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Aqui tinha uma casa.
Aquele poste ali era casa, aquela caída era casa.
Aqui tudo era casa.
Quando teve a ameaça a primeira vez,
quando a gente começou a se reunir,
nós ficamos aqui, montamos acampamento aqui,
montamos uma barraca aqui, nessa cerca aqui.
Ficava um pessoal aqui.
Dali dava pra você ver pra lá.
Um ficava lá de cima.
Tinha uma casa lá em cima, de alvenaria.
A gente ficava na porta da casa, na cobertura da casa,
e dá pra você ver pra lá e dá pra você ver pra lá.
Qualquer coisa, de lá eu ligava pra cá...
"Tá vindo 'tal' carro, carro que eu não conheço".
Eu acredito que lá em cima, naquele topo, seja...
alguma coisa.
Tipo uma guarita.
Uma guarita ali em cima.
Tudo que você vê aqui era Pinheirinho.
Tudo que você vê era Pinheirinho.
Ali em cima era o quê?
Faz favor, se retira pra nós.
Não! Agora, já!
Faz favor. Não adianta gravar.
Desliga essa bosta se não eu quebro!
Eu não me lembro bem.
Eu lembro a data que a gente foi morar lá,
mas o tempo que a gente já estava ali construindo,
não recordo muito bem, não.
Eu sei que a gente foi morar lá dia 06 de setembro de 2010.
Foi um período complicado, porque a gente pagava aluguel
e a gente tinha que construir ao mesmo tempo,
porque a gente não tinha, assim...
Não tinha a ajuda de ninguém, era a gente mesmo.
A gente não tinha como pagar pedreiro,
como pagar ajudante, nem nada.
Era a gente mesmo.
Era eu, ele e as crianças, que pegavam no pesado.
Subir bloco, pegar água, areia...
Tudo era a gente mesmo.
O tempo de construção foi muito corrido.
A gente teve pouco tempo pra sair de onde a gente estava,
porque ficou complicado.
Eu fiquei desempregada,
então ficou complicado pagar aluguel.
A gente tinha que correr
pra poder mudar o mais rápido possível.
Tanto que a gente conseguiu...
A gente fechou um cômodo, cobriu um cômodo,
e a gente mudou pra lá,
pra um cômodo, onde a gente foi morar.
Mas de quem foi a ideia de ir pro Pinheirinho?
A ideia foi dele.
Tem uns...
Um pessoal mesmo, colegas meus de Jacareí,
que já moravam aqui no Pinheirinho.
Então eles faziam...
"Em vez de estar pagando aluguel, vá lá no Pinheirinho".
Nem sabia da existência desse Pinheirinho.
Fazia nem ideia o que era o Pinheirinho.
Vi que eles comentavam...
"Tem uma invasão em São José, bem no começo da cidade".
Aí ele deu uma dica...
"Procure 'fulano'"... Deu a dica do coordenador lá...
"Procure e veja se você consegue um terreno lá".
A história dos moradores do Pinheirinho
começa no dia 31 de dezembro de 2003.
Se ocupam umas casinhas que eram do CDHU,
que ficavam ali do lado do Campo dos Alemães...
A população ocupa.
E tem uma liminar pra retirar esse pessoal.
Eles conseguem na justiça uma liminar
pra retirar as famílias que moravam lá.
Então é nesse momento que a gente chega.
Nós chegamos nessas casas com algumas famílias,
deveriam ser quase 100 famílias,
mas não chegava a 100 famílias.
E aí, como a polícia cercou, com cavalos, cães,
e todo o aparato policial,
nós fizemos uma discussão com as famílias
que nós deveríamos sair, porque não tinha jeito.
tinha perdido a liminar, e não dava.
Mas já dentro de uma estratégia de fazer uma nova ocupação.
Aí nós saimos...
Foi todo aquele ramerrame com a polícia,
aquela confusão toda,
e nós saimos e fomos ocupar uma praça
chamada Campão.
Campão do Campo dos Alemães,
que na verdade é uma praça...
É um terreno que a prefeitura nunca fez nada lá,
que servia para jogar futebol, pra criançada jogar futebol.
E nós fomos pra essa praça.
Tem esse primeiro enfrentamento, por quê?
Porque a Guarda Municipal, a chefe da Guarda Municipal,
pede para reprimir, pra tirar o povo dali.
E a Polícia Militar se nega. Ela fala...
"Eu tinha que cumprir uma liminar, eu já cumpri",
"que é a liminar das casinhas, aqui não tem nada a ver comigo".
Não tem nada a ver com a Polícia Militar.
Aí a Guarda entra pra tirar o povo.
Mas aí a população venceu essa batalha,
vai pra cima da Guarda, a Polícia Militar não entra,
e a Guarda Municipal é obrigada a recuar.
Ela recua.
E aí nós ficamos lá durante um período.
Tem uma nova liminar...
Aí nós pedimos uma audiência com o juiz
pra tentar alguma solução negociada.
Nós negociamos no judiciário
de que nos dessem três meses que a gente sairia.
E a partir daí nós resolvemos então preparar,
e já tinha essa ideia antes, nós fizemos o acordo por isso,
pra já fazer uma ocupação logo após.
Fazendo o acordo de três meses,
quando chegou no carnaval nós resolvemos já sair,
essa era a ideia,
sair no carnaval e ocupar uma terra
que estava perdida há muito tempo.
Há muito tempo tinha esse terreno, que era um terreno baldio,
que servia apenas para desova de cadáveres...
Só servia para isso,
não tinha absolutamente nada nesse terreno.
Eu cheguei dois dias depois da invasão.
Começou no Campão.
Aí espalhou na televisão, assisti o SPTV...
Isso foi em uma quarta-feira, a invasão,
na sexta eu fui para lá, já quase não tinha mais espaço.
Que ano?
Oito anos atrás... 2004.
2004.
A invasão foi em uma quarta-feira de cinzas,
mas eu cheguei na sexta.
Foi o tempo que o pessoal veio do Campão pra cá,
eu morava aqui perto mesmo.
Morava no Jardim Rosário. Sempre morei aqui na região sul.
Vale do Sol, Morumbi...
E eu precisava,
na época também eu estava parada, desempregada.
E fui com a cara, a coragem e a lona.
Lona, filha. Lona mesmo.
O pessoal fala lona, mas aquilo não é lona,
aquele saco plástico preto, que você compra de metro.
E quatro caibros.
Dali começou os barracos nossos todinhos, o meu...
Fiquei três meses morando embaixo desse.
Parede e teto era aquela lona preta
que vende nessas obras.
Aí com o tempo fui fazendo.
Um de madeira, pra depois chegar a telha.
Por que primeiro ocupa e depois pede pra regularizar,
ou pra legalizar o terreno?
Porque se não fizer isso, não tem legalização.
Se não tiver isso, não vai ter terreno.
E nós defendemos que é justo que a população possa lutar,
possa buscar aquilo que suas reivindicações preveem melhor.
O lar é uma coisa muito importante para a família.
Se a pessoa tem uma casa ela resolve vários problemas.
A questão da saúde,
a questão da educação,
da auto-estima, se resolve em ter uma casa,
então é preciso ocupar por isso,
porque se não ocupa, o governo não resolve.
E cresci lá dentro, sim.
Tinha um comércio lá dentro.
Uns três meses depois eu já montei o comércio.
Fui a primeira mulher a botar um bar lá dentro.
Lá eu tirava meu ganha-pão, pra mim, ajudar minha filha...
Essa aqui estava pra chegar...
E agora, temos o quê? Nada!
Foi o primeiro, em oito anos,
o primeiro Natal fora de lá, primeiro Ano Novo.
Triste.
Eu não consigo trabalho...
Foi oito anos lá dentro trabalhando pra mim mesma.
Lá eu tinha de onde tirar minha comida.
Pra gente aquilo ali era o nosso lugar.
A nossa casa, a nossa terra.
Porque afinal de contas,
o que ele se dizia dono, na verdade não é dono de nada.
Se ele fosse mesmo, não tinha ninguém ali,
não tinha entrado ninguém ali.
Se eu tenho um terreno, eu vou manter, eu vou cuidar,
eu vou construir alguma coisa no meu terreno.
Eu não vou deixar o meu terreno livre
pra outras pessoas entrar e fazer o que quiser.
Mas se não é meu, eu não posso brigar.
Mas, tanto que ele não fez nada.
Ele simplesmente falou: "Vai lá e tira".
"Eu quero e pronto".
Você não viu esforço da parte dele.
Assim que a população ocupa aquelas terras,
tem um pedido de liminar
de um senhor aqui de São José dos Campos
chamado Benedito Bento.
O Comendador Bento.
É ele quem faz o primeiro pedido de liminar pra desocupação.
E nós fomos ver nos documentos, na prefeitura,
o dono não era ele, era a Selecta.
Uma empresa chamada Selecta.
Uma empresa que pertence ao Naji Nahas.
Uma falência, uma empresa falida, do famoso Naji Nahas.
Na verdade, formalmente, apenas formalmente,
ainda existe um processo de falência.
Já naquela época era apenas formalmente.
Por que eu digo formalmente?
O processo de falência consiste em um concurso de credores.
Quando uma empresa quebra,
seus credores entram no processo para receber os seus créditos,
os bens da *** falida são levados a leilão,
transformam isso em dinheiro,
e os credores rateiam.
Essa é a situação normal de uma falência.
Se fosse esta situação normal em uma falência,
se isso se reproduzisse no caso da Selecta,
haveria alguma possibilidade
de compreender a lógica do que aconteceu.
Existem credores querendo receber o seu dinheiro,
existem credores trabalhistas, hipoteticamente,
que precisam receber o seu dinheiro também...
Então se poderia entender mais ou menos a lógica da coisa.
Não justificar, porque é injustificável,
de qualquer forma, o que aconteceu.
Mas entender...
Quando nós fomos atrás do processo de falência,
pra ver o que tinha acontecido efetivamente,
nós descobrimos que não há mais credores.
Por que não há mais credores?
Porque o senhor Naji Nahas comprou todos os créditos.
Então, na verdade, ele é o credor dele mesmo,
ou seja, não há mais credores.
Não há nenhuma justificativa de uma pressão de credores,
pra que aquilo ocorresse.
Foi única e exclusivamente um interesse do senhor Naji Nahas.
O que além de ser injustificável,
coloca um ingrediente de absoluta incompreensão no processo.
Porque nesse momento você tem Naji Nahas,
uma pessoa extremamente complicada,
com problemas na justiça, problemas na polícia,
notoriamente um especulador, um escroque,
quebrou a bolsa do Rio de Janeiro anos atrás.
Você tem de um lado o Naji Nahas.
Você tem o Naji Nahas movimentando
o presidente do Tribunal de Justiça,
o governador do Estado de São Paulo.
E seis mil pessoas massacradas.
Isso é um enredo de terror.
Um enredo maluco.
Tá vendo? Grava, grava!
Abaixa e grava!
Grava aí!
Pra você ver o que os caras estão fazendo.
Tá dando tiro.
Bombas, gás de pimenta dos helicópteros,
jogando pra tudo quanto era lado,
não estava respeitando criança, não estava respeitando ninguém.
Assim...
Correndo atrás das famílias...
Até comigo mesma eles gritavam...
Gritou com minha filha,
que se ela não desligasse o celular,
que eles iam entrar com cavalo e tudo
e derrubar antes do trator chegar.
Vim pra cá...
Moro aqui já desde a desocupação.
Tive que comprar armário, porque o meu ficou lá...
Aqui tá uma baguncinha, tá?
Aqui é o quarto.
Eu ganhei o guarda-roupa, porque o meu ficou,
ganhei cômoda, porque o meu ficou lá também,
televisão quebrou, tive que comprar uma usadinha,
E é assim, aqui é o cantinho.
Essa casa é da minha cunhada.
A gente paga aluguel pra ela.
Ela deixou a gente ficar aqui.
Assim, então foi várias coisas.
Com a minha irmã, xingou ela...
Por exemplo...
Já que era desocupação,
eles não queriam que nem um pedaço de fio
que estivesse no chão, era pra pegar.
Porque aquele pedaço de fio já não pertencia aos moradores.
A gente tava lá, mas não pertencia.
Nem um pedaço de fio no chão era pra pegar.
Aquilo não pertencia mais a gente.
Se pegasse era detido.
Por coisas simples eles estavam levando pessoas presas.
As pessoas tinham que entrar a hora que eles queriam,
e tinha que fazer o que queriam, na hora que eles queriam.
Alguns policiais, não todos.
Aqui é o banheiro da casa.
Esse banheiro não é muito adequado.
E aqui...
Olha...
Lá no dia tinha, vamos dizer assim,
polícias e polícias.
Tinha policiais que estavam, no momento ali,
representando a farda deles, o que eles estão para fazer,
e tinha policiais que estavam falando assim...
"Eu estou fazendo isso, porque é minha obrigação".
"Eu tenho que fazer".
"Eu estou sendo mandado para fazer isso".
Porque tinha policiais que tavam com,
vamos dizer assim,
com pena do que tava vendo, do que tava acontecendo.
Tinha policiais que foram com vontade de machucar,
de maltratar as pessoas.
A gente tava vendo todos os tipos de pessoas ali na hora.
Aqui é o corredor.
Tá construindo mais um quarto e um banheiro aqui no fundo.
Aqui é um terreno.
Não chega próximo do que era o meu lá, né?
Você citou que tinha um policial que tava infiltrado,
- conversou com você... - Isso.
Não exatamente ele que conversou comigo.
Segundo ele,
fazia já umas duas semanas, ou mais,
que tinha policiais infiltrados lá dentro do Pinheirinho,
observando o movimento dos moradores,
observando as coisas que aconteciam com os moradores,
pra poder, no dia da invasão,
eles saberem o que poderia ser feito.
Ele falou assim: "Você acha o quê"?
"Você acha que a gente conseguiu descobrir isso por quê"?
"Porque aqui dentro tinha policial no meio do morador",
"e ninguém sabia que tinha".
"Por isso é que a gente sabia que no dia, no domingo",
"não iria ter ninguém",
"porque ninguém ia estar esperando pela desocupação".
Tem bastante morador que era de lá também
que veio morar pra esse lado.
A gente está longe aqui do Pinheirinho quanto tempo?
Do Pinheirinho, de ônibus, duas horas.
Ele era um policial de São Paulo, ele não era daqui...
Ele chamou pra conversar com você como?
Porque ele perguntou pra mim o que eu fazia.
Aí eu falei para ele que eu era segurança,
que eu trabalhava de vigilante.
Ela falou que no início ele achou que eu...
Que eu tenho um porte pra policial e tal...
Por que que eu não poderia seguir pra ser uma policial?
Eu falei que era por causa da idade...
Aí ele falou: "Mas Federal, você pode".
Eu falei: "Eu sei que federal eu posso",
"só que aí tem que prestar concurso"...
Aí ele pegou e começou a contar que, por ele,
nada daquilo ia acontecer, que ele teve dó,
que ele viu coisas que não eram atitudes que ele...
Ele falou assim...
"Se acontecesse isso uma semana atrás",
"como estava previsto, muita morte ia sair aqui",
"porque os meus amigos de farda eu não reconheci".
"Porque eles vieram com vontade mesmo de matar".
"Eles foram treinados".
"Você olhava neles, eu olhava e não acreditava"
"que eram companheiros meu de trabalho".
E que no dia...
"Se tivesse acontecido uma semana antes",
"muita coisa tinha acontecido, pior do que no dia 22".
As palavras dele.
Eu acho que ir pra lá agora...
Toda vez que a gente passa na frente é reviver o passado.
Porque você só vai ver coisa destruída,
só casas quebradas, entulhos,
e recordar do que a gente passou nos últimos...
Não dá pra recordar do que foi,
porque você vai ver só destruição, né?
Fica na lembrança quando tava em pé, tudo.
Só isso.
O restante é só lembrança agora.
Sobrou entulhos.
Nem assistindo todas as reportagens,
nem assistindo tudo, tudo que sai na mídia,
o que a mídia escondeu,
nem mesmo ele sentando, conversando com uma pessoa
que estava ali dentro, não podem fazer a mínima ideia
de tudo que eles causaram na vida de milhares de pessoas.
A constituição tem princípios,
que modernamente o direito tem que considerar
em um momento como esse.
Há dois valores em jogo, em conflito, nessa situação.
O princípio constitucional da dignidade humana,
e o direito de propriedade.
Modernamente,
os dois são importantes em uma estrutura social
como nós vivemos.
A sociedade é fundada na propriedade privada,
mas há momentos em que esses valores
devem ser ponderados,
e, sem dúvida nenhuma,
no caso o princípio da dignidade humana,
ou seja, o bem-estar, não praticar violências,
não deixar seis mil pessoas no olho da rua
de uma hora pra outra,
certamente, naquele momento, deveria prevalecer
sobre o direito de propriedade.
No caso concreto, a coisa é mais escandalosa,
porque era uma propriedade totalmente abandonada.
Há muitos anos. Abandonada em todos os sentidos.
Físico, jurídico, tributário...
E a legislação, e é uma matéria de defesa,
ela declara,
ela estabelece uma presunção absoluta.
Presunção absoluta é aquela que não admite prova contrária.
Tem uma presunção absoluta de abandono
quando você deixa de pagar imposto por cinco anos.
O terreno lá nunca pagou nenhum imposto.
O terreno que era da *** falida do senhor Naji Nahas
teve o seu direito de propriedade completamente respeitado.
O direito de propriedade de bens modestos,
de famílias carentes, foi inteiramente esmagado.
A constituição diz que, se uma área,
passados cinco anos,
o objeto de utilização, digamos para fins de moradia,
e sem contestação,
ela poderá ser objeto de usucapião.
É possível que este não seja o caso.
Mas ali tínhamos o caso de inúmeras famílias,
que não tendo a sua moradia adequada,
resolveram se juntar para tentar obter a sua condição de moradia,
e por cerca de oito anos,
foram ocupando aquela área, muito grande...
Para muitos ali eram realizações,
porque você ter onde você morar no final do dia
é uma realização.
Amiga é que pra eles eu não seja lá essas coisas...
Nem que fosse um barraco,
que fosse uma casa de dois cômodos,
mal coberta, mal feita, mas era nossa.
Você entendeu? Se falasse assim...
"Não, eu não pago aluguel, não".
"O dinheiro que eu poderia estar pagando aluguel",
"Eu posso comprar uma pia, posso comprar um guarda-roupa".
"Posso comprar um armário".
Era uma realização, você entendeu?
Uma realização.
E eles destruiram tudo isso.
Eu não tenho a menor dúvida
de que a forma como foi feito o processo
de reintegração de posse do terreno
violou o direito humano à moradia adequada,
tal como ele é definido nos pactos,
e na legislação internacional
que rege a questão dos direitos humanos,
da qual o Brasil é signatário e ratificou,
e portanto são plenamente aplicáveis.
Caracterizou-se, no meu entender,
um crime contra a humanidade.
O que é um crime contra a humanidade?
Ele tem vários requisitos para se caracterizar.
Primeiro: é uma ação do Estado.
Se nós dois, se nós aqui,
fizermos alguma coisa terrível, como, por exemplo,
soltar uma bomba na Praça Roosevelt,
matar 10 mil pessoas,
isto não é crime contra a humanidade,
porque nós não somos Estado.
É o Estado que é o sujeito ativo de um crime contra a humanidade.
Segundo: o que o Estado faz
para que se caracterize um crime contra a humanidade.
Uma violação sistemática, ou maciça,
de direitos humanos.
Esses dois requisitos básicos estavam presentes.
Existe uma série de procedimentos
que tem que ser respeitados no momento de uma desocupação.
O primeiro e mais importante deles,
é que antes de qualquer desocupação,
tem que ser esgotadas todas as possibilidades
que evitem ou minimizem o número de pessoas despejadas
ou desalojadas.
E junto com isso, nem preciso dizer,
que a violência, o uso da violência,
jamais é permitido,
sobretudo uma violência dirigida contra os mais vulneráveis.
Crianças, idosos, pessoas doentes, cadeirantes...
Nós assistimos várias cenas onde as violações estão marcadas.
Quando você sabe que a polícia vem na tua casa,
vem na tua casa pra te tirar da casa,
pra fazer alguma coisa,
mesmo que você não queira, é uma pressão em cima de você.
Agora você imagina de madrugada, um frio, chovendo,
e você vendo a polícia fechar o caminho.
A polícia acho que foi tendo uma estratégia até que...
Algumas pessoas sabiam que era uma estratégia da polícia,
que eles estavam entrando para ver se encontrava bandido,
se encontravam drogas no Pinheirinho,
mas eu acho que eles entravam pra ver qual era o movimento
que estava acontencendo lá dentro. É uma maneira de falar assim...
"A gente veio ver uma pessoa que tá fugitiva".
Era na realidade pra ver o que estava acontencendo
durante o dia.
Qual era a atitude dos moradores,
porque na última semana,
a gente ficou trancafiado lá dentro.
Pra gente, foi cruel o negócio. Na hora que entraram mesmo...
Pior que eles vinham tirar a gente um dia às 10:30 da manhã,
mas ficaram com medo, sabe?
A turma ficava toda na frente. Mais de 2 mil homens.
2 mil homens entre homens e mulheres.
Nós tava na ká frente.
Só moto, a turma contou, mais de 90 motos,
não sei quantas viaturas,
10:30 da manhã.
Mas ficaram com medo de enfrentar,
porque podiam atirar, mas ia morrer gente.
A turma tava toda armada, de pau, de pedra,
de tanta coisa.
Nesse dia eu fiquei com medo.
Tem que encarar também. Eu sou muito mole.
Não tenho coragem de brigar, nem fazer mal a ninguém,
mas como eu tava do lado da turma de cá,
tinha que enfrentar também.
Passa tanta coisa pela cabeça,
que você não sabe nem o que pensar direito.
Você não sabe se você enfrenta, você fica assim...
Se você vai enfrentar, não sabe o que vai enfrentar.
Correr você não pode,
porque você vai deixar seus amigos na mão.
Só um pouquinho mais do treinamento,
antes da gente continuar.
É doído.
Na lama, porque foi tempo de chuva.
Esse tempo que nós estamos aqui, que hoje deu uma folga.
Nós treinava, às vezes, às 4h da tarde.
até umas 5:30, 6h, no campão que tinha lá no meio.
Como sempre tem alguém de olho e passa para o lado de lá,
a gente começou a treinar de madrugada.
E eu tava lá.
Tava lá com meu escudo.
E saia do barracão, se reunia no barracão todo mundo,
de lá saia correndo por dentro da lama até chegar lá no campão.
Lá a gente treinava como segurar a barreira da frente,
como segurar a barreira da frente...
Essa era minha luva...
Segurava a barreira da frente nós com o escudo,
o primeiro pelotão e o segundo pelotão.
Era mais para...
Não era assim que a gente ia enfrentar a polícia.
As bombas que eles iam jogar?
De trás vinha coisa mais forte, que não sei se eu posso falar.
Nós era só pra segurar as bombas.
- Porque a gente tinha caneleira. - Você era da linha de frente?
Da linha de frente.
Os meninos falavam: "Você é doida".
"Doida é se eu não participar disso aqui".
Meu marido falou que eu ia morrer.
"Eu não vou morrer".
Se eu morresse pelo meu povo eu estava feliz.
Se tiver de fazer de novo, eu faço de novo.
Eu nasci na época errada.
Tinha que ter nascido na época de Che Guevera,
na época da revolução...
Gosto desses filmes, gosto dessas coisas.
Tinha que ser.
Tem muita mulher corajosa, mas já teve muito mais.
O meu escudo era diferente do de todo mundo.
Fui eu e minha sobrinha que fizemos.
A minha menina fala: "Isso não segura nada".
"Isso segurava sim".
O meu é fibra, um pouquinho de alumínio...
O pessoal pensava que ele era de madeirite.
Eu digo: "O quê, filha? Aqui tem fibra dentro.
Aqui era minha luva...
Usava o capacete.
O meu lenço tá guardado lá dentro.
Vermelho. Ninguém sabia.
Não usava brinco, cabelo solto também não.
Pouca gente sabia que eu era mulher.
Só o pessoal mesmo...
Deixa eu ver atrás do escudo?
Você fez com a sua...
Eu e minha sobrinha que fizemos.
Furamos com chave de fenda...
Minha menina falava: "Isso não segurava nada".
Até uma caneta não segura uma bala?
Às vezes no bolso... Eu digo: "Segurava".
Aqui era para segurar só as bombas.
Porque aquele que não tem coragem de defender seu lar,
não merece nem o lar que tem.
Achava que o povo tem que fazer...
Por que só o povo perde?
Por que que só o outro lado ganha?
Por que o povo sempre tem que sair calado,
sem nem reclamar?
Achamos que isso tá errado.
Tanto movimento estudantil, movimento popular, sindical...
É preciso ter resistência. E resistir...
E se preparou uma certa resistência com a população dali,
com os meios que tem.
Porque não têm muitos meios.
Porque do outro lado tá todo mundo armado.
Então a ideia era fazer uma resistência,
inclusive para chamar atenção.
Sabíamos que vencer a Polícia Militar
seria muito difícil.
Mas nós queríamos chamar atenção.
Esses eram meus óculos, essa era minha luva...
São duas.
Era um pé de piscina com dois chifrinhos que eu batia.
Batia que fazia muita zoada, que os meninos assustavam.
"Onde você arrumou esse"?
Preparada pra lutar pelo meu povo.
Era isso mesmo que a gente tinha.
Nossas armas eram essas.
Manual, que a gente mesmo fez.
A gente tinha fé que a gente ia ficar.
Uma cozinha, um quarto,
que dorme cinco pessoas aqui dentro.
Eu, minha filha, minhas três netas.
Todo mundo aqui. Três aqui e dois no colchão.
O que eu trouxe do Pinheirinho? Só os filhos.
E a bike! Meu quadro do Corinthians!
Rapaz, isso aqui é Timão! Salvei de lá.
Foi feito lá dentro, veio de lá.
Onde eu for, está junto.
Mas tenho fé de a gente voltar. Não perdi a esperança.
Só que eu acho a multa muito fraquinha.
Conversa com o Toninho, ele desconversa...
Fala que ele já era. Eu não acredito que ele já era.
A gente sabia de política por detrás também.
Mas teve isso na minha terra, lá no Piauí, alguns anos atrás.
Quando um prefeito do PT ganhou
ele deu para o pessoal.
13 anos depois.
Eu tenho orquídea...
Essa orquídea no Pinheirinho era linda.
Tem uma foto com ela muito bonita.
Só que quando tirei de lá, deixei na casa de uma amiga.
Ela deixava perto do tanque.
Então acho que jogaram sabão. Agora eu já lavei ela...
Já está nascendo de novo, tá ficando linda de novo.
Como sempre.
Isso ficava no fundo da sua casa?
Não, essa aqui era amarrada em uma estaca no meu bar.
Ela era linda.
Você não chegou a ver em umas fotos ali?
Muita planta que eu tinha lá. Muita planta...
Tinha uma parte do bar,
do lado de lá, que era só planta.
Gosto muito de planta.
É da roça, não é?
Vim do norte, vim do interior pra cidade grande.
O pessoal diz que eu não sou daqui.
Como não? Cheguei aqui nos anos 80.
Com 15 anos...
Casei aqui, tenho filho aqui,
tenho neto aqui, como é que não sou daqui?
Se eu não sou daqui, sou adotada.
Se eles não me adotaram, eu adotei eles.
E o resto? Nem sofro.
Não é, Gabi?
Essa aqui é uma "pinheirinha" de mão cheia.
A Polícia Militar se prepara pra fazer a desocupação.
A Polícia Militar se preparou pra fazer a desocupação,
e na madrugada do dia 17 de janeiro
nós ganhamos a liminar.
A juíza...
Nós fizemos um pedido, nós tínhamos entrado,
o juiz não decidiu, e nós entramos com um pedido
pra que fosse decidido imediatamente,
porque está naquela iminência do acontecimento.
Uma juíza de plantão vai nos dar a liminar
dizendo que a Polícia Militar tinha...
A Polícia Militar, a Guarda Municipal,
e a Polícia Civil do Estado de São Paulo,
tinham que se abster de fazer qualquer
desocupação no Pinheirinho.
Essa foi a liminar da Justiça Federal.
A polícia já estava a caminho.
O povo estava lá. Foi uma madrugada muito tensa.
Foi uma noite tensa, uma madrugada tensa.
Quando chega a notícia às 4:20 da manhã,
chega a notícia que a liminar tinha caído.
Eu acompanhei todo o processo antes,
durante e depois da ocupação.
Nós tentamos em vários momentos negociar
com a juíza Márcia Loureiro,
a juíza lá da região de São José dos Campos.
Nós tentamos vários contatos com a prefeitura,
mas não fomos atendidos pelo prefeito,
o prefeito Cury do PSDB,
e fizemos uma negociação aqui no Tribunal de Justiça,
em São Paulo, com o presidente do TJ.
Ivan Sartori, desembargador,
e ali nós conseguimos, aparentemente,
uma protelação da desapropriação por alguns momentos,
porque eles nos orientou a procurar o juiz
que estava com o processo daquela *** de falência.
Entramos em contato com ele...
No mesmo dia eu estava com uma comissão...
Eu que tinha pedido a reunião com Ivan Sartori.
Eu convidei o deputado Ivan Valente,
o deputador Adriano Diogo, o senador Suplicy,
e nós fomos no mesmo dia conversar com o juiz,
fizemos um acordo,
participaram representantes da *** falida,
e houve um acordo de uma suspensão por um tempo,
para pudesse ocorrer um apronfudamento das negociações
inclusive com a intervenção até do governo federal.
O governo federal tinha interesse também naquela causa.
Nós ganhamos ali algum tempo.
Fomos surpreendidos, dois, três dias depois,
com a desocupação que veio...
Houve um rompimento desse acordo,
com o juiz e com o próprio Sartori,
que tinha nos orientado a buscar essa saída.
Domingo, dia 22 de janeiro,
por volta das 6:30 da manhã,
eu fui acordado pelo vereador Tonhão Dutra
de São José dos Campos, do PT,
que me disse...
"Senador, começou o processo de reintegração de posse".
"Há um número enorme de viaturas policiais",
"de policiais com helicópteros, com cachorros"...
"A Guarda Metropolitana tem veículos blindados",
"e viaturas da ROTA"... Assim por diante...
"Eles estão simplesmente expulsando as pessoas,"
"e dando um prazo de poucos minutos".
Eis que ao longo daquele dia...
Daí então eu telefonei pro Palácio dos Bandeirantes,
como não conseguia resposta alguma,
me dirigi ao Palácio dos Bandeirantes.
Por volta das 7 e pouco me encontrei no portão,
avisei que eu estava lá,
e me conduziram até uma sala onde às 8:30 da manhã
o governador Geraldo Alckmin... Era domingo de manhã.
Não é usual eu ir lá em um domingo de manhã,
a esse horário, tirá-lo da cama,
mas me ofereceu até um café, e conversamos.
Eu disse que estava havendo isso.
Ele falou...
"Houve uma revogação da decisão de dar o prazo de 15 dias".
"Não pude compreender até hoje por que foi feito isto".
O processo transcorreu com várias irregularidades,
e transcorreu de forma estranha.
Três dias antes da reintegração de posse,
houve uma reunião com o juiz da falência,
onde tramitava o processo de falência da Selecta,
em que a reintegração de posse foi suspensa por 15 dias.
Houve um telefonema, isto está documentado no processo.
Houve um telefonema do juiz da falência
à juíza de São José dos Campos,
dizendo que a reintegração estava suspensa por 15 dias.
Essa reunião no juízo da falência
foi feita com representante da *** falida,
síndico da *** falida,
parlamentares como Suplicy, Gianazzi...
Surpreendentemente, a partir da sexta-feira,
já se começou, 12 horas após o acordo,
já se começou a preparar a operação.
O assessor do presidente do Tribunal de Justiça,
Capez,
reconheceu que ligou para o juiz da falência após o acordo
e que disse mais ou menos o seguinte...
"O que esses 15 dias vão resolver"?
"Se não resolveu até agora, não adianta 15 dias".
E o pressionou para que o acordo fosse invalidado.
O resto da história nós sabemos.
No domingo, 5:30 da manhã, houve um massacre.
Como o processo que ressuscitou a ordem de reintegração de posse
foi muito cheio de pontos nebulosos,
isso levanta uma suspeita muito forte de que isso existiu.
Que havia algum interesse por trás,
que o governador se mobilizou pessoalmente
pra que o judiciário também se mobilizasse pessoalmente
e fizesse acontecer o massacre.
Por exemplo...
A reintegração de posse, o despacho,
foi levantado por uma juíza de São José dos Campos
sem ninguém pedir.
Sem a própria parte que teria a reintegração de posse solicitar
de uma hora para outra.
O próprio assessor pessoal do procurador do Estado
foi pessoalmente lá no dia do despejo
e ajudou a manter a imprensa longe...
Há relatos, eu não estava lá. Ele se envolveu pessoalmente...
Foi muito estranho,
porque a própria *** falida da empresa Selecta
não estava pedindo tudo isso,
e houve uma mobilização muito forte
do Estado e do Judiciário.
Isso leva a crer que há um interesse forte por trás
e uma articulação entre os dois por trás.
A operação foi preparada na sexta-feira
no gabinete do governador Alckmin.
Sexta-feira foi o dia seguinte ao acordo do processo de falência.
Se fazia o acordo de um lado,
e o gabinete do governador preparar a operação do outro lado.
Uma operação com 4 mil policiais militares
não se faz sem um senador ou governador.
Eu fui procurador-geral do Estado,
eu sei como funcionam essas coisas.
Para o pessoal pedir mesmo, pelo amor de Deus,
para não acontecer isso com uma criança.
Tem idoso aqui, porra!
Ia pedir ajuda para quem?
Não tinha para quem pedir ajuda.
Se você dissesse na rua que era do Pinheirinho,
a polícia te batia, entendeu?
Aí você fica naquela: "Vou pedir ajudar para quem"?
Não tem para quem pedir ajuda.
Como é que você ia chegar no prefeito e no governador?
Como é que se ia chegar no vereador,
que eles podiam ter votado em um projeto de moradia ali,
e pedir ajuda?
Não tinha como pedir ajuda.
Não só eu, mas todo mundo que estava ali
se sentiu injustiçado porque não tinha pra onde correr.
Passou a ser dependente deles.
Viver daquilo que eles querem, daquilo que eles queriam.
"Eu vou te dar isso e você vai comer isso".
"Não quer comer, morre de fome".
Acho que foi um golpe social.
Eu falo que foi o Canudos do século XXI.
Uma espécie de Canudos do século XXI,
porque foi um golpe contra a cidadania,
contra os direitos humanos,
contra a dignidade da pessoa humana.
Eu vi cenas chocantes,
por exemplo, de animais, de gatos e cachorros,
que estavam em frente das casas demolidas
esperando os donos chegarem, mas os donos não iam chegar mais,
porque foi uma dispersão ali, uma diáspora naquela região,
houve ali uma desarticulação das pessoas.
Algumas voltaram para suas cidades,
outras ficaram em casas de parentes,
outras ficaram nos alojamentos,
que foi a coisa mais terrível que eu vi.
Eram alojamentos sub-humanos, sem infraestrutura,
que pareciam alojamentos nazistas, nazi-facistas.
Um negócio horrível que eu vi
nos vários alojamentos que a prefeitura organizou
para recepcionar os moderadores desapropriados.
Eu nem considero aquilo alojamento.
Não tinha infraestrutura alguma. As pessoas passando fome,
necessidades,
sem nenhum tipo de acompanhamento social...
Enfim...
Vou contar um pouco do que eu vi lá,
pra chegar nisso.
Aquela praça do Campo dos Animais foi meio que o QG da polícia.
Então...
Tinha uma barreira assim,
dos policiais da tropa de choque armados,
com aquela arma de bala de borracha...
Muita polícia, muita, muita, muita...
Aqui estava a praça, aqui a barreira dos policiais,
do lado daqui para lá, ficavam os moradores.
A concentração da prefeitura,
do atendimento que seria dos moradores,
ficou ali no campo, no campo esportivo.
- Na praça grande... - Na frente do Pinheirinho.
É, na frente do Pinheirinho.
Acho que a uns dois quarterões paralelos
a essa praça onde ficou o confronto mesmo
entre os policiais e os moradores.
Os moradores eram direcionados pra aquele centro.
Foram armadas várias tendas.
Cada uma com uma placa...
Alojamento, Credenciamento...
Só que você chegava lá
e percebia que estava muito desorganizado.
Não tinha gente suficiente pra atender os moradores.
Os moradores muito perdidos, desencontrados e assustados...
Porque, o que acontecia?
Ali era o local pra atendimento, pra ter aquele apoio,
aos familiares que estavam sendo despejados naquele momento.
Só que em meio a tudo isso, estava tendo uma guerra.
Porque o que teve ali foi uma guerra.
Eu vi gente sendo espancada pela Guarda Civil lá dentro,
onde era para ser o atendimento, o socorro,
tinham pessoas sendo espancadas, bomba caindo,
spray de pimenta,
tudo isso foi usado o tempo todo no domingo...
Isso deixava a coisa mais inviável ainda,
porque tinha pouca gente pra atender os moradores,
os moradores estavam assustados,
e ainda tinha um confronto que se instaurou lá dentro.
Olá lá pro tio. Essa aqui é a Gabriele...
Pinheirinho...
É minha neta, a mais velha das mulheres.
Joice, olha lá para o tio.
Ele vai tirar sua foto.
Quanto tempo depois você encontrou com elas?
Eu só sabia de notícia,
porque eu fui pra igreja com o pessoal,
no outro dia estava aquele corre, pra saber onde tirar as coisas...
Eu fiquei com a mesma roupa,
de short e camiseta dois, três dias pra lá e pra cá...
Eu não conseguia comer, eu fiquei desesperada.
Eu encontrei elas umas duas semanas depois.
Duas semanas depois?
Porque eu já sabia que elas estavam no poli...
Primeiro eu soube que estavam na casa de uns amigos deles.
Depois soube que estavam em um poliesportivo,
mas não sabia qual.
Fui no daqui de baixo, não achei.
Aí achei eles no Morumbi.
Aí deu dó, minha amiga. Quando chegou lá eu chorei.
Um calor!
Essas meninas dormindo naqueles colchonetes finos...
Você chegaram a ir na quadra, pra vocês verem?
Pra mim foi muito mais doído,
porque elas foram pra logo lá.
Sete anos atrás,
lá onde meu menino foi assassinado.
Agora você pensa em outra dor, né?
Minhas netas no mesmo lugar que ele foi assassinado,
servindo de abrigo.
Qualquer reintegração, seja uma casa,
sejam 10 casas, 20 casas...
Você sempre exige do autor da ação
que providencie meios para a desocupação.
O que é isso?
Ele tem que providenciar transporte,
ele tem que providenciar alojamento pras pessoas
e pros móveis que vão tirar, de pessoas que não tem onde ir.
A Polícia Militar relacionou
os bens que ela precisaria, como é de praxe.
A Polícia Militar tem normas operacionais e tem que seguir.
Essa normas operacionais pediam 140 caminhões,
não sei quantos trabalhadores, 200 trabalhadores...
Isso não foi fornecido.
No início da reintegração durante todo o domingo,
até à segunda-feira, foram quatro caminhões.
Quatro caminhões para providenciar a mudança de 1700 residências
é muito pouco.
O que é que acontece, fato também pouco comum?
Em situações como essa, ajustiça para a reintegração,
e determina que o autor providencie os meios.
Eu já participei de diversas reintegrações.
Toda vez que não são fornecidos os meios,
o oficial de justiça consulta o juiz
responsável pela reintragração e pede...
"Não tem caminhão".
"Não tem gente pra fazer o transporte".
"Não tem gente pra embalar".
"Para a reintegração".
"Enquanto não chegar a gente não continua".
O problema é que nessa desocupação houve um fato também pouco comum.
A justiça determinou que o município
fornecesse os meios.
Então foi feito com dinheiro público
caminhões contratados pela própria prefeitura para a desocupação.
A impressão que eu tive é que foi tudo feito ali.
Isso é uma casa.
Cada colchão é uma casa.
Todas as famílias sem privacidade nenhuma.
Todo mundo aberto, a luz fica acesa 24 horas por dia.
Era impossível manter crianças ali.
A forma de alimentação, de higiene, era precária.
Não tinha como você manter um bebê ali, por exemplo.
O banheiro era pra muitas pessoas.
A falta de hiegene era muito grande,
porque era um banheiro pra tanta gente.
- Isso quando não acabava a água. - Centenas...
Centenas de pessoas.
Tinha famílias inteiras ali com bebê,
o pai, a mãe, o filho...
Então era muito complicado.
É um sanitário.
OK.
Tem gente morando aqui no banheiro?
Tem.
A minha mãe, o meu pai e minhas irmãs.
Morando no sanitário do banheiro do ginásio?
A parte de alimentação...
Tinha que desperdiçar muita comida.
A gente ficou doente por causa da comida.
Comida muito ruim.
Vinha comida estragada...
A criançada...
O jeito que dava comida pras crianças era triste,
porque você não vai colocar um pratinho descartável
na mão de uma criança, quente e cheio de comida.
Você vai derramar o angu...
Quem tinha condição de já alugar uma casa, alugou.
Quem tinha como ir para a casa de um parente e ficar lá
durante um bom tempo, foi, né?
Aqui tem que ser tudo enfiado assim...
Tá vendo? Assim...
Isso aqui é o carrinho da gente usar.
A gente usava lá, tudo cheio de pão...
Aqui tá encostado, jogado...
Aqui atrás...
É bom que vocês mostrem
pro povo ver como é que se encontra a gente.
A situação que a gente se encontra.
Aqui é tudo coisa...
Caso a gente...
É tudo assim, porque não tem lugar.
Tinha que ter um quarto, uma sala, uma cozinha...
Nada disso tem, né?
A cozinha é aquele pedacinho que vocês viram naquela hora.
Joguei um bocado fora. Peguei e joguei fora...
Joguei uma vitrine daquela fora.
Joguei um balcão de dois metros, que não cabia aqui dentro.
Pra ter espaço, né?
Joguei umas coisas fora.
Dei para alguém, porque aqui não cabia.
Aí joguei fora. Dei para alguém, joguei na rua...
Estica um colchãozinho aqui, outro põe um colchãozinho ali...
Assim vai dormindo...
Mas é desconfortável. Não tem...
Tinha essa parte aí, doei para alguém.
Umas três ou quatro prateleiras brancas assim.
Tudo doei...
No último dia, no dia da desocupação,
meu filho perguntou: "Mãe, e agora"?
"A gente vai comprar pão onde? A polícia está toda aí".
Eu falei: "Na padaria pode ser que esteja fechada".
Minha irmã chegou e disse...
"Não, tá fechado não, que eu já fui lá comprar pão".
"O padeiro tá fazendo o pão normal".
Aqui o trabalhador tá acostumado com a padaria.
Eu chego aqui 6 horas da manhã, né?
Chego e faço um pouco de ***.
Pão de cachorro-quente pra vender nos trailers aqui fora.
Depois de fazer o pão, pão de lanche,
faço um pouco de pão doce...
Quando são 11 horas eu deito mais um pouco.
Durmo até 2 horas. 2 horas levanto pra assar o pão.
Assar o pão às 2 horas termina às 4 da tarde.
Aí vou empacotar o pão...
Mais ou menos até 8 horas da noite.
Quando for 8 horas da noite, eu deito até às 11 horas.
11 horas vou trabalhar de novo.
Aí trabalho das 11h às 5h.
Aí saio de lá às 5 horas, chego aqui às 6 horas.
Aí vou dormir de 10h em diante.
Comigo é sempre assim.
Trabalho à noite, trabalho de dia, e vou levando assim.
Até quando Deus quiser.
Esse cilindro aqui...
E ainda vai crescer mais...
Aqui é bem maior, né?
Tá vendo aqui? Um outro desse, do tamanho daquele.
Mas ficou uma delícia, cara.
Morei seis anos, quase sete anos, não foi?
Lá tinha onde ver os amigos.
Conversava, batia papo,
eu ia para a reunião, tinha mil pessoas,
todo final de semana, sábado e quarta-feira.
Reunião do Pinheirinho mesmo, da nossa turma lá.
Ali era uma festa. Conversava, soltava bomba,
comia pipoca...
Levava os meninos pra dançar lá no galpão de reunião.
Ficava dançando, me requebrando, pra turma agitar mesmo, né?
Aí lotava de gente dançando.
Isabel dançava, Júnior dançava...
Dançava funk esse daqui...
Pinheirinho pra mim?
Foi um lugar muito bom de morar.
Quando eu sai de lá, o mundo acabou.
Sabe por quê?
Porque eu perdi meu emprego, perdi minha padaria,
que eu consegui com muita dificuldade...
Trabalhei bastante nesses 6 anos.
Foi mesmo que o mundo acabar para mim.
Tanto que eu passei um monte de dias em que eu nem comia.
Eu fiquei muito deprimido não foi nem por causa da padaria,
porque as condições eram melhores.
Fiquei muito chateado,
porque a gente saiu que nem um cachorro,
com a mala nas costas...
A polícia chutando a gente, né?
Foi difícil.
É tanto que hoje
eu não gosto nem de olhar pro carro da polícia, não.
Bem melhor assim.
Pão de creme, pão de coco também faço...
Uns 30 de cada...
Pão amanteigado também.
Pão de sal vende bem pouquinho...
Na escola vende uns 60 pãezinhos à tarde.
É mais ou menos a mesma quantidade,
que você fazia no tempo do Pinheirinho?
- Ou hoje faz menos? - Não, bem menos.
Lá no Pinheirinho eu fazia 2 mil pão de sal por dia.
Dois mil.
Fazia quatro armários desse grande aí.
Lá fazia fila, lá na esquina. Muita gente...
Sinto muita falta do pessoal. Meus amigos lá, né?
Estava com a Isabela, fui lá na frente do Pinheirinho...
Ela começou a chorar... Eu não chorei, mas...
Não me senti muito bem, não.
Porque senti muita falta do povo lá dentro.
Lá o pessoal é muito bacana. Lá não tinha confusão, não.
Lá era tudo de amizade.
Uns ajudavam os outros.
Às vezes alguém não tinha como comprar cesta básica,
a gente fazia uma vaquinha.
No galpão de reunião mesmo, todo sábado...
"'Fulano' tá precisando de uma cesta básica".
Um dava um pacote de arroz, outro dava dois quilos de feijão,
uma lata de óleo, fazia a cesta básica pra "Fulano".
"Amanhã pode pegar a cesta básica na casa de 'Fulano'".
Ia pegar a cesta básica, recebia...
Outro dia, outro tava precisando da cesta básica, também dava...
Outra vez tirando remédio...
A turma colaborava, né?
Por isso que eu digo que eu gostava muito de lá.
Sinto falta de lá. Lá era muito bom.
Porque lá eu tinha dinheiro pra resolver minhas coisas,
aqui eu não tenho.
Lá o pessoal me dava mais valor,
aqui fora ninguém olha pra mim...
Várias pessoas falaram pra mim...
"Lá no trabalho, onde eu trabalho"...
A mulher falou: "O cara lá era do Pinheirinho".
Estava trabalhando de padeiro lá e saia pra entregar pão pro cara.
"Aquele pessoal lá não valia nada, não".
Eu fiquei quieto, mas não gostei da frase
Porque ninguém é melhor do que ninguém nessa vida.
Pode ser até melhor que os outros em condição financeira,
ser um cara famoso, que tenha bastante dinheiro,
mas dinheiro não é tudo na vida.
Acho que respeito vale muito mais.
Porque eu sou pobre, sou de família muito pobre,
nem estudo eu tinha praticamente,
mas eu respeito todo mundo.
Respeito todo mundo e não humilho ninguém.
Eu tenho essa opinião comigo. Eu não humilho ninguém.
Se eu não pude ajudar, atrapalhar eu não atrapalho.
A adaptação com as pessoas de forma geral...
Hoje em dia não sei, porque a gente não comenta tanto.
Mas antes, dentro do ônibus, às vezes nós dois conversando,
falando de Pinheirinho,
as pessoas te olham assim, sabe?
Te olhavam assim como se você fosse um ser de outro mundo.
Olhava você estranhamente.
Se a gente tivesse comentando,
falando alguma coisa do Pinheirinho, tal...
Você entrar novamente na sociedade, né?
Porque...
Nós fomos como um lixo que eles varreram.
Então a gente ficou assim...
"Como que a gente vai voltar"?
"Como que vai ser agora"?
É...
"Como é que vai começar"?
"Por onde vai começar"?
Ninguém sabia que eu era moradora do Pinheirinho.
Quando aconteceu a desocupação,
foi quando ficaram sabendo, porque eu não podia sair
de lá do terreno, não podia sair da casa,
porque eles iam fechar, né?
Foi o dia que eles descobriram que eu morava no Pinheirinho.
Logo depois, no dia seguinte,
todo mundo perguntando o que tinha acontecido,
por que eu tinha faltado...
Eu tive que falar que era moradora mesmo,
tive que confirmar.
Logo depois começou a surgir comentários,
que o pessoal ficava cochichando
pelo fato de eu ser moradora de lá...
Foi quando aconteceu de eu ser mandada em abril.
E por que ninguém sabia que você era do Pinheirinho?
Qual que era o problema?
Se soubessem, eu não trabalhava.
Simplesmente.
Todos os empregos que eu consegui,
quando descobriam que era moradora,
logo era mandada embora.
Ou então na entrevista,
quando falava que morava no Pinheirinho,
a entrevista já era cancelada na mesma hora.
Já não podia mais fazer a entrevista,
porque era moradora do Pinheirinho.
Só porque era moradora do Pinheirinho?
- É, não podia... - Já bastava.
Só falar que morava no Pinheirinho...
Já não conseguia.
Não podia nem falar.
Não podia nem comentar que era moradora.
Eu usava o endereço da vizinha do bairro do lado.
Se o cara tá morando no Pinherinho...
Se eu fosse fazer um orçamento...
Se eu falasse que era do Pinheirinho,
não tinha problema, eu pegava o serviço.
Entendeu? Normal.
Trabalhei pra muita gente
que sabia que eu era do Pinheirinho.
Mas depois que aconteceu isso houve um preconceito nisso aí.
Porque desde então essa pessoa sabia que existia o Pinheirinho,
mas ela não sabia o que era lá dentro do Pinheirinho.
Como é a situação lá dentro.
Entendeu?
Então porque aconteceu isso,
aí a mídia fez aquela propaganda do Pinheirinho.
"Pinheirinho 'isso', Pinheirinho 'aquilo'"...
Mas se não tivesse acontecido isso,
podia falar que era do Pinherinho que não tinha problema.
Porque ninguém imaginava como é que era o Pinheirinho.
Uma invasão, uma invasão normal...
Você não ia chegar lá, procurar um serviço,
e ia falar pra dona do serviço...
"Moro no Pinheirinho, lá só tem ladrão"...
Você não ia falar uma coisa dessa...
Eu acho que o caso do Pinheirinho
sintetizou um problema que é conjuntural no Brasil,
que é o oligopólio das empresas de comunicação.
Se você pensar,
são poucas empresas que detêm os meios de comunicação,
elas são muito poderosas e estão ligadas a outros poderes.
Nesse caso do Pinheirinho, por exemplo...
Boa parte da mídia continuou uma campanha que sempre tem
de criminalizar os movimentos sociais,
e tentar gerar um certo respaldo de opinião pública
pra ações desse tipo, de despejo forçado...
Ações criminosas do Estado
em despejar populações que tem direito à moradia.
Têm direito constitucional à moradia.
É muito importante a gente entender
que não existe jornalismo imparcial.
Toda imprensa tem lado.
E não há problema em que haja lado.
Isso não é contra a lei.
Inclusive eu acho bom que as pessoas tenham lado,
que elas assumam seus lados.
Só o que me incomoda é que no Brasil
todos os detentores dos maiores meios de comunicação
tem um lado só.
Nenhum dos grandes jornais, rádios, revistas,
ou televisões,
vão ter uma posição mais simpática àquela população do Pinheirinho.
Ou a tantas outras questões.
Movimento dos Sem-Terra, taxação de grandes fortunas,
democratização dos meios de comunicação...
Reforma política...
A gente pode fazer uma lista que vai daqui até a esquina.
Acho que eles cobriam o que pra eles era de interesse.
Porque o que tava acontecendo com os moradores
pouco eles passaram.
Mas...
"Colocaram fogo, atearam fogo no carro da Vanguarda".
"Foi os moradores".
"Quebraram a COMAS. Foi os moradores".
"Quebraram a FUNDHAS. Foi os moradores".
Na realidade isso foi uma...
Como que eu posso dizer pra você isso?
Não eram os moradores que estava fazendo,
eram os próprios moradores dos bairros vizinhos
que tavam tendo uma repressão e não queriam aceitar...
Alguns não queriam aceitar que retirasse o Pinheirinho dali,
porque ia ficar muita gente na rua,
ia ficar gente para tudo quanto era lado...
A gente era mal visto por ser morador do Pinheirinho...
Eles começaram a quebrar tudo pra chamar atenção da prefeitura,
Pra chamar atenção do pessoal do Estado,
alguma coisa desse tipo...
A mídia criminaliza o camarada do movimento de moradia do Centro,
que invade um prédio que tá vazio,
que é de um camarada que deve em excesso há 20 anos,
que tá devendo o triplo do valor do prédio,
que nunca fez nada...
"Mas as famílias que entraram lá"...
Tudo com criança etc...
Eles estão indo contra o direito de propriedade?
Eles estão comentendo algo contra a lei?
Formalmente, sim. Mas poxa, gente!
Estamos em 2013, né?
O mundo tá nessa situação toda...
Se a gente for tratar as coisas dessa forma,
vamos todos desistir, deitar e esperar morrer.
Porque não é possível ter esse tipo de interpretação.
E jogar a culpa em uma questão legalista...
Questão legalista por questão legalista,
até hoje as mulheres não estariam votando,
*** ia ser cidadão de segunda classe, enfim...
Se vai ficar todo mundo atento ao preto no branco,
no último grau,
a sociedade não vai pra frente.
Acho que tem um pouco de um processo contínuo
de criminalização de movimento social,
ou de reforçar interesses imobiliários
que às vezes a população local do município,
de repente os próprios vizinhos preferem que naquela área
tenha um ***ínio de luxo do que um assentamento
dos moradores, entendeu?
Eu acho que talvez nessa...
Ali no entorno, pela atuação da mídia regional,
e tudo mais, que eu acho que foi bem enviesada,
isso pese muito e pegue muito mal.
A sociedade cobrava uma melhora pra aquele cenário.
Agora ela desaprovou o ato de desocupação que foi violento.
Principalmente depois de ela acompanhar
como é que foi toda essa remoção de famílias.
Fala-se muito de São José como sociedade conservadora.
Havia um desejo, eu acho que da sociedade,
de que aquelas famílias...
Ou você regulariza aquela situação,
implanta equipamentos públicos, resolve aquele cenário,
ou você remove aquelas pessoas,
que é um terreno particular,
e encaminha essas pessoas pra casas, pra locais dignos.
Havia o interesse de buscar uma solução para o problema.
Só que eu acho que a própria sociedade
ficou chocada com o modelo como isso tudo foi feito.
Acho que as pessoas não veem que a desigualdade social,
que aumenta com esse tipo de ação...
Os problemas estruturais do Brasil
que aumentam com esse tipo de ação,
aumentam e se perpetuam, que geram insegurança.
Que obriga, de repente, a elas estarem
em ***ínios fechados, com câmeras, com tudo isso...
Elas acabam achando que a insegurança tá no outro,
no diferente.
E justamente tem um preconceito com quem é vítima desse processo.
Essa desocupação resolveu os problemas sociais
do Pinheirinho?
Eu acho que não.
Há quem diga que sim, mas eu acho que não,
porque o problema da droga continua ali,
continua mais evidente,
e até agora nenhuma atitude foi feita
no sentido de remover aquelas famílias...
A gente sabe, questionou o governo,
sabe de atuações, de idas de assistentes sociais
com objetivo de remover aquelas pessoas dali...
Mas não houveram avanços.
Era considerado uma favela.
Era considerado uma...
Pra outros estados, pra outros países,
era considerada a maior ocupação do mundo.
Pra São Paulo, pra mídia, a maior favela do mundo.
Tem uma diferença grande, né?
A cobertura da mídia no caso Pinheirinho não supreende.
Ela segue a mesma lógica deles em outros casos semelhantes,
ou em outros casos que haja um confronto
entre a ordem estabelecida, ou o direito de propriedade,
ou a manutenção do poder de determinadas pessoas,
poder econômico e tudo mais...
Do outro lado, questões verdadeiramente sociais,
humanas etc...
A cobertura de mídia, invariavelmente da mídia,
digo, claro, da mídia convencional,
fica do lado de quem tá por cima da carne seca desde 1500.
Eu dividiria a atuação da mídia
segundo dois interesses econômicos.
O primeiro, interesses ligados a outros interesses.
De defesa do mercado imobiliário,
de defesa dessa política de despejo
que a gente tem visto no Brasil, de tentar naturalizar isso,
e mostrar esses moradores como invasores
que precisavam ser retirados de lá,
que quem gerou o problema foi eles...
Não é isso. Foi justamente o contrário.
Eles foram vítimas, as maiores vítimas.
Por outro lado a busca por audiência, né?
Das próprias empresas de comunicação,
que acabam fazendo aquela cobertura muito sensacionalista,
de botar o microfone na cara da pessoa
e perguntar como ela tá se sentindo.
Ela acabou de ter a casa dizimada, desrespeitada,
a vida dela, a dignidade dela, o futuro dela que foi afetado...
Óbvio que ela não vai estar se sentindo bem.
Nós também tivemos uma princesa no Pinheirinho.
Essa menina que o fotógrafo descobriu na Dutra numa passeata.
Depois fez ela uma rainha por uma semana.
Ela ficou bonita.
Deu quatro horas...
Ela tava dando de mamar quando o repórter achou ela.
Deram um grau nela. Ela ficou bonitona.
O que eu li?
Eu li muita gente criticando,
chamando os moradores de aproveitadores,
de invasores, de criminosos,
isso eu li mesmo, realmente.
Muitas pessoas falando.
O que eu acho que não se deve levar a sério,
porque pra quem viu aquilo ali de perto,
viu que eram famílias, sabe?
O que aconteceu é que a liga...
Por movimentos sindicais e partidários terem ajudado
os moradores a se organizarem...
acabou passando pra quem tá de fora
essa imagem de que é um bando de sindicalista aproveitador
se aproveitando dos moradores pra fazer política
e como a prefeitura, na época, era do PSDB,
ficou aquela coisa...
"Esquerda vs. direita".
Não foi isso que aconteceu.
Eram as negociações...
Do Marrom com o nosso...
Filho de uma égua...
Gente, eu fui chamada por esse homem,
na inauguração do postinho do união.
Eu nunca vou me esquecer na vida.
São duas coisas...
O que ele me chamou
e a ajuda que ele deu para tirar nós dali.
Esse homem?
Cury?
Eu não gosto de citar o nome dele.
Na inauguração do postinho do união...
Já fazia um ano nós aqui...
A gente pegou o Emanuel. Ele assumiu depois, né?
Ele foi eleito e foi reeleito de novo.
Logo no primeiro mandato dele
ele inaugurou o postinho do união que não tinha.
Foi eu e mais três pessoas.
O pessoal saiu correndo atrás de outras coisas.
Eu te juro por Deus, eu cheguei nele e falei assim...
"Prefeito, como é que fica o pessoal do Pinheirinho"?
Ele falou...
"Vai encher o saco do Marrom, favelada".
Eu nunca vou esquecer disso.
Ele me chamou de favelada.
Eu falei isso pra ele, 15 dias depois...
Naquele negócio que tira documento de graça...
No Morumbi, ele tava...
"Lembra da favelada"?
Ele saiu assim, com tudo, dos repórteres.
Mas eu nunca vou esquecer isso, ele ter me chamado de favelada.
Talita, o que foi aquela história que você falou...
Que teve lá na escola,
que uma menina falou do Pinheirinho...
Como é que foi mesmo?
É que nós estava lá, todo mundo tava alegre...
Daí ela chegou, uma metida, e falou...
"Essa sala tá suja igual ao Pinheirinho".
Todo mundo ficou calado.
A professora levantou e falou assim...
"Menina, você não tem educação, não?
Ela ficou quieta, no canto dela.
A sala toda calou.
Ficou todo mundo sentido lá no canto.
A minha amiga tava chorando, eu falei...
"Por que você tá chorando, Regina"?
Ela falou: "Emily fica só tocando nesse assunto".
Parece que ela não tava no nosso lugar.
Ela podia se pôr no nosso lugar
pra ver o que ela ia sentir falando isso.
Nós fomos lá dar conselho pra Emily,
pra ela parar de falar isso.
Daí ela falou assim...
"Vocês é um bando de pobre".
"Eles não tem nem o que fazer".
Daí ficou discutindo, minha mãe foi lá,
ver o que ela tava falando...
Ela falou que ia me bater também.
Eu falei assim...
"Se você encostar um dedo nas minhas amigas, você vai ver".
Ela queria me bater nesse tempo todo.
Ela ficou duas semanas sem conversar.
Nenhuma olhou pro olho da outra.
Depois passou de ano ela pediu desculpa pra todo mundo.
A gente voltou às pazes.
E como vocês fazem nas férias?
Como que é, acorda de manhã,
fica dormindo mais?
- Nós acorda às 11 horas. - 11 horas?
Às vezes meio-dia, 11 horas...
Hoje nós acordou ao meio-dia.
Eu arrumei a casa, passei pano,
lavei vasilha, lavei minha calça,
areei as trempes do fogão e fui fazer comida.
Quando eu fiz comida,
deitei assisti televisão, assisti, assisti...
Pedro Henrique tava na rua...
Pedro Henrique chegou correndo e falou...
"Tem um homem me filmando".
Chegou chorando aqui.
Entrou debaixo da cama. Eu falei: "Quem que é, Pedro"?
"Tem um homem com aquele négocio assim".
Eu fui correndo, daí vocês tinham chegado.
Ele ficou debaixo da cama. Depois ele foi lá correndo...
- Quantos anos você tem, Talita? - Eu tenho 12, vou fazer 13.
- E você, Felipe? - Eu tenho 11.
E você, seu dia, como foi?
Eu solto pipa, né?
Mas às vezes eu pego pipa também.
Quando você chegou...
A não ser que...
Eu tava tentando uma pegar pipa
que tava em cima da casa da mulher.
Como que eram as férias lá no Pinheirinho?
Faz sete dias...
Eu e minhas amigas tavam comentando sobre o Pinheirinho.
Falando que a gente tinha mais liberdade lá,
que a gente poderia brincar muito mais.
Nossas mães deixavam a gente ir pra tudo quanto era lugar,
ficar brincando...
Aqui as nossas mães não deixam, porque aqui tem muito tráfico.
Muita coisa que não deve.
Minha mãe não deixa eu sair, eu fico só dentro de casa.
As minhas amigas, as mães delas,
não deixam nem colocar o pé na rua.
Lá perto tinha um parquinho enorme.
Dava pra andar de bicicleta,
agora eles proibiram andar de bicicleta.
Eu soltava pipa lá dentro, jogava futebol...
Quem proibiu?
Agora eles não deixam mais entrar de bicicleta pra andar.
Entendi. Cercaram...
Aqui a Talita falou que não pode por causa do tráfico.
- É isso? - É.
Não tinha tráfico no Pinheirinho?
Não.
Tinha diariamente, só que...
- Não faziam perto das crianças. - Eles respeitavam.
Respeitavam demais as crianças.
As coisas deles eles faziam bem lá pra baixo mesmo.
Daí...
Depois tudo tava mudando, tudo tava acabando.
Depois ele chega e tira todo mundo de lá...
Só viu gente chorando. Ninguém queria acreditar.
Ninguém acreditou.
Pra mim essa juíza estava é louca.
Você acha que a maior culpada foi ela?
Eu acho que foi ela.
Porque muitos tentaram tirar a gente dali,
mas ninguém conseguiu.
E ela já falou que rasgava o diploma dela
se não tirasse ninguém dali.
Ela parece que não tem sentido.
Não tem sentido de ela fazer isso com ninguém.
Se fosse ela ali, ela tem que ver...
O que ela tem, a gente tem.
Nós tem sentimento também.
Ela pensa que só ela que tem, nós também tem.
Que sentimento você teve mais?
De tristeza?
Deu vontade...
Deu vontade de chorar, de fugir ao mesmo tempo.
Deu vontade de fazer tudo.
Deu vontade de até matar aquela juíza.
A desumanidade da juíza Márcia Loureiro
ao determinar aquela reintegração naquelas condições...
Não é possível que não seja uma falta funcional.
Ela chegou a dar declarações
que a operação foi preparada durante quatro meses.
Quatro meses não dava pra tentar uma solução?
Não dava pra chamar as autoridades administrativas,
os responsáveis pela habitação?
Tanta coisa era possível fazer.
No entanto, preferiu-se o caminho da violência.
O caminho da brutalização das pessoas.
Mas e com vocês, vocês estavam lá até o dia?
Como que foi no dia?
Meus irmãos sairam correndo.
Ficou eu, minha mãe e o Pedro.
E nós saiu correndo também.
Daí nisso, morreu uma criança...
Aconteceu várias coisas.
Só viu eles entrando.
Eles começou a entrar, todo mundo saiu correndo.
Tacando bomba, tacando um tanto de coisas...
Spray... Ninguém tava conseguindo ver.
Até do outro lado da rua, até lá perto da casa da minha tia
tava sentindo o cheiro do negócio lá,
do spray de pimenta.
Meu tio, amigo da minha mãe,
foi lá correndo pra tirar a gente de lá.
Tirou um tanto de criança de lá.
Tentando tirar as crianças que tavam com medo.
A gente pegou e saiu.
Nós não foi lá nem pra ver se nossos móveis ainda tava lá.
Minha mãe pegou
e foi ver se alguém tinha tirado os móveis da minha mãe.
Ninguém tirou.
Nós ficou sem móveis.
Esses móveis que tão aqui minha mãe conseguiu comprar.
Alguns.
Você não conseguiram tirar nada de lá?
Só essa televisão que era de lá.
- Que era do bar... - E coisa de vocês?
Tem alguma coisa que vocês lembram?
Ou bicicleta...
Ficou duas bicicletas, ficou uma estante vermelha,
ficou minha cama,
a cama do Felipe, a cama do Maicon...
Ficou um tanto de coisa nossa lá.
As minhas roupas novas, que minha mãe tinha comprado,
nem tinha usado...
Ficou tudo lá.
O que você tem mais saudade?
Tenho saudade?
É do meu quarto só pra mim.
Quando os meninos faziam raiva eu ia pro meu quarto.
Ficava lá, sozinha, brincando.
Agora aqui não tem nem como eu me esconder.
Só dois cômodos...
Vocês voltaram lá depois?
Depois que quebraram as casas?
Eu voltei lá. Você voltou? Você viu, Felipe?
Viu sim, porque você desceu a rua do Pinheirinho direto,
seu idiota.
Depois agora que virou matagal, eu vi.
Lá é perigoso achar até cobra.
Veio o matagal, né? Largaram e cresceu mato.
Tiraram a gente de lá à toa...
Eles tiraram pra não fazer nada.
- Acho que era inveja. - Só pra deixar crescer mato...
Pra mim eu acho que era inveja.
Pra mim se fosse o Campo dos Alemães...
Acho que o Pinheirinho já tava ganhando,
porque no Pinheirinho tinha mais diversão.
O Pinheirinho era o lugar que tinha mais teatro.
Teatro, festa, essas coisas...
Isso aí, na verdade, é saudade mais do Pinheirinho.
Lá no Pinheirinho, lembro quando tinha festa,
fazia aquele bolão, dava pipoca,
tinha pula-pula, tinha um tanto de coisa,
porque lá tinha um barracão, fazia um teatro lá no barracão.
- Todo mundo era unido lá. - Dançava funk...
Minha mãe que colocava a gente pra ensaiar.
Minha mãe ensaiava a gente bonitinho.
De quem é o Pinheirinho?
O Pinheirinho é nosso!
Marcha.
De quem é o Pinheirinho?
O Pinheirinho é nosso!
O que se vê, é que passado um ano,
o Governo do Estado se limita a pagar a Bolsa Aluguel...
O resto do aparelho do Estado, incluindo a União,
não se manifesta, não toma atitude nenhuma.
Teria sido possível, imediatamente,
a União, presidente da República,
discutir que o que aconteceu foi uma barbárie.
Comentou alguns dias depois dos fatos do Rio Grande do Sul.
Aquilo foi uma barbárie, mas não aconteceu nada.
A União, o Estado e o Município, passado um ano,
não poderia ter dado uma solução definitiva?
Não poderia ter construído alguma coisa?
Não poderia ter desapropriado aquela área?
O Pinheirinho é mais do que um terreno.
Ele era um terreno, mas era mais que isso.
Pela própria organização que tinha,
pela solidariedade que tinha entre as famílias,
pela convivência que tinha...
Ele é mais que um terreno. ele é um povo.
Como um povo, ele tem características próprias,
tem outras formas de pensamento, tem uma formação diferente,
e enquanto povo, eles seguem...
É muito comum em situações de reintegrações,
sobretudo situações que envolvem violência,
isso acabar tendo uma grande repercussão.
Uma repercussão na mídia, uma espécie de comoção,
que foi o que aconteceu no caso do Pinheirinho.
Entretanto, passado o sinistro,
não se fala mais nisso, e se esquece.
Entretanto, as pessoas que viveram aquilo,
continuam em uma situação absolutamente precária
e vulnerável.
Pessoal, hoje tá fazendo um ano que nós saímos do Pinheirinho.
Fui despejada pela juíza...
Nós estamos convocando vocês pra participar do ato
em frente ao Pinheirinho.
O interesse imobiliário hoje é muito forte no Brasil.
Há uma tendência do despejo forçado,
há uma tendência de elitizar certas áreas,
e se o Estado estiver alinhado com o interesse imobiliário,
ele vai ser o braço que vai executar esse despejo desumano.
Eu nasci briguenta.
Eu tenho um ideal.
Eu brigo pelo certo.
Sou da luta, sou guerreira.
Ser briguenta, lutar pelos seus direitos...
sou eu mesma.
Não tire o direito de ninguém, só o meu.
E do meu povo.
- Seu povo? - É todo mundo. É meu Pinheirinho!
Esse auxílio aluguel, praticamente não vale nada,
por conta do que a gente é aqui fora.
E outra coisa é que também essas casas não confio que saiam.
Se sair vai ser coisa muito mal feita.
Não vão gastar dinheiro pra fazer uma coisa bem feita, né?
Mas acho que nós vamos conseguir, sim.
Nem que seja uma casinha fraca.
Mas o importante é ter onde ficar sem pagar aluguel.
Se conseguir, pra mim tá bom demais.
Se não conseguir também, eu fico sossegado.
Não vou reclamar,
porque eu não posso mandar na vontade dos outros.
Minha filha ficou meses lá em Jacareí.
Meu filho? Meu filho se foi...
Semana que vem ele fazia 16 anos.
Ele tá na rua desde então.
Tipo assim...
Perdi minha casa, perdi minhas coisas...
Ele se viu num dia...
Eu posso dizer pra você, ele pode dizer...
Mas eu não sei como ele diria pra você.
Ele se viu num dia que ele não tinha nada.
Ele simplesmente saiu com uma mochila nas costas.
E a cama dele, e a roupa dele, e as coisas deles?
Moleque gosta de ter tranqueira.
E as coisas dele?
A pipa, o estilingue dele?
O duro foi o dia que eu cheguei, virei pra ele e falei assim...
"Sua casa, sua cama, suas coisas"...
Ele gostava muito de contar.
"Suas plantas... Não tem mais nada".
"Esquece, acabou. Não tem mais nada".
Quem é que vai trazer ele de volta pra casa?
Quem vai devolver do jeito que ele era?
Quem vai me devolver?
Minha família se espatifou, a família se espalhou.
Eu fico sonhando em ficando junto.
Ficou meu moleque pra lá, minha menina pra cá,
menino pra lá...
E aquele dia eu parei não sei porque...
Aí eu vi realmente que eu tava no buraco,
que eu tava em um lugar sem saída.
Aquele dia eu me senti embaixo.
Eu me senti lá embaixo mesmo.
Eu sabia que tinha quem...
Eu sabia que tinha gente lutando,
mas ao mesmo tempo não podia fazer nada.
Eu tinha que esperar.
Tinha que esperar o que ia acontecer.
Minha mãe, meus filhos, tudo esparramado...
Foi um momento difícil.
Não foi um momento difícil, mas aquele pedacinho foi triste.
Tanto é que isso ela nem sabe.
Agora eu estou falando, mas ela não sabia.