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O homem habita esta parte do Mundo há mais de cinco mil anos.
Com a evolução da agricultura e da tecnologia, temos vindo a transformar o ambiente que nos rodeia
de forma a prosperar nos locais mais agrestes.
Mas o nosso esforço para dominar a Natureza nunca foi tão destrutivo
como tem sido nos últimos 100 anos.
Porém, hoje em dia estamos perante uma era em que a ciência nos informa inequivocamente
que temos de inverter a destruição que temos vindo a causar desde a revolução industrial.
A nossa viagem começa ainda longe da fronteira com Portugal,
nas margens de um dos mais belos lagos naturais da Europa, o Lago de Sanabria.
É aqui que nasce um rio que nos levará até bem dentro do território português,
mesmo ao coração de Trás-os-Montes. O rio Tuela.
Entra em Portugal pelo fantástico Parque Natural de Montesinho,
o lar de muitas das mais icónicas espécies da fauna portuguesa.
Atravessando os vales graníticos que outrora lhe impediam a passagem,
o rio avança confiante pela Serra de Montesinho, rodeado agora de inúmeras espécies animais que,
tal como o Tuela, estão aqui há milhares de anos.
Este Gaio, tal como o resto da avifauna que aqui habita,
vive num equilíbrio frágil com as populações humanas.
Portugal tem dos maiores índices de biodiversidade de aves da Europa,
e os seus ecossistemas de rio desempenham um papel extremamente importante.
O Tuela é um dos principais rios de Montesinho, com as suas magníficas galerias ripícolas,
e é também um dos mais bem preservados.
E quando a Natureza é deixada a si mesma, a vida floresce ao seu ritmo.
À medida que viaja para Sul, o rio torna-se agora mais maduro,
e brevemente chegará ao seu destino final, onde dará lugar a um outro tão especial rio.
Com os primeiros raios da manhã, a cidade enche-se de luz,
que se reflecte no rio que a atravessa, o rio Tua.
Mirandela serve de palco aos primeiros passos do ainda jovem rio.
Esta é a única grande povoação que o Tua atravessará em todo o seu curso
de mais de 40 Km.
E é aqui também que encontra o seu primeiro obstáculo.
Construída em 1992, a ponte açude de Mirandela provocou um impacto significativo
no rio e no seu rico ecossistema.
As espécies de peixe que migravam para montante para desovar anualmente,
viram as suas rotas cortadas para sempre.
Porém, devido à sua pequena dimensão, o açude não destruiu as galerias de árvores
que ladeiam o rio para jusante, nem prejudicou irremediavelmente a fauna desses locais,
como as comunidades de anfíbios, sempre bons indicadores da qualidade das águas.
Ao sair de Mirandela, o Tua é um rio calmo, com um leito largo,
e uma corrente que nunca se torna demasiado agressiva.
À medida que avança, o Tua encontra várias pequenas represas,
que diligentemente o atrasam na sua viagem.
É nestes baixios, formados pelas represas,
que durante o Verão milhões de insectos depositam os seus ovos.
Esta é a base de toda a vida no vale do Tua.
Estes pequenos organismos servirão de alimento
para as inúmeras espécies de peixes, aves e répteis que aqui habitam,
e desempenham também um papel absolutamente fundamental
na polinização de todas as plantas numa vasta área, tanto as selvagens como as usadas na agricultura.
Toda esta abundância de alimento atrai os animais para as águas do rio.
Esta alvéola cinzenta, enquanto procura comida,
tem tempo para se refrescar nestas águas cristalinas.
O rio aproxima-se agora da povoação de Abreiro,
aproximadamente a meio da sua viagem .
Aqui está um dos mais belos troços de todo o seu percurso.
Durante milhões de anos, o rio tem vindo a esculpir estes granitos,
transformando-os em peças com linhas e formas de tirar a respiração.
É uma autêntica galeria de arte.
É aqui, neste local simplesmente sublime, que vamos encontrar uma das aves
que depende totalmente dos pequenos habitats ribeirinhos.
O muito pouco conhecido e difícil de avistar melro d’água.
Este pequeno pássaro vive e procria literalmente no rio.
Constrói o seu ninho nas rochas dos pequenos rápidos,
e alimenta-se num território pequeno à volta do seu ninho.
Passa toda a sua vida aqui, sem nunca se afastar.
É o único passeriforme da sua ordem capaz de mergulhar completamente debaixo de água.
Está perfeitamente adaptado para o fazer,
uma vez que se alimenta de pequenos insectos e larvas
que ficam presos debaixo dos seixos, trazidos pela corrente.
Esta é apenas uma das muitas espécies que dependem completamente
dos ecossistemas ribeirinhos, habitats delicados que cada vez menos
enchem de vida a metade ocidental do hemisfério Norte.
Depois de passar a aldeia da Brunheda, o rio entra no canhão do Tua.
Esta é a parte mais selvagem e inacessível do rio.
Em mais de 20 Km, o rio encontra-se apenas uma vez com populações humanas.
Este é um refúgio para a fauna local, que escolhe proteger aqui
as suas ninhadas de crias, abrigadas nas grandes árvores do canhão.
Enormes paredes de granito elevam-se da superfície da água,
criando um cenário dramático e uma paisagem imponente.
Milhares de sobreiros, a árvore nativa mais emblemática de Portugal,
protegidos por lei, também crescem aqui.
Há ainda uma comunidade que vive dentro do rio, que é uma das mais raras da Europa,
e só se mantém aqui devido às condições cristalinas das águas do Tua.
Um molusco muito especial, o mexilhão de água doce,
faz deste rio um local de importância global para a preservação da biodiversidade do planeta.
Aqui também é importante por outra razão, pois serve de alimento a um dos mamíferos
mais esquivos do Tua, a lontra.
Estes choupos, freixos e amieiros são o lar de inúmeras espécies de animais,
e são árvores que dependem totalmente das águas do rio,
e chegam a ter as suas raízes dentro de água, como é o caso do amieiro.
Esta árvore é tão abundante e característica desta zona
que dá o nome à única aldeia que tem coexistido com o rio dentro do canhão,
situada a algumas dezenas de metros das suas margens.
No Verão, as temperaturas no canhão podem atingir os 45 graus.
A estas horas de maior calor,
algumas poças ficam isoladas do leito principal do rio.
A maioria dos animais abrigam-se, tentando fugir ao sol implacável,
mas nem todos o fazem.
Uma cobra d’água viperina está à espreita.
Este predador de sangue frio esteve pacientemente à espera deste momento.
A sua presa preferida, pequenos peixes,
estão agora encurralados nas poças, totalmente indefesos.
A caçada é tão rápida quanto feroz. A cobra devora tudo o que encontra.
Desenvolveu ao longo de milhões de anos uma velocidade espantosa,
e não dá quaiquer hipótese de fuga às suas presas.
Depois da merecida refeição, regressa ao seu refugio para fazer a digestão.
É nos pequenos recantos do rio que os peixes desovam, nascem e crescem,
até serem suficientemente grandes para abandonar as creches.
Alimentam-se de pequenos invertebrados, terrestres e aquáticos,
e também das pequenas plantas que se enraízam no leito do rio.
Quando atingem o tamanho suficiente,
viajam para jusante em busca de águas mais profundas e frias.
Mas muitos deles nunca chegam ao seu destino.
Nas margens do rio há um predador temível, um pássaro perfeitamente especializado
numa pesca de emboscada e de um ataque fulminante, o guarda-rios.
Conhecido por tantos outros nomes, como pica-peixe, rei-dos-rios ou juiz-dos-rios,
esta ave, uma das mais fantásticas e coloridas da Europa,
é mais uma das incríveis espécies que compõem a biodiversidade do Tua.
Observando atentamente as águas do rio, colocado num poleiro ou numa rocha,
dispara como uma flecha em direcção à sua presa, que nunca virá a saber o que lhe aconteceu.
O peixe ainda resiste a ser engolido,
mas o guarda-rios aprendeu a lidar com esta fraca resistência,
atordoando o peixe antes de o engolir por inteiro.
É um predador territorial, e é importante marcar os locais onde caça.
Depois de deixar a sua marca, parte para outros territórios.
Depois de sair do canhão, o Tua chegará ao seu destino final – o rio Douro.
Há milhares de anos que as águas e sedimentos transportados pelo Tua se depositam no Douro,
que, por sua vez, os transporta para o mar.
A algumas dezenas de metros acima destas águas, está um legado da história de Portugal.
Ao longo de todo o canhão, a linha do Tua, cravada nas escarpas da encosta Sul do rio,
acompanha-o desde o seu início, desde Mirandela.
A linha do Tua foi inaugurada no dia 27 de Outubro de 1887,
na presença do Rei D. Luís I,
para permitir o transporte de pessoas e de mercadorias
entre a cidade de Mirandela e a linha de comboio do Douro.
A linha, agora com 125 anos, foi recentemente encerrada.
Para funcionar devidamente, a linha precisa de obras de reparação e manutenção,
uma tarefa que o estado português não parece disposto a levar a cabo.
O restauro desta linha de comboio permitiria o transporte de pessoas mais uma vez,
possivelmente até num comboio de charme num cenário magnífico,
um recurso turístico de valor incalculável para a região local.
As raízes da linha do Tua estão intimamente ligadas à produção de vinho e ao Alto Douro Vinhateiro,
que durante muitos anos foi o coração de Trás-os-Montes.
A união milenar entre o Tua e o Douro tem um valor natural, histórico e social imenso.
Mas brevemente, se nada se fizer em contrário, será destruída para sempre.
O ecossistema da bacia hidrográfica do Tua e Douro será cortado ao meio,
interrompendo um habitat ímpar e a casa de milhares de animais selvagens,
alguns deles gravemente ameaçados de extinção, como é o caso da rara e frágil cegonha-preta.
Uma grande barragem hidroeléctrica está a ser construída na foz do rio Tua,
onde este encontra o rio Douro.
A barragem pretende inundar as margens do rio numa extensão de mais de 20 Km,
submergindo todo um ecossistema ribeirinho e uma linha férrea centenária.
Um habitat único, do rio mais selvagem de Portugal, destruído para sempre.
Milhares de sobreiros, protegidos por lei, irão desaparecer.
Uma paisagem que tem vindo, ao longo de séculos,
a aprender a coexistir com populações humanas, será dizimada.
Tudo isto para se construir uma barragem que pretende produzir 0,1 %
das necessidades energéticas do país.
O Estado insiste em construir uma barragem que custava inicialmente
mais de 333 milhões de euros, numa altura de contenção e de austeridade,
inserida num Plano Nacional de Barragens com um custo de mais de 16 mil milhões de euros.
A UNESCO já preveniu o estado de que as medidas de compensação e mitigação de impacto,
necessárias para manter o Alto Douro Vinhateiro como Património da Humanidade,
seriam mais caras do que a barragem em si.
Quando já foram discutidas alternativas a este plano
que rondam os valores totais de 360 milhões de euros,
é uma decisão que não se compreende.
Esta barragem é um erro grave demais para suportarmos, e deve ser impedida.