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Eu sei que todo mundo já fez isso,
mas eu vou fazer mesmo assim, você não manda em mim.
Olá, tudo bem com vocês?
Como você pode ver aqui nesse desenho,
eu desenho pra caralho, eu desenho muito bem,
mas eu tô com uma pequena tendinitezinha na minha mão, tá?
Então quem vai traduzir a minha vida em desenho é a minha amiga
Fernanda Rodante, beleza?
Meu nome é Rafael Bastos Hocsman e essa é a minha vida.
Eu nasci em 05 de dezembro de 1976.
A dona Iolanda e o doutor Júlio Roberto,
os meus pais, deixaram pra saber
o meu sexo apenas na hora do meu nascimento.
Se eu tivesse nascido mulher, eu me chamaria Tiffany,
e com esse nome, com certeza hoje eu seria uma prostituta.
Eu nasci bem, eu nasci com saúde, nasci com 3,600 kg.
O parto foi cesariana, o que, aliás, estendeu em 17 anos
o meu primeiro encontro com uma ***.
Eu fui uma criança terrível, não de bagunceira,
de feia mesmo, eu sou descendente de judeu
com portuguesa, então com 13 anos de idade
eu já era narigudo e peludo.
Meu apelido na creche era Tony Raminhos.
Minha mãe cortava meu cabelo com penteados que só ela no mundo
achava legal, ou seja, eu era uma criança nariguda,
peluda e andava por aí com o cabelinho do Raul Gil.
Eu era um horror velho, você não faz ideia.
Minha primeira escolinha se chamava Trenzinho Triste.
Exatamente, Trenzinho Triste.
Nome deprimente, né?
Ninguém entendia o porquê desse maldito nome,
primeiro porque não tinha trem em Porto Alegre,
e segundo porque trenzinho
não costuma demonstrar sensações, né?
Foda-se que o trenzinho tava triste,
trem é feito pra transportar, não é pra curtir a vida, ok?
Todo dia na hora da merenda lá na Trenzinho Triste,
a gente jogava dominó e comia sagu.
Eu odiava dominó e tinha nojo de sagu.
Porra, pra comer sagu você tem que ter mais de 90 anos, velho.
Aquele negócio lá, o sagu,
parecia coquetel de larva de inseto, sabe?
Bom, talvez por isso que o trenzinho era triste, né,
tendo que comer sagu todo dia,
me admira que o nome da escola não era
Trenzinho Deprimido pra Caralho, né?
Ou Trenzinho que Quer Mais é Mandar a Professora Madalena
enfiar a Porra do Sagu no Rabo;
esse é um bom nome também.
Bom, eu era uma criança muito popular,
muito popular na minha rua, porra,
todos gostavam muito de mim, eu lembro disso.
Eu era conhecido como o narigudinho do apartamento 307,
era muito legal.
Todos tinham muito carinho por mim.
Duas vezes por semana os meus amigos,
o César, o Gustavo e o Carlos,
me batiam com uma raquete de tênis, era ótimo, né?
O zelador do meu prédio me colocava de castigo
dentro da lixeira e todos riam da minha cara.
Porra, era demais, velho, saudade desse tempo, sabe?
Eu esqueci, na verdade eu esqueci de muita coisa
da minha infância, mas de uma coisa eu não esqueço: um garoto.
Porra, esse menino era um demônio, sabe?
Todo dia na volta da escola ele arrancava a minha pasta
e atirava ou no lixo ou no esgoto ou no fogo.
Pra você entender como o menino era filho da puta,
entre os anos de 1982 e 1987 ele foi campeão mundial de bullying.
O recorde dele só foi quebrado em 1989
pela menina do filme O Exorcista.
Eu admito, eu não tive uma infância muito feliz,
mas quando eu virei adolescente, ah não, aí, aí sim...
aí sim que eu me fodi pra caralho, viu.
Quando eu tinha 13 anos de idade,
meu pai, que é médico, foi transferido para a Argentina,
e lá fui eu.
A única pessoa que a gente conhecia no país era meu primo
Matias, que também era conhecido na noite como Jeniffer.
Meu pai não gostava muito dele, sabe,
não porque ele era travesti, mas porque era argentino mesmo.
Matias era travesti, argentino, gordo e judeu.
Se você tem algum preconceito, olha,
é bem provável que você não goste dele, tá?
Matias ficava comigo quando os meus pais iam trabalhar.
Era estranho, todo dia ele tentava passar batom em mim.
Porra, óbvio que eu não deixava, né?
Vai que aquela desgraça mancha minha roupa de princesa.
Bom, só voltamos pro Brasil em 1994,
que, aliás, foi um ano horrível pra mim,
eu fui reprovado na escola.
A disciplina, História.
Porra, que absurdo, isso, eu era muito bom em História.
Era tempo de ditadura, 1994, sabe,
o tempo do governo do Geisel, é.
Não era fácil viver num país nazista como o Brasil
logo depois da Segunda Guerra, sabe?
A sorte é que a gente tinha o Che Guevara
pra lutar pelos interesses do G5, se não, aí você já viu, né?
Bom, 1995 eu entrei pra faculdade, né.
Turismo eu fiz, é.
Eu achava que a faculdade era feita viajando pelo mundo,
mas não era, era numa sala, uma sala triste.
Eu tive no curso uma professora que se chamava Joia.
Toda vez que ela vinha falar comigo, eu falava:
"Ah, então tá joia".
A piada era ridícula, uma bosta, ok?
Mas meus amigos riam, ela não entendia,
porque ela era mais burra do que eles.
Eles eram estúpidos, claro, pra achar graça
nessa porra dessa piada só podia ser um bando de imbecil,
mas de qualquer maneira, foi ali
que eu descobri que eu podia ser engraçado. É.
Bom, logo no primeiro ano de faculdade,
eu transferi pro curso de Jornalismo.
Meu avô achava que virando jornalista
eu ia ser entregador de jornal, mas eu falei:
"Vô, não, você não tá entendendo,
jornaleiro é que entrega jornal, eu vou ser jornalista".
Então o meu avô teve um derrame e morreu.
É, meu avô não gostava de ser contrariado, sabe?
O tempo da faculdade foi muito legal,
ali eu conheci o amor da minha vida. É.
Eu nunca vou esquecer, cara, o nosso primeiro encontro.
Eu olhei pra ela e disse: "Você é a coisa mais linda do mundo".
E ela respondeu: "Dvar jag talarr its dik sprak".
Ela era sueca, tava no país pra filmar um dos clássicos
da dramaturgia sueca,
o "Picardias da Sueca Sapeca de Cueca".
Era um filme ruim, mas era um trava-línguas sensacional.
Em 1996 eu arranjei o meu primeiro emprego,
o guarda-volumes de um supermercado.
Era um horror, eu passava oito horas por dia escutando
o mesmo LP do Eros Ramazzotti.
Puta, que som de merda aquele, sabe?
Aquelas músicas viraram uma assombração na minha vida, cara,
tanto que três anos depois,
uma daquelas canções tocou na rádio do meu carro
e eu atirei ele de uma ribanceira.
Passei dois anos internado
na UTI do Hospital de Pronto Socorro,
mas valeu a pena, porque pelo menos a música parou.
Bom, depois disso eu trabalhei numa loja de roupas,
numa farmácia, num ponto do jogo do bicho,
numa igreja, numa casa de swing, numa pet shop
e numa fábrica de bonecas infláveis,
onde, aliás, eu conheci a Valdiceia,
mas eu não quero falar sobre esse assunto,
porque ai, ainda dói um pouco.
Bom, 1998 eu fiz um site chamado Página do Rafinha, né?
Foi o primeiro site de vídeo independente
da internet brasileira, é.
Ali eu imitava as mulheres do ABBA,
a Kelly Key, a Madonna...
Porra, deu até saudade do meu tio Matias, sabe?
Pô, aquele traveco louco ia ter muito orgulho de mim, sabe?
É.
Infelizmente ele morreu em 98 atropelado por um caminhão
carregado de gado vindo do Uruguai,
mas ele teria muito orgulho de mim, sabe?
A internet me deixou um pouco conhecido, né?
Então eu tive a chance ali de trabalhar na televisão.
É, trabalhei em várias emissoras,
até que em 2003 eu saí de Porto Alegre e me mudei pra São Paulo,
me apaixonei pela cidade, porra, São Paulo é grande,
grande, grande, é tão grande que se você não vira mendigo,
você já é vencedor, sabe?
Eu não cheguei a virar mendigo...
Tá bom, mais ou menos.
Durante um bom tempo eu morei num apartamento
de 25 metros quadrados, sabe?
Era tão apertado, mas tão apertado que eu cagava
e cozinhava ao mesmo tempo.
Bom, enquanto eu trabalhava na TV,
a partir de 2004, mais ou menos,
eu passei a fazer stand-up comedy com os meus amigos
Marcelo Mansfield, Marcela Leal e mais uma turminha muito legal.
Não, não dava dinheiro, não dava fama,
mas pelo menos eu ocupava a minha cabeça
e não me atirava no mundo das drogas.
O stand-up começou a fazer sucesso,
em 2008 eu fui contratado pra trabalhar
num programa muito legal de televisão.
A história talvez você conheça, mas eu vou resumir:
eu falava, as pessoas riam, eu falava mais, as pessoas riam,
eu falava mais um pouco e as pessoas riam bastante,
até que um dia eu falei e os meus amigos
acharam que eu tava possuído pelo demônio.
Na verdade eu não tava possuído pelo demônio,
eu tava possuído por um tal de Lúcifer,
o que é bem diferente.
Bom, muita coisa aconteceu desde ali,
mas como eu tô pagando aqui a Fernanda,
que tá desenhando por hora e eu sou judeu,
eu não quero mais gastar dinheiro,
então eu vou dar uma finalizada nessa história, tá?
Eu venho fazendo muita coisa, tá,
ultimamente, bastante coisa, a principal dela é filhos;
eu gosto de fazer filhos, eu já fiz seis milhões de filhos,
mas só um não morreu nas trompas da minha mulher.
Ele nasceu em 2010, ele é lindo, é forte,
tem saúde e não é narigudo, pelo menos até agora.
Bom, resumindo, eu sou feliz pra caralho,
minha vida tem sido maravilhosa.
Eu vou confessar pra vocês: eu até pensei em contar
a minha história com bastantes detalhes e tal,
mas eu acho que eu tô com uma infecção urinária
e eu tô tendo que parar de cinco em cinco minutos pra mijar, tá?
Eu acho que é cistite ou sífilis,
eu realmente não sei, eu vou no médico,
eu preciso ir no médico.
Ok, valeu.
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