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No fundo, aquilo de que eu mais gostava, quando
talvez tivesse, por aí... dez anos,
era construir motores e brincar com coisas como kits de construção.
Gostava muito de cinema, como ainda gosto,
e gostava muito de literatura.
Contar histórias,
através do cinema, ou, talvez, contar histórias através da literatura
eram coisas que teriam sido perfeitamente possíveis para mim,
mas também é perfeitamente possível que tivesse...
tivesse virado filósofo e não propriamente cientista.
Talvez uma das raízes desse... uma das raízes da resposta
estivesse no fato de que
houve problemas humanos que sempre me interessaram.
E durante muito tempo não tive a ideia
de qual era a melhor maneira de os abordar profissionalmente.
Tive professores no liceu que eram... tive um grande filósofo,
tive um escritor,
pessoas que estavam ligadas às artes,
e em que havia uma continuidade entre
uma simples aula de liceu para adolescentes
e aquilo que se passava no mundo real das universidades desse tempo.
A neurociência tem, de fato, tido um progresso espetacular
que se deve em grande parte à existência de novas técnicas
para o estudo do sistema nervoso e, muito particularmente,
para o estudo do sistema nervoso humano,
e do sistema nervoso humano vivo.
Até faz relativamente pouco tempo,
não era possível estudar
o cérebro diretamente num ser humano vivo.
E aquilo que está acontecendo neste momento que é de fato novo,
é não só
ver a possibilidade de compreender como o cérebro funciona,
de modo a poder perceber e diagnosticar melhor
e tratar doenças neurológicas e psiquiátricas
que, de um modo geral, estão ligadas diretamente ao funcionamento do cérebro,
mas poder também entender melhor
aquilo que está acontecendo com
aquilo que têm sido os produtos da natureza humana,
que têm sido os produtos do cérebro humano, no que diz respeito,
por exemplo, à criação de estruturas,
por exemplo, da ética, à criação de estruturas sociais, em geral,
políticas, econômicas e, depois, a criação, evidentemente,
da técnica e da ciência, e das artes.
Desde as clássicas, como a música, ou a pintura e a escultura,
até artes complexas, como, por exemplo, o teatro
e o cinema, todas essas
grandes capacidades e produtividades humanas...
tem sido possível ligá-las ao funcionamento cerebral,
através deste enorme sucesso técnico que tem sido,
que se tem vindo a desenhar, nas últimas duas ou três décadas.
Aquilo que mais me preocupa como cientista,
e como neurocientista em particular,
é perceber a forma como grande parte das nossas manifestações humanas
estão ligadas ao viver, estão ligadas à vida em geral
e à forma como elas têm se desenvolvido.
E, neste momento, aquilo que me parece mais central
é o processo de regulação da vida.
E uma coisa que é muito importante vincar é que não é só um problema
que diga respeito a seres humanos,
não é um problema que diga respeito sequer ao cérebro primariamente,
é um problema que diz respeito à vida em geral.
E um problema que tem a ver com muitíssimos seres vivos,
que nem sequer têm cérebro,
mas que não deixam de ter homeostasia por causa disso.
Portanto, a homeostasia é mais profunda que o problema do cérebro.
Até uma maneira... uma maneira de brincar com esse problema
seria dizer que o cérebro é um servo atual da homeostasia.
Enquanto que, por exemplo,
os processos biológicos dizem respeito ao genoma,
são problemas arrumados, mais ou menos,
estão ali no seu canto, são relativamente simples,
têm sido feitas imensas descobertas profundas sobre isso, e
sabemos mais ou menos, não completamente,
mas sabemos mais ou menos como funciona, em relação
à regulação sociocultural é uma história completamente diferente.
Aí há constantes incógnitas, e o que é ainda mais importante
é que não é uma evolução que se tenha acabado.
Estamos perfeitamente em fluxo,
e um dos exemplos clássicos que temos disso
é aquilo que está havendo com fenômenos sociais em qualquer parte do mundo.
Se tivéssemos esta conversa há um ano, não seria possível prever
que haveria as manifestações que estão acontecendo no Brasil,
de uma ponta a outra do país, da forma como estão acontecendo.
Tudo isso faz parte dessa regulação sociocultural que está acontecendo
e sabemos como está acontecendo, até certo ponto,
mas não sabemos como é que vai acabar.
O nome do instituto da University of Southern California
é Brain and Creativity Institute,
mas a ideia de criatividade é uma ideia muito grande,
porque a criatividade é uma capacidade que os seres humanos têm
e que de fato outros seres não têm.
E é uma capacidade que está ligada,
classicamente, historicamente, às artes,
e está ligada à invenção dos sistemas sociais,
criação de estruturas de justiça, de estruturas políticas e econômicas.
Tudo isso faz parte da criação humana,
e no nosso instituto nós estamos fazendo, por exemplo, a...
dois dos grandes esteios do instituto, em matéria de investigação,
são: investigações sobre o cérebro e a música,
que é um dos aspectos mais importantes do trabalho,
e outro que tem a ver com estruturas sociais
e a forma como nos comportamos dentro dessas estruturas.
É preciso ter alguma noção daquilo que veio antes de nós,
e é preciso ter alguma noção daquilo que tem
caracterizado os seres humanos antes de nós.
Porque essa é a única possibilidade de orientar a ciência que se faz
no melhor dos sentidos. Porque é possível fazer ciência que é perfeitamente
horrível, e é possível fazer ciência
que não tem qualquer espécie de validade para além do
valor de fazer piruetas técnicas
e do valor de qualquer coisa que se possa vender.
Há outros valores que são também importantes, e é por isso que a cultura,
em geral, é importante, e acho que é importante para a ciência
de um modo muito genérico. Não é...
julgo que não é aconselhável ser um grande físico ou químico,
se não se souber alguma coisa daquilo que são os seres humanos, na sua cultura.
Faz sentido nenhum tentar compreender economia ou política
ou os sentimentos morais se não se tem ideia
de como é que as pessoas que vieram antes de nós
lidaram com esses mesmos problemas, porque eram exatamente os mesmos.
Com diferenças de técnica e de grau, mas os problemas eram os mesmos.
Doenças clássicas todos nós sabemos quais são
e as doenças neurológicas clássicas começam a parecer uma espécie de
recitação estudada. Claro, todo mundo fala
da doença de Alzheimer e de Parkinson e do autismo,
e todas essas coisas... Faz parte, é quase que uma oração
que as pessoas recitam todas as vezes que se fala de cérebro humano.
Mas há patologias que... evidentemente, que precedem
os grandes problemas sociais de hoje em dia,
mas que possivelmente estão se agravando com os problemas sociais,
que têm a ver com qualquer coisa que eu poderia chamar "a dor moral",
de um modo muito prático, da depressão.
Claro que a depressão existiu através da história,
mas há síndromes depressivas que hoje em dia aparecem
num contexto social muito específico, porque a forma como as pessoas vivem é
completamente diferente do que na era antiga.
As pessoas, hoje em dia, nos centros de grande desenvolvimento social,
não estão vivendo em famílias, estão vivendo sozinhas,
ou estão vivendo em núcleos muito menores,
e têm problemas que dizem respeito à velocidade da vida,
que dizem respeito à rapidez e quantidade de comunicação de que são rodeadas,
que é completamente diferente da que vivíamos há cem anos,
ou até que se vivia há trinta anos.
A forma como a cultura entra para dentro do cérebro é também diferente,
o impacto no cérebro é completamente diferente. E tudo isso
é um problema que será estudado, claro que há pessoas que dizem coisas sobre isso.
Há as que dizem que isto faz mal, que isto faz bem,
mas a verdade é que nós não sabemos se faz bem nem mal.
É preciso estudar, é a melhor maneira.
Portanto, problemas afetivos ligados
à modificação de vida são extremamente importantes.
Um outro problema que tem enorme importância,
os problemas de dependência de drogas.
É um problema que é absolutamente cerebral,
absolutamente neurológico, no sentido estrito do termo,
mas que ao mesmo tempo tem a ver com a sociedade em que se vive.
Não é possível estudá-lo só estudando quais são os neurotransmissores
que estão envolvidos, estudando só o cérebro.
É preciso estudar tudo isso, mas num contexto social.
A forma como se pode intervir é extremamente variada, e
claro que há intervenções para certos problemas
em que a pílula pode ser exatamente aquilo que resulta.
Há intervenções em que se pode combinar uma intervenção farmacológica
com uma intervenção que tenha a ver com uma conversa inteligente.
E também há intervenções que podem ter a ver com neurocirurgia
e que podem ter a ver com, por exemplo, uma atividade eletrofisiológica.
Todas essas intervenções têm uma história já.
Claro que, nos últimos cem anos,
houve intervenções cirúrgicas no cérebro, houve intervenções farmacológicas,
houve também intervenções sob a forma de implantação de eletrodos no cérebro,
que produzem um certo resultado, e todas elas vieram relativamente cedo demais,
para que a técnica fosse suficientemente rica
e para que as indicações da terapêutica fossem corretas.
E hoje em dia, é de fato possível
fazer intervenções extremamente bem controladas,
muito limitadas, que podem tratar da dor,
por exemplo, depois da dor ser completamente intratada
por medicamentos e por toda espécie de psicoterapias,
é possível fazer uma intervenção que possa melhorar a dor.
Hoje em dia, é também, em doentes com Parkinsonismo,
que são resistentes a todas as drogas,
é possível fazer uma implantação de eletrodos
que pode resolver o Parkinsonismo em uma questão de minutos.
Claro, todas essas intervenções são hoje possíveis,
e daqui a dez anos será possível fazê-las ainda melhor,
com menos riscos, com menos problemas, de uma forma mais simples,
mas tudo isso tem que vir no seu próprio tempo.
É sempre necessário ter em vista
o complexo total daquilo que é um ser humano,
e ter em vista o problema muito em particular,
e, claro, problemas diferentes requerem soluções diferentes.
O que é preciso é ter a noção daquilo que vai ser
o enquadramento próprio para um problema
e, bem, por exemplo, se ter uma visão
bastante lata daquilo que é um ser humano e daquilo que são esses vários problemas,
alguns são extremamente pequenos, específicos,
e outros são coisas de uma dimensão
extraordinariamente grande.
O sentimento e a emoção são de fato mais básicos, não há dúvida nenhuma
que o são, mas o que não é possível é ter
lógica e razão aplicada, aplicadas,
se não houver também a inclusão
da emoção e do sentimento dentro da solução do problema.
E, portanto, a questão não é uma questão de branco e preto,
emoção e sentimentos são coisas simples, a razão
e o conhecimento são coisas complicadas e melhores,
e uma escolhe-se à outra e esta rejeita-se, a outra inclui-se.
É que está tudo dentro do mesmo problema e, mais uma vez,
tudo isso está na mesma raiz biológica,
que é raiz da vida e do comportamento básico humano,
que todo ele está orientado para uma coisa e para uma coisa só
que é "salvação da vida".
Esse é o problema que todos os seres vivos têm que enfrentar,
e a maior parte dos seres vivos enfrenta esse problema
de uma forma inconsciente, e nós, pra melhor ou pra pior,
enfrentamos esse problema de uma forma consciente.
Pelo menos às vezes.
Quanto mais as pessoas compreenderem
como é que, nas suas decisões, pesam certos fatores,
mais será possível ter decisões sensatas.
Quer dizer, uma decisão sensata não é uma decisão que é feita
só com conhecimento, é uma decisão que
toma em conta outros fatores.
Fatores que são, alguns, muito pessoais,
ou fatores que são, digamos, de um afeto social.
Pense, por exemplo, no fato de que nós temos emoções muito simples
como o medo, a zanga,
o desgosto... não é desgosto, o nojo.
Mas temos, ao mesmo tempo, emoções extremamente complexas como
o orgulho, compaixão,
vergonha, embaraço,
admiração.
A distância que há entre o medo e a admiração
é uma coisa perfeitamente abissal.
O medo é uma coisa que nós partilhamos com as criaturas mais simples à nossa volta.
A reação de compaixão,
isso é uma coisa que vamos encontrar em algumas espécies não humanas,
mas não necessariamente, por exemplo, nos répteis.
Mas ter uma reação de compaixão, por exemplo, para com uma pessoa,
que perdeu o emprego,
ou com uma pessoa que foi humilhada publicamente,
isso é uma coisa que é estritamente um desenvolvimento humano,
e é um desenvolvimento humano que neste momento já tem, também, uma raiz biológica.
É impossível ter uma visão profunda
dos problemas do comportamento humano que não inclua
grande parte da informação que nos vem da cultura clássica.
E é preciso que a interpretação não exclua essa capacidade clássica
e que não tenda a simplificar, o que é uma coisa que muitas vezes acontece,
porque a cultura, com a enorme rapidez
que está tendo hoje em dia, muitas vezes rejeita a possibilidade de se buscar
os dados clássicos, porque parece que é uma perda de tempo, mas não é.
O sistema de administração científica, de publicação científica,
que tem muito a ver com alguns desses problemas
de que falamos hoje nesta conversa, que são os problemas
da sociedade deste momento e os problemas de como é que se transmite informação.
E um desses problemas tem a ver com a ideia de rapidez
e a ideia de redução do tamanho.
Hoje em dia, há artigos científicos que têm que caber
em mil palavras, ou três mil palavras,
e claro que há certas circunstâncias em que é possível de fato
dar o relato do resultado,
mas obriga a certas coisas que são erradas, por exemplo, obriga
a não fazer a citação completa daquilo que veio antes de nós,
obriga muitas vezes a não fazer a história daquilo que veio antes de nós,
e tudo isso são desvantagens para a cultura. Isso é uma abordagem que...
é um problema que não vem só dos cientistas,
mas que vem muitas vezes da forma como as próprias mídias abordam essas questões.
Claro, como se sabe, há uma tendência da parte de um jornalismo pouco cuidadoso
de criar cabeçalhos, notícias para jornais,
soa bem, lê-se melhor e simplifica de uma forma errada.
E é essa simplificação exagerada que leva a um retrocesso
por parte de um público que é mais letrado e que não gosta de ver
coisas que são complexas tratadas de uma forma simples demais.
A memória é absolutamente indispensável,
e uma memória de imagens é absolutamente indispensável
para que exista criatividade.
Claro que todos os seres vivos têm,
mesmo até seres muito vivos, têm uma capacidade de memória.
E a capacidade de memória, o exemplo mais simples,
é encontrar um estímulo, que pode ser positivo ou negativo,
e o ser capaz de reconhecer, numa situação,
num momento seguinte, que uma certa coisa positiva deve ser procurada
e que uma coisa negativa deve ser evitada.
Esse é o exemplo mais clássico de memória, mas claro que essa memória não tem
necessidade alguma de ser representada imageticamente.
Ora, aquilo que nós falamos quando falamos de memória,
em relação a seres humanos, e quando falamos de memória em relação à, por exemplo,
à criatividade, em relação à arte,
tem muito a ver com a capacidade de representar memórias,
e aquilo que de fato distingue a memória humana
é o ser capaz de fazer um... criar uma memória,
que pode ser recuperada, que pode ser acessada,
de uma forma imagética, seja de uma forma imagética sonora,
ou de uma forma imagética visual.
Grande parte do nosso mundo atual é dominado por memórias
ou visuais ou auditivas. Claro que há muitas outras memórias,
por exemplo, memórias do olfato, memórias de tato.
Mas as memórias que de fato dominam a nossa cultura são visuais e auditivas.
E essas memórias aparecem como uma figuração completa,
e é muito importante pensar, quando se pensa em imagens sonoras,
pensar que imagens são, de fato, possíveis em todos os sentidos que nós temos,
que as imagens não são só visuais. Muitas vezes a palavra imagem
dá uma ideia automática de imagem visual.
Mas isso não é de fato, não corresponde, na verdade as imagens são representações.
ora, a possibilidade de recuperar imagens
e a possibilidade de manipular imagens,
que são fonte principal da execução criativa
e o manipular aqui tem muito a ver... Metáforas do cinema ajudam muito
porque, tanto no que diz respeito ao som
quanto no que diz respeito à parte visual,
aquilo que acontece com as imagens é que podem ser cortadas em pedaços,
e, portanto, aquilo que se fala quando nós falamos de montagem,
fala-se exatamente disso, a possibilidade de pegar uma imagem
e de levar a imagem mais para frente ou mais para trás,
no caso de uma imagem visual, e cortá-la em pedaços,
juntá-la diferentemente no tempo. E é essa, verdadeiramente,
a base fundamental da criação artística,
quer seja a criação que acontece para o escritor, ou a criação do dramaturgo,
ou a criação do cineasta, ou a criação do compositor,
que está no fundo criando imagens
que ocorrem no tempo e que são ligadas de uma forma...
muito gentil, muito sutil, ou de uma forma brusca,
uma forma em que tudo está, de fato, cortado em pedaços.
Portanto, criatividade, memória e imaginação
são capacidades interligadas, sem as quais não é possível, de fato,
conceber novos modelos, conceber novas realizações,
quer do ponto de vista social, quer do ponto de vista das artes clássicas,
ou da invenção, por exemplo, filosófica.
Todas elas estão ligadas a essa imaginação.
Acontece que a Hanna, minha mulher, detesta falar em público
portanto, acontece que sou eu sempre que falo,
e ela não gosta de falar em público. Mas o trabalho,
em grande parte, é feito em conjunto, e ela tem uma enorme influência
naquilo que eu faço e até naquilo que eu digo.
Mas do que não gosta é de aparecer em público.
Mas, por exemplo, todas as imagens que eu mostro,
em livros ou em palestras, são todas feitas por ela,
e fazem parte de um trabalho que foi, de fato, feito em conjunto.
E tem uma enorme influência em escolha de temas, em escolha da apresentação,
e, de um modo geral, em termos da ordem.
Dá um imenso gosto ter pessoas
inteligentes à nossa volta, e pessoas que podem
contribuir com ideias e com reflexões.
Os livros são escritos, de um modo geral, para eu,
para eu próprio discutir comigo próprio e ter...
ter essa discussão aberta a outras pessoas
que possam também dialogar comigo e com o livro.