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Em Aymara Tantawawa quer dizer menino de pão
Nos Andes, diz-se que os que já não estão entre nós
voltam em forma de Tantawawas
Há pães com forma de menino, pães com forma de escada,
pães com forma de animais, e até pães com forma de pães
Farinha, água e fermento
que forjam pequenas obras de arte para alimentar às almas
Junto a seus sonhos de construir um futuro melhor
os milhares de migrantes andinos que habitam a cidade de Buenos Aires
trouxeram suas mãos para trabalhar,
seus sabores para desfrutar,
e suas festas para dançar
Assim também chegou o Aya marcay quilla
Dia dos difuntos, dia dos mortos,
ou Aya marcay quilla
Tempo que germina abraços entre a vida e a morte
Segundo a tradição andina de nossa América,
durante os dois primeiros dias de novembro
as almas dos mortos vêm ansiosas
para reencontrarem-se com seus familiares, amigos e irmãos
Sem importar as distâncias, os milhares de quilómetros que os separam de sua terra,
as famílias compatriotas se preparam para receber os seus mortos
Eles voltam para festejar conosco,
para que mantenhamos vivas suas histórias,
para que mantenhamos viva sua memória,
durante dois dias,
a vida e a morte se abraçam
Não, não sempre
Nunca tenho participado sempre.
Por isso quando meu marido morreu...
Nove meses também, né... Tenho feito com a igreja nada mais
Não, não sempre...
Vou ao cemitério a cada 15 dias
Nas segundas-feiras vou-me
Sempre eu vou a cada ano
ao cemitério em Todos os Santos Sempre vou.
Sempre também levava pequenos pães
e flores para o cemitério e...
O único que nesse dia pensei
é lhe encher de flores,
lhe encher de pão, lhe encher de fruta, de todo e...
Não sabia como se acomodavam nem a que lado iam...
Por sorte a vizinha sabia e ela me deu uma mão.
Todos os Santos o fiz como eu pude, de costumes não sei...
Minha família não me deu muito
porque quando era pequena meus avôs morreram
Não sabemos fazer... eu não sei fazer costumes assim muito bem
Fiz o que pude...
não sei se me saiu bem ou me saiu mau...
Isto vamos levar ao cemitério e vou deixar no cemitério
- Sim ?
- Sim, sim, sim.
Isso está bem aí, porém mais acima..
... assim apoiado com algo
Não, aqui olha, aqui vamos apoiar um.
Não, um não mais que esteja
Mas dois que vão
Muito ovo parece que lhe meteu...
... uma caixa de ovo pediu-me...
..sim muito ovo parece que lhe meteu
Eu vim faz oito anos da Bolívia
aqui trabalhar, procurar um trabalho
porque na Bolívia não se podia ganhar
E aqui ficamos, e... íamos a cada ano...
a cada ano íamos a Bolívia para ver nossos filhos...
...e eu não viajo faz quatro anos a Bolívia.
Quando chegamos aqui cheguei a uma oficina que ele tinha conhecido antes.
A essa oficina chegamos, e essa oficina não gosta- mos porque muito exploravam
Saímos e procuramos um quarto para alugar no bairro
... e aí vivi uns cinco anos
Depois que... teve a crise
fui-me ao Indoamericano porque o aluguel seguia subindo
não se podiam pagar os aluguéis porque...
tenho duas bebês, e as bebês vão crescendo...
e não podíamos viver num só quarto que era 4x4
por isso me animei a ir ao Indoamericano...
Ele era uma boa pessoa, atento a seus filhos...
sempre quis a seus filhos...
Atento à família...
Era um homem que trabalhava e que tinha vontade de sobreviver
sempre dizia ele: "Vamos ter que ganhar mais dinheiro para nos ir
que aqui não há futuro para nossas duas bebês...
esperemos dois anos daí vamos ir"
Sim, a ele lhe encantava jogar... futebol, basquete...
lhe fascinava... sempre no clube ele participava
nos campeonatos que fazem a cada ano...
...aí participava ele...
mais lhe encantava jogar basquete...
aqui lhe conhecem todos os garotos que jogam no Poli
eles lhe conheciam, a ele lhe diziam "Evo" por apelido
e que jogava basquete com os garotos...
têm uma linda recordaçao os garotos, quando vou ao campo me dizem:
"O Evo era meu amigo, que jogava basquete.
Que pena que se tenha morrido", dizem...
lamentam-no muito tarde...
¿Por que lhe diziam Evo? ¿Por Evo Morales?
Sim, tinha a mesma cara. Diz que lhe diziam Evo sempre...
tinhamos pensado em irmos este ano
E em 2012 a gente pensaba em ir
Para ir pasar Ano novo e Natal lá na Bolívia
Não chegamos nem no 2011
porque morreu... já vai fazer um ano que ele morreu
Nos primeiros dias de dezembro de 2010,
famílias ocuparam os terrenos do Parque Indoamericano,
localizado na zona sul da Cidade de Buenos Aires
Estima-se que mais de 13 mil pessoas participaram da tomada
O déficit habitacional em Buenos Aires
atinge a uns 500 mil cidadãos que vivem em situação crítica
Isto inclui problemas nas condições de salubridade,
acesso ao trabalho, educação e saúde
A reintegraçao de posse do Parque Indoamericano
levada adiante pelas forças da Polícia Metropolitana e Federal,
além de registar dezenas de feridos,
terminou com a vida de três migrantes:
Rosemary Churapuña, Bernardo Salguiero
e Emilio Canaviri Álvarez
Numa rodada de imprensa, o chefe de Governo portenho Mauricio Macri
julgou que as ocupacoes do Parque deviam-se a participação de migrantes de países vizinhos
e queixou-se da "imigração descontrolada" que sofria a Argentina.
A população que reside em favelas e assentamentos na Capital Federal
cresce em cerca 150 mil habitantes,
com um incremento de 50% desde 2001.
A tomada do Indoamericano não só despiu o problema habitacional na Capital Federal
senão que é uma expressão do reclamo por terra e moradia
As famílias chegam ao cemitério de Baixo Flores
para compartilhar o dia com as almas que os visitam desde o 1º de novembro
Esta celebração comunitária cheia de cores e sons o cemitério
Cada família carrega com suas histórias,
com o relato vivo e a memória dos que já não estão
Chegam aos túmulo acompanhados pelas almas de seus seres queridos
com uma cosmovisão da vida e morte muito diferente à ocidental
Os difuntos não se foram para sempre,
mas retornam e estão presentes entre nós.
À perda, mal-estar e pena,
ganham o encontro, o festejo
e a crença de que a morte não é o final
Após a vigília nos lares,
os compatriotas carregam com flores, guirnaldas, frutas, pães,
leitões, bandeirolas, folha de coca, caixas de cerveja e a infaltable chicha.
As almas voltam em forma de Tantawawa
para apresentar-se no arranjo da mesa comunitária,
o apthapi
Por isso se revesam para ch´allar as sepulturas,
onde tarkas, sikus e trombetas
completam o ambiente festivo no cemitério.
No dia que estivemos no cemitério...
não tenho eu família. Sim tenho quem preocupa-se comigo
Nesse dia acompanhou-me o primo irmão de Emilio, e sua esposa mais
Sim, está quebrando meu pão
Está bem, senhora o que estamos a revistar é o álcool
Nada de bebidas alcólicas, nada para a venda.
Não, não, eu sou alma nova
Está bem. Ninguém está reclamando nada
Não, não tenho nada. É só pão
Justo nesses dias
echando o mês, disseram-me "já tens o apartamento, podes te mudar
porque a senhora o esvaziou"
E caiu-me como anel no dedo porque realmente
tinha que fazer na casa pequena, onde eu vivia.
Esperar todos os santos aí,
tirar as minhas coisas ou o deixar vazio, não sei.
De alguma maneira tinha que o fazê-lo
Justo para essas datas foi me apresentado o apartamento,
e com a mudança
e com
o que tínhamos que fazer para a mesa, tudo,
uma vizinha que nem sequer me conhecia se ofereceu a me dizer:
"olha, não faça assim. Faz desta maneira".
E também uma amiga que tenho faz muito tempo, me disse:
"Eli, eu vou te dar uma mão" E veio com sua amiga
e deram-me uma mão para poder arrumar a mesa
E até o cemitério acompanharam-me e até o dia seguinte estavam comigo
Fez-me lembrar quando
Emilio estava vivo. Sempre íamos ao cemitério,
e pensei que estava a meu lado. Ou seja,
desfrutando e o único que sentia era muita raiva.
Dizer, "olha, tinham que te matar
para que me dessem um apartamento. Tinhas que dar uma vida para que me dessem um apartamento."
E me ponho a chorar, às vezes levanto-me na noite e me ponho a chorar
Às vezes grito lá dentro porque minhas filhas estão dormindo e não posso chorar,
não posso chorar na frente delas, as vou traumatiza-las Então digo:
"tinham que te matar para que me dessem um teto, tivesses aqui
Aqui presente teria sido outra coisa."
-Emilio Canaviri Álvarez...
sim, alma nova...
Você Marinha pelo cavalo e você pela escada.
Pelo cavalo, eu?
Vais ir montado no cavalo
Eu quero o tantawawa para o rezar
Bom, vamos tentar
Bom, quando rezarmos, eu vou rezar para o cavalo
Mas tenho meu ferrinho aqui, tenho que o tira-lo agora
O único que quero é
viver dignamente, lembrando-me de Emilio
E tê-lo sempre em meu coração,
porque o sempre está presente em todas as partes que me acompanha.
A todos os lugares que vou trabalhar sempre lhe digo: "dá-me forças,
para poder viver e para poder criar a tuas filhas."
Suquinho, suco
Suco de laranja, suco
Para poder manter a minha família
e poder pagar o apartamento
estou fazendo bicos por hora. Vou trabalhar em casas de família,
limpando banheiros para pessoas
Não me pagam muito, mas mesmo assim
Saio para vender nos domingos
Vendo em Bonorino e faço suco, suco de laranja,
sanduiche de chola. De tudo faço para vender, para poder sustentar a minha família
Suco de laranja, suco
Suquinho de laranja, suco
Eu quero estudar e quero trabalhar, ter minha própria profissão
para criar dignamente a minhas filhas. E apoiar as minhas filhas também
Sim, vou ir para Praça de Maio porque eu estou pedindo justiça pela morte de meu marido
Estou a pedindo justiça pelos três colegas
e pelos demais parceiros que foram assassinados
depois que passou o Indoamericano
Eu o que digo é que tenha justiça
Que o governo da Nação e o governo da Cidade
não fiquem com as mãos cruzadas
-Assassinaram três parceiros trabalhadores,
pela simples causa de reclamar moradias dignas para suas famílias
três famílias perderam a seus seres queridos
Meninos que reclamam a presença de seus pais
Hoje não têm quem os proteja
Então eu o que peço é justiça pela morte de meu marido
Quando mataram meu marido não vieram
as autoridades inspeccionar onde mataram meu marido
Eu, me armando de valor, tenho mostrado a bala que matou meu marido aos meios
E quero que assuman a morte de Emilio,
porque não quero que fique impune,
o que quero é que se façam responsáveise que assumam
E que haja justiça pela morte dele
Já vão fazer dois anos e não há nenhum responsável, nenhum preso
Nada mais que estão a meter presos pelo sete, e pelo nove não há ninguém
Nenhum preso, nada. A investigação está abaixo
O que eu diria ao juiz é que assuma, que se faça responsável,
que se toque o coração com a mão para poder solucionar meu problema
Indo-me a Bolívia estaria a me escapar
me escapar da realidade que me passa. Indo a Bolívia que vou fazer
¿Enfrentar à família de Emilio,
enfrentar a minha família, que me vai discrimiÂnar minha própria família?
Mais dor vou ter lá em Bolívia. E digo: "o melhor é enfrentar à realidade que tenho cá."
Porque a realidade está na Bolivia
Fugindo a qualquer lugar é como que estivesse fugindo de mim mesma
E tenho que enfrentar... tenho que seguir em frente. Porque tenho que estar em pé
para poder criar a minhas filhas como corresponde
Dois anos depois da repressão no Parque Indoamericano
a justiça tem ido e voltado no processo de esclarecer
os assassinatos de Rossemary Chura Puña e de Bernardo Salgueiro.
Os 45 polícias da região Metropolitana e da região Federal
beneficiados em fevereiro de 2012 com um despronunciamento na causa pelo brutal despejo,
ainda não têm sido indagados
Por sua vez, o assassinato de Emilio Canaviri Álvarez
nem sequer tem sido investigado
Os familiares das vítimas do Indoamericano
continuam lutando para conhecer a verdade histórica dos fatos,
para que os responsáveis sejam identificados e castigados
e para que sua memoria continue viva