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Eu tenho um caso que não é de droga, mas é do quanto a periferia é oprimida
muito próximo de mim esse caso, que é o caso do meu irmão, o Edson.
Eu tenho irmão que era o irmão do meio, ele tinha acho que 17 anos.
E o Edson trabalhava, estudava, aquele neguinho sonhador, bonito, ele era muito bonito,
chamava muita atenção, e ele, ele falava que ele ia ser médico.
E nós não tinhamos carro, a gente não tinha telefone, a nossa família era muito pobre, a minha mãe tinha morrido
e a gente foi então lá pro Parque Ipê.
Eu comecei com essa coisa de música, o Edson trabalhava, estudava, mas os amigos eram sempre os mesmos
e tinha alguns que faziam umas coisas que não eram muito legais, tinha uns cara que já fazia uns assalto, outros já faziam alguma coisa
e a gente sempre conversava, "Ô Edson, não é legal, não vamo andar"
o mas é nosso amigo, cresceu com a gente, tal, "pois é, mas é oba! beleza!" não dá pra andar.
Acontece que num final de semana um desses amigos dele chamou ele pra passear de carro
e ele saiu num domingo, pra dar uma volta, lá no Ipê mesmo
e a polícia a paisana puxou a placa do carro e percebeu que o carro era roubado.
E ele tava, o meu irmão não sabia dirigir, ele tava no banco do carona curtindo
pra mostrar pra menininhas que eles tavam passeando de carro.
E eu não acho que ele tava inocente, eu não acho que ele não sabia, eu acho que ele sabia que o carro era roubado
porque aquele amigo dele não tinha condição de ter carro, mas pra ele não tinha nada demais estar ali, né.
Acontece que foi um passeio sem volta... né
um *** tão lindo, um *** tão promissor, sabe, um menino tão bom
ele saiu, a polícia a paisana pediu pra dar voz de prisão, deu voz de prisão, tava perseguindo o carro, o moleque que tava dirigindo
que era outro moleque da idade dele também, desesperado, sairam, perderam o controle do carro, bateu o carro muito forte no muro...
e isso aí, o meu irmão bateu cabeça no painel, porque não tava de cinto, e ele ficou meio, sabe quando fica grogue, desacordado
porque foi muito feia a batida, o menino tirou o lado dele, então ele abriu a porta do carro e saiu correndo pra dentro da favela
e o meu irmão ficou meio desacordado dentro do carro.
E nisso os policiais chegaram assim, e aí tinha um pessoal na janela, né, aquele tumulto que forma no bairro
os cara "Pode entrar! tá olhando o que? tá olhando o que?" e foi, e deu três tiros no meu irmão
ele meio desacordado, os cara deram três tiro um do lado do outro assim ó, um dois três assim...
Porque eu acho que a polícia, principalmente nessa época assim, 91, 92 né, a polícia...
preto, da periferia então, se matar não tem problema, ninguém vai tirar satisfação nem nada
mas o pessoal que tava na janela viu assim, e me contou
e sempre falo pro pessoal que é engraçado, porque se meu irmão tivesse esperado um pouquinho só
eu ia conseguir comprar um carro pra ele, porque a gente tava começando, começando a fazer sucesso
era início e tal, e aí, eu tava trabalhando quando os cara me falaram, aí me ligaram no serviço pra falar ó,
aconteceu isso, na segunda feira, tinha acontecido no domingo, ninguém me falou, não, é
aí o meu irmão que é o Kikinha né, que é o mais novo, Kikinha foi em casa e ele falou assim
pra minha esposa, era a Derci na época, "Neto, o Edson tá no hospital", ele não teve coragem de falar que ele já tinha morrido...
aí eu falei assim "O que aconteceu?" "Ah, ele tava com um menino que tava num carro roubado e bateu o carro.
Eles bateram o carro e os policiais atiraram, e ele tá no hospital". e eu fiquei tão nervoso
que eu falei assim: "meu, eu vou lá amanhã, eu vou pegar o chinelo e eu vou dar umas chinelada nele
memo que ele esteja lá, porque eu falei que não era pra ele andar com aqueles caras e tal".
Aí isso deixou meu irmão mais preocupado ainda, porque daí ele não teve coragem, nem ele e nem a minha esposa,
de falar pra mim que ele tinha morrido.
Eu dormi e fui trabalhar, aí eles ligaram pro meu chefe, e o meu chefe também não falava pra mim assim ó seu irmão morreu, ninguém falava.
Eu cheguei pra trabalhar ele falou assim, "meu, Neto, pega suas coisas e vai lá no hospital, tal, parece que seu irmão não tá bem".
Aí eu falei "eu já to sabendo, o meu irmão me falou ontem à noite, mas tá tudo bem, pode deixar..."
Eu sempre fui muito prático com essas coisas né, falei:
"eu não sou médico, se ele tá no hospital, deixa, deixa que depois eu vou pegar ele de jeito."
Aí ele falou "não, não eu vou falar melhor... é muito grave... o seu irmão não resistiu..."
Aí eu, eu não acreditei assim né, aí ele falou "pega um táxi e vai lá na casa do seu pai" e tal...
não sei, eu lembro, quando eu cheguei tava o maior tumulto na frente da casa da minha vó assim,
que era onde a gente morava, aí eu subi e falei "o que que foi?"
Aí minha tia falou "meu, o Edson morreu".
Caramba o meu irmão cara, meu irmão mais novo assim, que eu que cuidava né...
então eu não sei dizer assim como que foi mas aí eu só sei que eu subi pra poder ver o que tinha acontecido
quando eu cheguei lá eu vi o sapato, o sapato do meu irmão tava jogado assim
aí que as tiazinha da janela me contaram tudo o que aconteceu.
E eu não tinha o que fazer, não tinha com quem falar nem a quem recorrer nem nada...
Foi só mais um neguinho que podia ter feito a diferença no país, que podia ter sido bom, que morreu
por causa de um carro, os cara mataram meu irmão, não vi nunca mais meu irmão, não tive a chance de fazer nada pra ele...
Então isso aí, isso aí me motivou muito a montar a ONG em Carapicuiba, com o Negritude.
Assim que a gente começou a fazer sucesso, eu sabia que se a gente tivesse alí as crianças, em período integral,
se o moleque saísse da escola e ele ficasse alí dentro aprendendo coisa legal
o moleque ia ser legal, não ia ter tempo para estar com os outros.
E eu aprendi da pior parte, não aprendi, não foi por estatística, não foi por ouvir dizer, sabe?
Eu aprendi por que aconteceu comigo mesmo.
É por isso que eu defendo essa coisa de educação integral e criei o instituto e tal.
Então quando você fala dessa questão de drogas ou de violência...
Isso aí eu cresci ali, eu cresci vendo tudo isso, tudo isso...