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Tradutor: Leonardo Silva Revisor: Renato Auricchio
Faz 128 anos
que o último país do mundo aboliu a escravatura
e 53 anos
que Martin Luther King fez seu discurso "Eu Tenho um Sonho",
mas ainda vivemos em um mundo
em que a cor da nossa pele não só causa uma primeira impressão,
mas uma que é duradoura.
Eu nasci numa família cheia de cores.
Meu pai é filho de uma empregada doméstica
de quem ele herdou um tom de pele chocolate intenso.
Ele foi adotado por pessoas que conheço como meus avós.
A matriarca, minha avó,
tem pele de porcelana e cabelos brancos como algodão.
Meu avô tinha um tom de pele entre iogurte de baunilha e de morango,
assim como meu tio e meu primo.
Minha mãe tem pele cor de canela,
filha de uma brasileira com uma pitada de avelã e mel
e um homem com pele cor de café com leite,
mas com muito café.
Ela tem duas irmãs.
Uma delas tem a pele na cor de amendoim torrado
e a outra, também adotada,
está mais para bege, como uma panqueca.
(Risos)
Por ter crescido nessa família,
a cor da pele nunca foi importante pra mim.
Fora de casa, porém, as coisas logo se mostraram diferentes.
A cor tinha vários outros significados.
Lembro-me das minhas primeiras aulas de desenho na escola
que me provocavam um monte de sensações contraditórias.
Eram empolgantes e criativas,
mas não entendia por que um lápis com um único tom de pele.
Eu era feita de pele, mas ela não era rosada.
Minha pele era marrom e as pessoas diziam que era negra.
Eu tinha sete anos de idade e uma bagunça de cores na minha mente.
Mais tarde,
quando levava meu primo à escola,
geralmente achavam que eu era babá dele.
Ao ajudar na cozinha, em festas na casa de amigos,
as pessoas achavam que eu era a empregada.
Fui até tratada como prostituta
só porque estava andando sozinha na praia com amigos europeus.
Muitas vezes,
ao visitar minha avó ou meus amigos em casas de classe alta,
pessoas me diziam para não usar o elevador social,
porque, afinal, com esta cor de pele e com este cabelo,
alguns lugares "não são pra mim".
De certa forma,
me acostumei e passei a aceitar isso, em parte.
Porém, algo dentro de mim continuava a se incomodar com isso.
Anos depois, me casei com um espanhol,
mas não um espanhol comum.
Eu escolhi um com a cor de pele de uma lagosta queimada de sol.
(Risos)
Desde então, uma nova pergunta começou a me perseguir:
"Qual será a cor dos seus filhos?"
Como podem imaginar, isso é o que menos me preocupa,
mas, pensando bem,
com a experiência que eu tinha,
minha história me levou a fazer da fotografia o meu ofício
e foi assim que nasceu o Humanae.
O Humanae é uma tentativa de ressaltar nossa verdadeira cor,
em vez das não verdadeiras
- branco, vermelho, preto ou amarelo -, associadas a raça.
É meio que um jogo que questiona nossas regras.
É um trabalho em construção, de uma história pessoal a uma global.
Eu retrato as pessoas com um fundo branco.
Depois, seleciono um quadrante de 11 pixels a partir do nariz,
pinto o fundo
e busco pela cor correspondente na paleta industrial, Pantone.
Comecei com minha família e amigos
e cada vez mais pessoas se juntaram à aventura,
graças aos pedidos feitos através das redes sociais.
Achei que o principal espaço para mostrar meu trabalho era a internet
porque quero um conceito aberto que convide todos
a clicarem em "Compartilhar", tanto no computador quanto na mente.
A bola de neve começou a rolar.
O projeto foi muito bem recebido...
convites, exibições,
formatos físicos,
galerias e museus
simplesmente aconteceram.
Entre tudo isso, o que mais gosto:
quando o Humanae ocupa espaços públicos
e aparece nas ruas,
ele fomenta o debate popular
e gera um clima de comunidade.
Já retratei mais de 3 mil pessoas
em 13 países diferentes,
19 cidades diferentes em todo o mundo.
Só pra mencionar alguns:
de uma pessoa da lista da Forbes,
a refugiados que cruzaram o Mediterrâneo de barco.
Em Paris, da administração da UNESCO a um abrigo
e de estudantes na Suíça e nas favelas do Rio de Janeiro.
Todos os tipos de crenças,
identidades de gênero,
ou deficiências físicas,
um recém-nascido ou uma pessoa com doença terminal.
Todos juntos construímos o Humanae.
Esses retratos nos fazem repensar a forma como vemos uns aos outros.
Quando a ciência moderna questiona o conceito de raça,
o que significa pra nós ser ***, branco, amarelo, vermelho?
Será o olho, o nariz, a boca, o cabelo?
Ou será que tem a ver com a nossa origem,
nacionalidade
ou conta bancária?
Esse exercício pessoal acabou se tornando uma descoberta.
De repente, percebi que o Humanae era útil para muita gente.
Ele representa meio que um espelho
para aqueles que não conseguem se ver representados por nenhum rótulo.
Foi incrível
as pessoas começarem a compartilhar comigo o que acharam do trabalho.
Tenho centenas de mensagens,
que vou compartilhar com vocês também.
A mãe de uma menina de 11 anos me escreveu:
"Uma ferramenta muito boa pra que eu trabalhe a confiança dela.
Na semana que passou,
uma das amigas dela brigou com ela e disse que ela não pertence à Noruega
e que não devem deixá-la morar aqui.
Por isso, seu trabalho tem um lugar especial no meu coração
e é muito importante pra mim".
Uma mulher compartilhou seu retrato no Facebook e escreveu:
"Em toda a minha vida,
pessoas de todo mundo tiveram dificuldade pra me enquadrar em um grupo,
em um estereótipo,
em uma caixa.
Talvez devêssemos parar com isso
e, em vez de rotular, devêssemos perguntar ao indivíduo:
'Como você se considera?'
Então, eu diria:
'Oi, eu sou Massiel.
Sou holandesa-dominicana,
cresci numa família mestiça
e sou bissexual'".
Além dessas reações inesperadas e tocantes,
o Humanae encontra nova vida em diversas áreas do conhecimento.
Só pra mostrar alguns exemplos,
ilustradores e estudantes de arte
usam-no como referência para seus esboços e estudos.
É uma coleção de rostos.
Pesquisadores nas áreas de antropologia,
física e neurociência
usam o Humanae com diferentes abordagens científicas
relacionadas à etnicidade humana,
à optofisiologia,
ao reconhecimento facial
ou ao mal de Alzheimer.
Um dos impactos mais importantes do projeto
é que o Humanae foi escolhido para ser capa da Foreign Affairs,
uma das mais relevantes publicações políticas.
E, por falar em relações internacionais,
encontrei os embaixadores perfeitos para o meu projeto...
os professores.
São eles que usam o Humanae como ferramenta com propósito educacional.
A paixão deles me encorajou a voltar às aulas de desenho,
mas agora como professora também.
Meus alunos,
adultos e crianças,
pintam seus autorretratos,
tentando descobrir suas próprias cores únicas.
Como fotógrafa,
percebo que posso ser um canal para que os outros se comuniquem.
Como indivíduo,
como Angélica,
sempre que tiro uma foto,
sinto que estou diante de um terapeuta.
Toda a frustração, medo e solidão que um dia senti
tornam-se amor.
O último país...
O último país do mundo a abolir a escravatura
é o país onde eu nasci,
o Brasil.
Ainda temos que trabalhar muito para abolir a discriminação.
Ela ainda é uma prática comum no mundo todo
e não vai desaparecer sozinha.
Obrigada.
(Aplausos)
Obrigada.