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Bem, eu queria começar falando uma frase,
na verdade, um pensamento de Kafka, que mais
ou menos introduz um pouco aquilo
que eu vou conversar com vocês hoje, que é o seguinte
a partir de certo ponto, não há mais retorno.
E é esse ponto que precisa ser alcançado.
Isso me ajuda a introduzir a vocês
a história do projeto, chamado "Eu sou Gay".
Na verdade, apesar de ter nascido com esse
nome, de projeto já na internet,
essa foi uma iniciativa cujo pensamento inicial
não era assim tão organizado e sistemático como a palavra "projeto" exige.
Ela nasceu de um desabafo. O que aconteceu foi que, no dia 12 de abril deste ano,
eu fiz aquilo que as pessoas podem fazer hoje e devem fazer hoje
quando elas tem vontade de compartilhar uma ideia, uma opinião com amigos
ou mesmo com desconhecidos. Eu criei um blog, joguei
um texto lá e apertei aquele mágico botão
[de] "publicar". Bem, esse texto era o
resultado de uma ideia que vinha sendo maturada na minha cabeça, na verdade de um
incômodo que vinha sendo maturado na minha cabeça toda vez que eu via notícias e
principalmente comentários de internautas
relacionados a ódio a pequenas minorias.
Minorias políticas, no Brasil, fossem elas
de negros, de mulheres, de índios e, mais
recentemente, de nordestinos e de gays.
No caso dos gays, e aí, quando eu falo gay, eu dou conta de toda aquela
--- que usa a sigla LGBT --- que o movimento gay usa hoje.
No caso dos gays, a coisa se tornava um pouco mais latente pra mim
porque, de todas essas minorias que eu falei
agora, e eu poderia citar várias outras,
essa é a minoria que, onde a gente vive,
é a que menos tem direitos que são essenciais
a qualquer ser humano - já não falo nem de cidadão, é o ser humano.
Direito que vai desde você poder dar dar a mão
à pessoa que você ama, na hora em que você está andando na rua,
até o direito de você poder dividir o patrimônio com a pessoa
com quem você passou anos da sua vida construindo afetivamente uma história.
Acima disso tudo, pra mim era muito paradoxal imaginar que existem pessoas
que se sentem no direito de odiar e reprimir
outras, porque essas outras pessoas amam.
Você odeia alguém porque alguém ama, e isso pra mim era muito contra senso.
Então, nesse dia 12 de abril, o estopim
para que esse texto tivesse sido criado
foi o assassinato de uma menina
no interior de Goiás - essa menina tinha 16 anos
e ela foi assassinada pelo pai da namorada dela,
porque ele não admitia a relação entre elas
e resolveu encerrar o assunto com um crime.
E, na verdade, esse crime foi mais um dos crimes,
e os crimes continuam acontecendo até hoje, e que me fez, enfim,
que me motivou a escrever um texto em que eu pedia às pessoas
para que, a partir daquele momento,
elas entendessem que, ser gay, ali, era
ter o seu direito interrompido.
E que ser gay devia ser um posicionamento político em que, a partir de agora,
a gente deveria adotar também, independente
da sua orientação ***.
Seria algo que deveria ser transversal
à questão da orientação ***, à questão da identidade gay.
E, de uma forma muito surpreendente pra mim,
as pessoas entenderam essa mensagem.
Eu pedia que as pessoas mandassem fotos para
o email que eu criei, do projeto,
com uma mensagem bem simples que se chamava
"Eu sou gay".
Podiam ser homossexuais, heterossexuais, vovôs, crianças enfim, gente de todo
lugar do país e até fora dele
se soubessem ler português, mandassem uma
foto pra gente com essa mensagem simples e afirmativa "Eu sou gay" e essas fotos seriam
selecionadas para um vídeo - esse vídeo foi publicado no último dia 6 de julho -
e, bem, era isso. A ideia era bastante simples e que esse vídeo fosse, enfim, repercutindo
entre as pessoas e que as pessoas tivessem acesso
- ele está na internet
Eu confesso aqui pra vocês que, naquele momento em que eu publiquei aquele texto
no dia 12 de abril, eu vi o copo meio
vazio, eu não vi o copo meio cheio.
Eu estava muito angustiada, eu estava
um tanto pessimista com a humanidade.
Mas a resposta que o projeto teve foi tão
automática e tão enorme e tão gigante
no mesmo dia em que eu publiquei o texto no
blog, essa hashtag "#eusougay" virou o número 1 trending topic Brazil
ela voltou a ser trending topic Brazil no dia em que o vídeo foi publicado.
Então, assim, era bastante volumoso, as pessoas começaram a mandar fotos
imediatamente, e a mandar textos e a mandar
mensagens. Eu fiquei muito emocionada com tudo aquilo. Eu vi que outras pessoas estavam
se sentindo no mesmo lugar de incômodo em que eu estava.
E, bem, na verdade eu não quero me alongar muito sobre minhas motivações pessoais para
criar esse projeto. Eu quero falar das
motivações coletivas e o motivo pelo qual eu acho que o projeto fez sucesso porque,
depois que eu vi aquela resposta, e que era uma resposta muito boa,
eu comecei a me perguntar: "por que isso fez sucesso?"
"por que deu certo?"
Porque eu poderia muito bem ter publicado esse texto e ele ter circulado entre
um grupo de amigos enfim, conhecidos, e a gente ia ficar discutindo aquilo em mesa de bar.
Mas chegou a um público muito maior do que eu esperava.
Entre o dia 12 de abril e mais ou menos o começo de maio,
que era o deadline pras pessoas mandarem as fotos,
o email do projeto recebeu cerca de 2.500 imagens,
que era muito acima do que eu podia esperar
tanto é que eu não consegui colocar 2.500 imagens no vídeo
E aí, eu comecei a me perguntar: por que é que fez sucesso, por que é que deu certo?
E eu acho que duas palavras me ajudam a explicar
não somente por que é que essa coisa deu certo, como eu acho que a partir de agora
elas podem ajudar também em vários outros
movimentos, principalmente esses ligados à minorias sociais, minorias políticas,
minorias que tem seus direitos cessados,
que podem ajudar esses movimentos a entender como elas podem aglutinar várias pessoas.
A primeira dessas palavra é aquilo que está na frente da gente,
tá tão na cara da gente que a gente não consegue enxergar,
parece aquela paisagem da cidade,
que é uma paisagem linda onde você mora
e como você passa por ali todo dia, você já nem percebe que ela existe
o cotidiano sublima a beleza da paisagem, e essa palavra se chama "visibilidade".
Bem, a partir de agora a gente vai começar a ver essa visibilidade.
Visibilidade é algo que, hoje, faz parte do
nosso cotidiano, principalmente se a gente
participa de redes sociais online.
Quem participa de redes sociais online sabe que a coisa mais importante do mundo hoje em
dia é você poder compartilhar as coisas, você compartilha a música que você gosta de escutar
você compartilha os filmes que você assiste, você compartilha receitas que você gosta de fazer em casa
e as pessoas se sentem casa vez mais carentes de mostrar e se expor,
mostrar seus rostos, mostrar a cara.
Isso acontece a toda hora no Facebook,
acontece a toda hora no Instagram, as pessoas ficam postando as suas fotos,
elas sentem uma carência, porque há uma carência de você se sentir reconhecido
de você ter o entendimento do outro, isso é natural da gente.
Então, essa visibilidade, o que é que a gente faz? A gente passa boa parte do dia
eu trabalho com internet, eu sou jornalista,
eu passo boa parte do dia e acho que várias pessoas fazem isso também
compartilhando coisas enfim,
eu passo links de opiniões que eu tenho, links de músicas que eu escuto,
e nesse processo a gente compartilha também
quem a gente é, quem nós somos.
O que acontece é que, nessa sociedade do descarte que a gente falou ainda hoje aqui
a gente termina jogando muito fora isso que a gente compartilha. Há uma produção de conteúdo
aí, que a gente não percebe, mas que ela existe.
A gente começa a criar conteúdo daquilo
que a gente gosta, daquilo que nós somos.
Esse conteúdo é jogado fora.
Tem um pesquisador da Universidade de Nova York chamado Craig Shirky.
Ele chama essa produção de conteúdo de
"excedente cognitivo".
"Excedente" já está falando, é um excedente que facilmente a gente descarta.
E a gente precisa começar a reciclar esse nosso excedente cognitivo
e começar a fazer dele também um compartilhamento cívico,
porque nós temos opiniões cívicas a respeito do mundo
e cada vez mais as pessoas meio que se sentem na obrigação de ter essa opinião cívica.
Então, acho que é o momento mais do que oportuno de a gente aglutinar essas pessoas
que tem essas ideias e que ficam jogando essas ideias, algumas muito boas, outras nem tanto
mas é o momento de a gente aglutinar essas pessoas em função desse compartilhamento cívico
porque como a gente tem essa carência de mostrar o rosto - e isso é muito do momento
que a gente vive hoje, de internet, que eu falo
esse ato de mostrar o rosto, ele faz parte também -
por mais óbvio que isso possa parecer - de um movimento
de você dar visibilidade a identidades que
são diariamente negadas.
A identidade gay, como a identidade do *** a identidade do nordestino
e várias outras são identidades diariamente negadas
negadas de direitos que são essenciais para as pessoas
Quando você dá rosto a isso, você quebra
com essa lógica. E aí eu chego à segunda
palavra que eu acho que explica muito,
na verdade, eu acho que a maior parte do sucesso do projeto "Eu sou gay".
Essa segunda palavra se chama "afirmação".
A gente sabe que boa parte das palavras hoje
que são associadas hoje aos movimento sociais
ligados à essas minorias são palavras cuja raiz semântica é negativa.
Eu posso citar algumas aqui: homofobia, misoginia, preconceito, racismo, ódio
todas essas palavras emulam uma negação
e é natural que os movimentos sociais surjam - você só surge, acorda e desperta para
o movimento social quando você precisa negar aquilo que lhe é negado.
É um pensamento um pouco hegeliano isso, em que você afirma na negação da negação
Mas, a partir do momento em que você diz "eu sou"
qualquer resquício de negação vai aos poucos se esvaindo
vai desaparecendo.
Porque você está afirmando alguma coisa muito forte ali.
porque ser, todos os seres vivos são
mas o que nos faz humanos, a nossa qualidade,
é entender que somos
e tem muita gente hoje que não entende que é.
Entender que é é muito importante e a história do "Eu sou gay", curiosamente,
foi introjetada rapidamente pelas pessoas - isso não está no texto que publiquei no dia
12 de abril - mas eu acho que havia alguma coisa orgânica ali que as pessoas
entenderam que aquele era um projeto não apenas de afirmação como era afirmativo
era um projeto positivo, era um projeto pra cima, alegre,
tanto é que a maior parte das fotos que a gente recebeu
foram fotos de pessoas sorrindo.
Era muito comum a gente receber fotos de pessoas sorrindo
a gente recebeu zilhões de fotos
nesse processo de receber as fotos a gente recebeu também alguns textos
porque várias pessoas explicavam porque mandavam as fotos
alguns textos eram curtinhos e tal, só meio que agradecendo a oportunidade
de poder estar participando ali e alguns textos eram grandes
terminei selecionando alguns textos e um, em particular, me tocou muito esta semana,
porque ele consegue compilar em um parágrafo só essas duas palavras que eu citei hoje:
Visibilidade e Afirmação.
Esse texto foi enviado por um menino que tirou várias fotos ao lado de seus amigos
e no meio dessas fotos ele mandou um arquivo em word em que ele explicava porque
se sentiu motivado a participar do projeto
e confessou que no começo ele não queria tirar foto
porque ele é gay e achava que aquilo ali ia tomar uma dimensão nacional - como realmente tomou -
e que ele teria medo de colocar a foto dele
com uma afirmação tão forte como essa,
mas ele terminou sendo convencido por uma amiga a participar do projeto
aí ele explica nesse texto todo o processo dele de sair do armário
o quanto... os momentos mais dolorosos, os momentos mais felizes
e ele explica que hoje ele é uma pessoa bem resolvida com isso.
E no final ele fala o seguinte. Eu vou ler pra vocês o que ele fala
porque eu acho que nada poderá superar isso daqui
e eu acho que explica muito todas as motivações coletivas do projeto
'Para contar para os outros que eu sou gay
eu tinha que dizer as três palavras mais difíceis da minha vida
até hoje eu ainda tenho dificuldade em dizê-las
então eu uso variações: eu pego meninos, eu não curto meninas,
eu fico com caras
eu sinto atração por homens,
eu fico com pessoas do mesmo sexo.
Pra dizer essas três palavras, "Eu sou gay"
até hoje eu travo. Pra mim, ela implica tanto mais coisas
do que qualquer uma das variações que nós possamos utilizar
para revelar nossa orientação ***.
Até hoje, quando vou contar para alguém - mesmo com minha família sabendo,
todos os meus amigos sabendo, mesmo eu estando bem resolvido -
eu tenho medo.
Eu queria que chegasse o dia
em que eu simplesmente não tivesse mais que dizer
ou que simplesmente não fosse mais me importar.
Enquanto houver as agressões que nós temos visto,
todo tipo de preconceito e homofobia, esse dia não vai chegar.
E é por isso que eu participei da campanha
para que o cartaz que eu seguro no foto e as palavras contidas nele
passem a ser naturais não somente para os outros -
- esse menino é este, no centro da foto -
Eu queria que chegasse o dia
em que eu simplesmente não tivesse mais que dizer
ou que simplesmente não fosse mais me importar.
Enquanto houver as agressões.
esse dia não vai chegar.
E é por isso que eu participei da campanha
para que o cartaz que eu seguro no foto e as palavras contidas nele
passem a ser naturais não somente para os outros,
mas também para mim.
E que, ser gay, são seja algo que me defina,
seja apenas mais uma característica dentre tantas qualidades que nós temos.
Então, quando um amigo criar coragem e conseguir dizer pra você
"Eu sou gay",
saiba que pra ele é como se tivesse dizendo "Eu te amo"
São as três palavras mais difíceis que ele irá dizer em toda a sua vida.
Meus amigos que tiraram foto comigo não estavam dizendo "Eu sou gay".
Estavam dizendo "Eu te amo".'
Eu acho que, além disso, somente um pouco do vídeo que a gente fez pode ficar pra vocês.
Obrigada.
(Aplausos)
Sou de Vânia,
e de Vênus
e sou de Pedro
e de Marte
sou de Lia
Sou de verão
Sou de Peixes
e de Iris
Sou da Terra
e vivo a vida
Eu sou de Vera
sou de verão
Sou de Maia
dou do tempo
de amoras
e morenos
sou da selva
sou do amor
sou da praia
e da pista
da avenida
mais paulista
eu também sou
do Arpoador
sou do mato
do interior
de Tarumã
São Salvador
sou de lua
também sou
do sol
somos muitos
no universo
somos loucos
e serenos
de todo o mundo
e queremos paz
somos muitos universos
somos loucos e serenos
de todo o mundo e
queremos paz
Sou Divânia e
de Vênus
Eu sou de Pedro e
de Marte
eu sou de Lia
sou de leão
Sou de peixes
e de Iris
eu sou da terra
e vivo a vida
sou de Vera
sou de verão
sou de Maia
sou do tempo
de amoras
e morenos
sou da selva
sou do amor
sou da praia
e da pista
da avenida mais paulista
eu também sou
do Arpoador
sou do mato
do interior
de Tarumã
São Salvador
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