo à Inglaterra,
por exemplo, o conto
"História do guerreiro e da cativa"
em que sua avó inglesa deve compreender
que existe uma cativa inglesa,
esposa de um capitão-índio do Pampa argentino.
Essa ideia de junção cultural de Borges,
essa espécie de cosmogonia mística borgeana,
sobre determinadas fusões da cultura inglesa
com a cultura do Pampa, ou com a cultura crioula.
A literatura borgeana é um enigma,
um enigma muito interessante.
Daí o profundo lamento de que
Juan López y John Ward tenham se confrontado nas Malvinas,
e caído juntos em meio à neve e à corrupção, diz.
Quer dizer, é um profundo lamento pela ideia da guerra,
e esse lamento é um lamento interessante,
que também deve ser parte da ação dos nossos países
pensar que o mais exímio escritor argentino do século XX
tenha pensado a partir desse ponto de vista.
Porque a Inglaterra,
e Borges não é um escritor inglês como às vezes o acusaram,
a Inglaterra também é uma veia interna na literatura de Borges:
com Shakespeare, Coleridge, Conrad...
Para terminar -já é momento de terminar esta fala-:
nada do que se refere às Malvinas irá ser fácil,
nada do que se refere às Malvinas
do ponto de vista da Argentina e daquele da América Latina,
-que tem que ser quase o mesmo ainda que não seja o mesmo,
porque o povo brasileiro
não tem por que carregar todas as formas
em que se deu a história argentina
em relação à Inglaterra e às Malvinas-
porém a partir de um novo cenário latino-americano
que só pode ser aquele que Raul Antelo expunha:
com novos direitos,
com novos direitos da natureza,
a natureza é sujeito de direito também,
os animais são sujeitos de direito também;
o gato que temos em nossa casa é sujeito de direito também.
Com a expansão da ideia de sujeito de direito,
nossos países dão um passo civilizatório importante
e recolhem o melhor da história da humanidade
e se colocam na situação de eles mesmos contarem,
de eles mesmos relatarem, inclusive,
a história do imperialismo,
melhor do que poderia fazer o agente imperial
ou o literato imperial.
Então, nesse sentido, resolver apressadamente
a questão dos habitantes das Malvinas
não é o mais indicado.
A reivindicação da Argentina
para que a Inglaterra aceite o diálogo,
que não é muito fácil,
uma vez que a Inglaterra aceite o diálogo
tem que aparecer de imediato a questão da soberania,
e a Inglaterra sabe disso.
Por isso, as ações que estão sendo feitas na Argentina
possuem várias direções:
o oferecimento de viagens aéreas,
que os habitantes atuais das Malvinas têm rejeitado;
um curta publicitário muito importante,
que foi motivo de grande discussão na semana passada:
um atleta argentino que irá aos Jogos Olímpicos de Londres
está treinando nas Malvinas e na legenda,
que sai depois do vídeo,
que passou em toda a televisão argentina, se diz:
"atleta argentino treinando em solo argentino
para competir em solo inglês".
É um curta muito extremo e muito interessante,
porque, efetivamente, a equipe de filmagem não pôde afirmar,
não declarou, que iria filmar esse curta, esse vídeo.
Esse vídeo se converteu em uma peça simbólica fundamental,
não agressiva, com certo tom provocador.
São estilos diplomáticos que me parecem aceitáveis,
a via de estender a mão amistosamente aos povoadores do lugar: viagens aéreas como houve nos anos 60...
Esta engenhosa publicidade
que se encontra no limite da diplomacia
-explorar os limites da diplomacia faz parte da diplomacia-
está nos limites da linguagem possível da diplomacia,
está justo à beira, esse curta publicitário,
que, profissionalmente, está bem feito
e toma as Malvinas de uma forma comovedora:
com os pinguins, o mar que bate contra as margens,
as edificações mais importantes,
que todo argentino conhece de memória.
Não conhecemos as Malvinas, seu território,
mas conhecemos a forma da sua igreja,
a redação do Penguin News,
os bares principais, a Globe Tavern,
e o atleta argentino que vai competir em Londres
arriscadamente caminha na madrugada quase em penumbras
e corre como uma espécie de soldado espectral
da Argentina pelas ilhas.
Tudo isso supõe outro viés da convenção,
também para o governo.
Estes vieses são os que são rechaçados
pelos críticos literários liberais -que não são muitos,
mas são muito influentes na opinião pública.
Estas ações liberais
-por mais bem intencionadas que sejam,
porque são ações vinculadas aos símbolos
e à diplomacia, e a nenhuma outra coisa-,
confrontam um governo democrático que tem muitos vieses
-discutir o governo argentino não é fácil,
porém seu viés progressista é o viés dominante;
bem como o seu viés de raiz humanística;
e suas formas de intervenção estatal na vida pública
recompõem formas profundas de justiça,
e isso também é uma predominância,
para além da vida cotidiana argentina,
que é tão complexa e tão árdua
como a de qualquer povo latino-americano.
O pensamento liberal diz:
“por mais boas intenções que haja,
estas ações conduzirão, de novo, a uma guerra,
porque a Inglaterra é incomovível”.
A posição do governo argentino,
posição que me parece mais sensata e mais viável
para os latino-americanos.
Arrisco-me a dizer que sem esta posição
tampouco haverá América Latina.
É que as ações estão empenhadas
em nome de uma nova visão latino-americana,
e obrigam a Argentina a ser outra também,
a que haja uma coincidência histórica e compartilhar,
novamente, o rumo entre a Argentina territorial
e uma espécie de Argentina exilada,
com cultura inglesa... se há um encontro e
se compartilha um rumo territorial histórico,
irá ser um diálogo de duas culturas.
É algo que, inclusive,
interessaria aos habitantes das ilhas
que hoje odeiam os argentinos,
que os levaram a uma guerra.
Esse sentimento também tem que ser compreendido,
porém os habitantes das ilhas têm que compreender,
também, o grande quadro histórico que
causa o imperialismo mundial,
que dá lugar a este horizonte de reflexão
que a tradição liberal extrema da Argentina,
temerosa de uma nova guerra,
que não irá acontecer de nenhuma maneira,
não está em condições de compreender:
que é a impossibilidade de abandonar uma razão crítica
ao colonialismo do século XIX e XX.
Nossos povos não podem abandonar esse horizonte,
que é um horizonte da razão crítica e dialética,
que constrói nossas liberdades sobre a base da
compreensão crítica e adversa
ao modo no qual se desenvolvem
os imperialismos e os colonialismos.
Isto pode ser feito
resguardando todas as liberdades
e convidando o povo atual das Malvinas,
de fala inglesa, de religião anglicana,
de culturas cotidianas totalmente diferentes das latino-americanas;
convidando-os a uma aventura histórica
de transcendental importância que o seria,
também, e quase em primeiro lugar, para eles mesmos.
Isso supõe novas pedagogias,
a utilização democrática das psicologias,
uma nova interpretação do terrorismo militar,
drástico, como a Argentina está fazendo,
com juízos permanentes aos militares
que participaram do Terrorismo de Estado.
Esses juízos são a meta fundamental da
história contemporânea argentina;
isso tem tanta importância, ou mais, quem sabe,
que nacionalizar a companhia estatal de petróleos,
devolvê-la novamente ao Estado.
Ou tem a mesma importância.
Para a Argentina hoje é razão de Estado
em relação aos seus recursos
-nas Malvinas há petróleo,
mas nas Malvinas também há direitos humanos.
Essas duas coisas, essa encruzilhada dramática está nas Malvinas.
Então, compreendendo-a como
uma extrema dificuldade do pensamento político,
é necessário advertir que a tradição liberal
não se engana ao dizer que é um problema muito complexo,
não se engana ao dizer que um nacionalismo primitivo,
elementar, erraria, e muito gravemente,
se acreditasse que isso se resolve com medidas coercitivas,
obrigatórias para a parte inglesa.
Esse velho império, decadente, sim,
um velho império que tem memória de ter sido,
mas um império que reduz seus interesses aos interesses econômicos.
Por isso, quando a posição argentina
diz reconhecer aos povoadores das Ilhas Malvinas,
seus interesses, mas não seus desejos,
é essa uma posição de partida;
mas essa posição deve crescer, na minha opinião,
porque não reconhecer os desejos das pessoas não é fácil.
Por isso, uma vez estabelecidos os direitos históricos,
geográficos e sentimentais do país argentino
sobre essa parte da Argentina que tem outra cultura,
evidentemente, deve crescer essa política diplomática
de reconhecer somente interesses e não desejos;
porque, sobre a base do diálogo,
os desejos também podem ser reconhecidos,
quando os desejos se questionam a si mesmos,
a respeito da história dos povoadores desse lugar.
Esta é a aposta do que eu chamo: “humanismo crítico”,
que pressupõe a exploração dos recursos naturais,
em termos racionais, e reconhecendo a natureza
como sujeito de direito;
e a convivência entre seres humanos de diferentes culturas
como uma possibilidade de recriar,
não somente a natureza, senão uma história de justiça
a uma escala da humanidade.
O tema Malvinas, por isso,
não pode ser plenamente interpretado pelo simples liberal.
Tampouco pelo simples nacionalista.
Isso exige da história argentina um esforço dela mesma, também.
As velhas ideologias argentinas, assim como estão,
deverão questionar-se severamente a si mesmas,
como acredito que muitas estão fazendo,
e o próprio governo... porque para ter direito a algo
tão imenso para a história argentina,
atravessada por uma linha de fogo,
como são as Malvinas, para ter esse direito,
há que se pensar, efetivamente,
nossa hierarquia intelectual, moral e sentimental
para poder ter direito a ter esse direito.
Nesse sentido, é que é tão importante a discussão na Argentina,
como assim também para os países latino-americanos.
Atrevo-me a dizer que, ainda que o povo brasileiro
não tenha o porquê estar no dia-a-dia desta questão,
também está sendo de fundamental importância
para o povo brasileiro e os demais povos latino-americanos.
Para terminar, penso que todos podem perceber a importância
que tem este tema e nesta medida agradecer
que tenham escutado a reflexão de um professor argentino
e eventual diretor de uma instituição histórica muito importante.
Acredito que falei em nome de sentimentos próprios
e do horizonte intelectual que muitas pessoas
estão construindo, atualmente, na Argentina.
É incalculável o agradecimento que tenho
por vocês terem escutado estas palavras.
Novamente, agradeço a Raul (Antelo),
às autoridades da UFSC,
ao querido cônsul Nefa.
Um grande abraço!