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Nós estamos a lidar com um país que tem uma carga tradicional muito grande, precisamente por isso,
porque, durante muitos séculos, a única coisa que existiu e que governou a vida dessas pessoas
foi a tradição, o costume, a prática costumeira.
Mas, por outro lado, tem muitíssimos elementos de modernidade.
E, portanto, as populações hoje em dia, convivem com essas duas realidades: a realidade tradicional,
mas, ao mesmo tempo, toda uma parafernália de novos valores e novos inputs
que são colocados precisamente por esses novos agentes da sociedade civil.
Bem, o problema do convívio...
eu acho que não se pode falar de um convívio entre o sistema de justiça formal -
se quisermos chamar - e os vários, variadíssimos sistemas de justiça tradicional
que existem em Timor.
De momento, não há ainda a possibilidade de se falar em um convívio, porque,
embora a Constituição timorense reconheça a existência do direito tradicional e costumeiro -
e o valorize -, não existem, neste momento, instrumentos legais que levem ao reconhecimento, não só do direito
tradicional, mas também dos mecanismos de resolução de conflitos nem
das decisões surgidas desses mecanismos existentes.
As lógicas de resolução do conflito - as lógicas da própria decisão em si - são totalmente distintas.
Eu fiz o curso de Direito no tempo indonésio.
Naquela época, Timor era uma província da Indonésia.
Em 1999, tivemos o referendo aqui,
teve o problema, todos tivemos que fugir.
Em novembro, voltamos, depois de um mês.
Em dezembro, a UNTAET, que administrava o país,
abriu um curso para dar oportunidade aos timorenses
de se tornar advogados, procuradores e juízes.
E havia uma comissão, que a UNTAET instalou, chamada Judicial Review,
formada para fazer a seleção dos juízes.
Era composta pelo bispo da Diocese de Baucau, alguns timorenses e alguns estrangeiros.
Nós fizemos, então, uma rápida formação em Darwin, na Austrália, e depois voltamos, e,
em 7 de janeiro de 2000, tomamos posse aqui e me tornei juíza.
De acordo com o regulamento da UNTAET, temos 4 tribunais distritais e um tribunal de recurso.
Cada tribunal tem que ter um juiz administrador.
Eu fui escolhida como administradora do Tribunal de Díli pelo presidente do Tribunal de Recurso.
Em 2005, fez-se uma avaliação de que os juízes ainda não tinham competência.
Depois de 5 anos de serviço, avaliou-se que os juízes não tinham competência para o serviço.
Assim, saiu um decreto-lei sobre o recrutamento de carreira de magistrados e defensoria pública,
segundo o qual os que quisessem permanecer teriam que entrar no Centro de Formação
para voltar a estudar e conduzir bem o serviço.
Um juiz num sistema completamente novo
e que se pretende que alastre a todo o Estado ou a todo o território...
Um juiz não é apenas juiz.
É também um agente da mudança.
Portanto, tem essa dupla função: tem de aplicar a justiça, mas, ao aplicá-la,
está também a contribuir, ou a ser um dos atores da mudança da própria sociedade.
E, portanto, tem de, para além do desafio da justiça, com que se depara diariamente,
tem também este outro desafio, que é o de dizer:
"Agora, os direitos fazem-se valer aqui, nesta Casa."
"E os direitos, também, já não são aqueles que existiam, são estes que estão aqui,
nestes livros novos que aqui temos."
E tudo começa a partir de uma diferença fundamental:
O sistema judicial formal apóia-se, obviamente, como um dos pilares do Estado de Direito.
Ora, o Estado de Direito tem como unidade principal o indivíduo, o cidadão.
E para o cidadão, e por causa do cidadão que existe tudo isto.
E, portanto, a célula do Estado de Direito é o cidadão.
Nos mecanismos tradicionais ou costumeiros, o cidadão não representa muito.
O que interessa é o clã e a comunidade em si.
Os sistemas de justiça tradicional - se assim lhes quisermos chamar -
tendem a preservar essa sua célula fundamental, que é a comunidade.
E, portanto, a decisão baseia-se sempre na necessidade de repor o equilíbrio comunitário.
Sobre casos que surgem dentro da aldeia e do suku, isso depende.
Em 2000, tivemos a paz em 2000, aqui.
Formamos uma estrutura de sukus e aldeias.
Em cada aldeia há 3 lia-na'in.
No conselho de suku, tem 1 ou 2, juntos, 3 lia-na'in.
Casos pequenos, nós resolvemos aqui na aldeia.
Quando não se chega a um acordo, o caso vai para o suku,
para os lia-na'in do suku decidirem.
Mas isso para casos que não sejam criminais.
Casos de crime, como homicídio que envolvam sangue,
nós entregamos para a polícia. A polícia é que resolve.
Casos que não são criminais, resolvemos na aldeia ou no suku.
Quando não dá, levamos ao subdistrito,
depois pode entrar na polícia.
É isso.
Eu era defensor público de 2000 a 2005.
Eu sempre dizia aos meus clientes que a justiça tradicional tem vantagens.
De acordo com a justiça tradicional, as pessoas tem que dizer a verdade.
Não se pode mentir. Se alguém mentir, fica doente.
Por exemplo, tinha um colega que morreu, em Lospalos, em 2008.
Ele era saudável.
Ele dirigia um carro de passageiros de Lospalos a Iliomar.
Em Leurur, ele atropelou um cabrito.
Mas ele não disse que foi ele que atropelou.
Então, o dono do cabrito pendurou o corpo do cabrito em uma árvore na beira da estrada e o deixou apodrecendo.
Meu colega, todo dia que passava ali, via o corpo do cabrito.
E as pessoas temem o que é sagrado.
Aquele que fizera isso, iria adoecer.
Então, meu colega adoeceu.
Depois, no hospital, ele nunca disse que tinha atropelado o cabrito.
Quando estava à beira da morte, ele disse aos seus pais: "fizeram isso comigo porque atropelei o cabrito de alguém..."
Foi conversar com um lia-na'in, mas não dava mais. Ele morreu.
E ele era uma pessoa forte, não era doente.
De acordo com o que é sagrado, a pessoa tem que dizer a verdade.
Alguns vão até o hospital, mas o médico não consegue curar. Manda de volta
Isso tem relação com a cultura, os ancestrais ou o dono da terra que nos castigaram.
Temos que voltar rápido, orar para os ancestrais na casa sagrada, orar para a terra.
Quando terminar, podemos voltar ao médico.
Aí ele pode curar.
Porque nós temos médicos, os cubanos, que agora vieram,
mas seguimos nossa cultura, a tradição timorense.
Quando vamos comer, colocam-se pratos para os ancestrais.
Só depois é que podemos comer.
Quando terminamos, é a vez das crianças. É assim, segundo nossa tradição.
Cada um deve aguardar sua vez.
O homem deve conversar, cuidar da roça, trabalhar;
a mulher deve cozinhar de manhã, no almoço, à noite, para sempre ter um prato de arroz para os ancestrais.
Não podemos nos esquecer disso, de colocar no lugar dos ancestrais.
No lugar dos ancestrais, deixamos belak (discos de prata), penas, cestos vazios, só pedras, não tem problema,
ou só dinheiro.
É isso que é dar comida aos ancestrais.
Mas quando esquecemos de fazer isso, adoecemos.
Temos febre. E é uma doença que, se não lembrarmos logo das obrigações, podemos morrer.
Eles nos castigam.
É sagrado.
Morre mesmo.
Se nos esquecemos deles, não os alimentamos.
Há meses em que temos que matar frangos para eles, e temos que fazê-lo.
Há anos em que temos que matar frangos, porcos,
se não, morremos doentes.
Se deixamos passar um ano, adoecemos. Adoecemos e morremos.
Isso é sagrado que não é brincadeira. Sagrado mesmo!
Temos que seguir.
É isso.
Eu vim em 2000, a pedido do Xanana Gusmão,
que pediu ao presidente do parlamento português que disponibilizasse juristas para trabalharem
na construção, na edificação do parlamento timorense,
nas bases, nos fundamentos do parlamento timorense.
Eu acabei por não fazer só isso, acabei por fazer muito mais,
e fui envolvida, que foi, pra mim, um desafio muito interessante,
na elaboração, discussão, aprovação da própria Constituição do Estado de Timor.
O Artigo Segundo tem por epígrafe "soberania e constitucionalidade" e diz que
"o Estado reconhece e valoriza as normas e usos costumeiros de Timor-Leste
que não contrariem a Constituição e a legislação que trate especialmente do direito costumeiro."
Quando este artigo foi discutido na constituinte,
as deputadas mulheres estavam muito aflitas por o artigo valorizar a cultura timorense
por causa de violência doméstica.
Porque, ao se valorizar a cultura timorense, poder-se-ia estar a deixar entrar pela janela
aquilo que não se quer deixar entrar pela porta.
E o drama das deputadas constituintes, e elas estavam, na altura, muito preocupadas
com a introdução deste artigo, era nessa érea.
Portanto, que impacto que isto tem na área do gênero e na defesa do direito das mulheres,
inclusive no combate à violência doméstica, quando a Constituição valoriza a cultura timorense
e a cultura timorense é permissiva relativamente a isso.
Os crimes sexuais são daqueles em que, quando se chega à fase de julgamento,
muitas vezes já foi obtida a conciliação.
Há situações que são verdadeiramente desesperantes, ou que podem ser muito chocantes
para uma observação exterior,
mas acontecem muitos casos aqui de crimes sexuais praticados entre pessoas da mesma família.
É uma das muitas histórias, porque é um caso comum,
mas é uma menina que tinha sido violentada durante anos pelo pai,
e que chegou com 14 anos na Casa Vida, grávida de 4 meses,
ficou na Casa Vida durante 2 anos, e, depois de 2 anos, foi reintegrada à família.
E eu fui chamada como testemunha.
Me surpreendeu, porque 2 anos e meio depois, o processo finalmente chegou ao tribunal.
Durante o depoimento dela, ela disse que ela queria que ficasse tudo em paz, que terminasse aquele julgamento,
e não queria acusar o pai.
E disse que ela ficou grávida de um homem, mas não diria o nome do homem.
E durante todo o tempo em que o juiz a arguiu, perguntou quem era o pai da filha,
ela se negou a responder.
E, depois, pra mim, ela disse: "Simone, eu não aguento. Depois de quase 3 anos,
eu não quero mais que meu pai seja condenado.
Eu já estou casada. Isso pode trazer problemas pra mim, dentro da minha família, com o meu marido,
se meu pai for condenado.
Ele já pagou o que tinha que pagar."
Então, a justiça tradicional já havia sido feita, e, para ela, era o que bastava.
Eu acho que existe uma divisão de sentimentos. É muito ambíguo.
Uma parte dela queria que fosse feita a justiça, uma justiça que ela não sabe nem se seria o melhor
- se caso o pai fosse preso - porque haviam pressionado tanto ela, durante todo o tempo,
dizendo que se o pai fosse preso, quem iria sustentar os 7 irmãos pequenos,
como ficaria a mãe dela, como ficaria a situação dela diante de toda a família e de toda a comunidade,
que a culparia por o pai estar na prisão.
Então, que tipo de justiça ela poderia esperar? Uma justiça que traria, pra ela,
um sentimento de realização, por um lado,
mas uma culpa perpétua por todo o tempo que o pai estivesse na prisão...
Agora, se você falar pra eles do sistema tradicional, do "vamos sentar no biti, vamos conversar, vamos resolver",
"uma-na'in", "lia-na'in", eles sabem todos esses termos, desde os pequenininhos,
todos eles respeitam, sabem o que que é isso.
Eles compreendem esse processo, por quê, pra quê, como que vai ser feito.
É uma coisa que faz parte da vida deles e tem sentido. A justiça formal não tem sentido.
"Vai resolver isso aqui pra quê? Vai piorar a nossa situação", é o que eles pensam.
As pessoas chegam aqui e dizem: "Não, isso está tudo resolvido. Já não há nada que tenham a fazer."
E, por muito que a gente explique que não, que há interesses públicos por trás disto,
que um Estado que se quer um Estado não pode tolerar com este tipo de situações, e, portanto,
os valores da liberdade *** são valores públicos, não dependem exclusivamente das vítimas,
que há um interesse nessa proteção que está para além da própria vítima,
por muito que se tente explicar isto, as pessoas não percebem.
Não percebem, porque já foi resolvido. Aquilo já foi resolvido.
Para eles, já foi feita a paz, já se pagou o que tinha de ser pago,
as comunidades já estão todas plenamente equilibradas,
e, portanto, creio eu que, com alguma dificuldade, conseguem entender
nessas situações, as condenações que o tribunal dá.
Como eu disse, Timor está sob duas grandes pressões.
É a pressão da necessidade de ter a regulamentação de vida em sociedade, por um lado,
e, por outro lado, é uma sociedade que não entende, ou que pode não acolher essa legislação que é feita.
E a falha está, ou o erro estratégico está na forma como essa legislação é feita:
é uma legislação de copy-and-paste,
é uma legislação de importação a seco, é uma legislação de "vamos ver o que é feito em Portugal
e vamos adaptar, mudando os nomes". Às vezes nem os nomes se mudam.
Eu creio que estas modas, estas teorias, estas doutrinas outras,
estas jurisprudências outras, que não são as nossas,
e que nós transpomos, muitas vezes, num exercício de copy-and-paste que não tem nada a ver
com o exercício da administração da justiça...
eu creio que este tipo de exercicio é um exercício que faz mal às pessoas.
Por que é que eu vou negar a mim própria?
Eu preciso é de entender
que as doutrinas outras, jurídicas, estrangeiras, lá são as doutrinas deles,
que nós respeitamos para a realidade deles.
Nós temos que fazer a nossa, e temos que olhar para a nossa realidade como sendo nossa.
O que é que diz a nossa cultura? Nossa cultura tem um termo muito simples, que diz assim:
Sé mak sala tenkeser selu sala.
Aquele que erra tem que pagar pelo erro.
E o pagar pelo erro não é só cadeia, não é só castigo. É castigo, também, mas na perspectiva da vítima,
ou seja, a vítima tem de ser ressarcida dos danos que sofreu.
Ora, isto está absolutamente em consonância com o que diz o direito formal.
Falando concretamente, um caso de violação.
Isto acaba sendo resolvido com o pagamento de uma indenização.
Os ocidentais gostam muito de ficar escandalizados, porque acham que isto é contra os direitos humanos.
Dizem: "Que coisa horrivel, selvagens, como é que é possível fazer uma coisa dessas?"
Esquecem-se que, na lei formal, naquela dos solenes tribunais a que nós nos habituamos,
há uma coisa que se chama indenização por danos morais.
O conceito de justiça entre nós não é tanto o de perseguir o violador,
aquele que prevaricou, não é tanto castigá-lo,
mas é mais do que isto: ter um olhar um pouco mais atento para a vítima.
Em Timor, a lei tradicional é bastante forte.
Eu sugiro que o Estado, quando fizer leis,
também consulte as bases.
Pois, lá nas bases, estão os lia-na'in, que dizem que, às vezes,
suas sanções são mais pesadas que as que o Estado escreve aqui.
Então, se possível, o Estado deve fazer uma socialização para ouvir os lia-na'in, para,
juntos, fazerem uma lei que tenha o espírito mesmo da cultura do povo.
Porque algumas das leis que temos são trazidas apressadamente,
e não têm o espírito da cultura do povo daqui.
Houve um momento, durante o Primeiro Governo Constitucional,
no qual se teve uma iniciativa de recolher todas as informações da parte da Sociedade Civil,
autoridades locais, e atores da área da justiça,
para formular uma definição comum do que seja crime,
que tipos de crimes poderiam ser resolvidos pelos lia-na'in,
quais crimes teriam que ser resolvidos utilizando as organizações legais, como o Tribunal.
Não se chegou a um consenso.
Não se conseguiu dizer que este crime deve-se resolver ali,
porque, naquele momento, principalmente da parte dos interessados no processo moderno,
como o Ministério Público, eles perguntavam:
"Mas por que atos criminais pequenos, que tenham uma pena pequena, poderiam ser resolvidos na aldeia?"
Para eles, um ato que fosse um crime seria sempre um crime,
e não poderia ser resolvido localmente.
Então, não deu certo.
Nós temos a obrigação de administrar a justiça, e ajudar a administrar bem a justiça,
e nós só podemos administrar bem a justiça quando nós tivermos em conta o sentimento das pessoas.
Porque a justiça não é a minha justiça, não é a tua justiça,
é o sentimento de justiça que as pessoas têm e que nós temos obrigação de, na medida do possível,
fazer refletir nas decisões do Tribunal.
Eu não estou a dizer que se tomem, de maneira nenhuma, decisões ilegais, ou contra aquilo que está na lei.
Eu não estou a dizer isto. Eu não posso, por exemplo, aceitar que um caso de homicídio seja resolvido
apenas com uma indenização, mas também não posso aceitar que um caso de homicídio seja resolvido
apenas mandando o assassino para a cadeia.
Então, e a família? E se deixou filhos? Quem vai olhar por aquelas crianças?
Quem vai olhar por aquelas crianças?
Às vezes, eles não entendem direito, pois é a primeira vez que vêm ao tribunal.
Então, temos que explicar, porque eles se sentam aqui e eles têm que compreender o que acontece no Tribunal.
Eu tenho que explicar para eles: "Este é o procurador, a função dele é essa,
ele é que leva este caso, que lhe trouxe ao Tribunal;
esse é o defensor, que vai defendê-lo neste caso;
e eu sou a juíza desse processo, eu que vou tomar a decisão."
E eu digo: "Apesar da decisão que já foi tomada na justiça tradicional,
a decisão do Tribunal é esta."
Eu tenho de explicar isso de timorense para timorense,
como uma irmã mais velha para os irmãos mais novos.
Com frequência, eu falo assim: "Agora, não falo mais como juíza. O Tribunal acabou.
Agora, falo como irmã para os irmãos caçulas."
Não digo que valha para tudo, mas se explicarmos com calma e boa-vontade para os timorenses,
eles podem entender e rever seu comportamento.
Mas, se aplicarmos simplesmente uma pena grande, eles dizem: "Prefiro ir mesmo para a cadeia.
Mataram os meus pais, os que eu amava, prefiro ir para a cadeia."
Isso não ensina. Eles não temem um castigo grande.
Ainda mais se eles ainda não tiverem esposa e filhos, eles dizem:
"E melhor eu ir para a cadeia, melhor do que ficar aí fora e ter que trabalhar.
Cuidar do roçado está difícil, ainda mais com essa situação de mudança climática,
já não tenho mais como fazer o roçado."
O grande erro nosso é, muitas vezes, o de cairmos nessa armadilha,
que é partirmos do princípio, partirmos de uma premissa, que me parece que não é necessariamente correta,
de que há uma dicotomia,
e que, portanto, esses mundos, essas realidades caminham paralelamente e nunca se encontram.
Tento aproveitar, sempre que posso, agentes dos mecanismos de justiça tradicional,
ou seja, procuro trazer essas pessoas ao tribunal e trabalhar em conjunto com elas para encontrar
uma solução de conciliação - nas fases de conciliação que o processo permite.
De alguma maneira, aquilo que eu, como mediador, proponho,
não é algo que surja só da minha idéia; é algo que é trabalhado entre mim e uma instituição com forte tradição.
E, portanto, quando essa solução é apresentada às partes, para dizer se aceitam ou não,
não é uma solução nova, surgida da cabeça de alguém que, ainda pra mais no meu caso, vem de outro país,
mas sim algo que é construído entre a tradição e a modernidade,
porque o sistema aqui é moderno.
Isto é só pra lhe dizer o quê?
Pra lhe dizer que há experiências que me parecem interessantes de ligar,
de fazer a ponte entre aquilo que é informal e aquilo que é o formal.
Já na África austral, por exemplo, tirando Moçambique, a situação é muito chocante,
porque, como eu lhe disse, anglo-saxônicos têm duas cadeias.
A justiça formal, com aquelas batinas pretas, aquelas cabeleiras compridas loiras.
Um *** com uma cabeleira loira...enfim.
Mas isto lá está por que? Porque é um sistema dualista,
que quase que não tem pontos de contato,
e que cria, ou provoca, de fato, situações de grande injustiça,
sobretudo relativamente à mulher e às crianças.
Penso que essas duas justiças devem caminhar juntas.
Para algumas questões, temos que dar competência à justiça tradicional,
pois é algo que existiu durante toda a vida deles, eles confiam.
Então, questões que não sejam graves, que não violem direitos, eles podem resolver por lá.
Mesmo que viole, mas não seja grave,
se houver acordo no nível do suku, da tradição, eles podem.
Porque o sentido de justiça não é só o da justiça formal,
mas informal também: basta que eles sintam que é justo, que aceitem as condições, não há problema.
Essas pessoas ditas civilizadas tendem a dizer que
tudo que não é em conformidade com a visão deles é de selvagem, é de bárbaro.
Eu digo: "Pois sim, pois que sejamos bárbaros, mas que sejamos nós próprios, qual é o problema?"
Legendas - Pedro Branco