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COM A COLABORAÇÃO DE INÚMEROS OUTROS APRESENTAM
''BERLIN ALEXANDERPLATZ''
BASEADO NO ROMANCE DE ALFRED DÖBLIN
FILME EM 13 PARTES E UM EPÍLOGO
DE RAINER WERNER FASSBINDER
Ela quer ganhar o dinheiro dela. Eu também ganho o meu.
E se ela não quer que você a sustente...
o que você nem pode fazer por causa do braço...
quer dizer que ela é uma moça decente.
Pode confiar nela, Franz. Qual é o problema?
É junho em Berlim, apesar de tudo.
O tempo permanece quente e chuvoso.
Muitas coisas acontecem no mundo.
O dirigível Itália caiu...
e está queimando a nordeste de Spitzbergen...
num local de difícil acesso.
Outro avião teve mais sorte.
Voou de São Francisco até a Austrália em 77 horas...
e aterrissou bem lá.
O rei da Espanha briga com o seu ditador, o General Primo.
Esperemos que as coisas se acertem.
Comovente à primeira vista...
foi o noivado entre Baden e a Suécia.
Uma princesa do país dos fósforos...
se incendeia por um príncipe de Baden.
Quando se pensa na distância entre Baden e a Suécia...
é de se espantar como algo assim pode acontecer.
As mulheres são o meu ponto fraco.
Uma fraqueza mortal. Enquanto beijo a primeira...
penso na segunda e olho de soslaio para a terceira.
Sim, elas são meu ponto fraco. Mas o que posso fazer?
Não posso fazer nada. E se eu falir por causa das mulheres...
escreverei ''vendido'' no meu coração.
E Charlie Amberg acrescenta...
''Vou arrancar um cílio e matar você com ele.
Depois eu pego o batom...
e lhe pinto de vermelho.
Se você continua bravo...
só sei de uma saída.
Peço um ovo estrelado...
e jogo espinafre em você.
Você, você, você.
Peço um ovo estrelado...
e jogo espinafre em você''.
Segunda-feira inaugura-se a ferrovia elétrica.
O Comitê Ferroviário Imperial adverte sobre os perigos.
Atenção! Cuidado! Não entre mais! Fique para trás!
Está cometendo um delito.
Franz?
Diga alguma coisa. Não está se sentindo bem?
Não. Só fiquei meio tonto.
Está vendo?
É justamente isso que Mieze sempre diz.
''Você tem que se cuidar'', ela diz.
Você passou por tantas coisas este ano e no passado.
Em Tegel, também não foi aquela maravilha.
Ela teria vergonha se você se matasse por ela.
Por isso ela prefere trabalhar.
Ela só não teve a coragem de contar.
Sei.
Você não tem idéia...
do quanto ela gosta de você.
Você não me quer.
Ou quer, Franz?
Não, Eva, você é uma boa mulher...
mas tem que ficar com Herbert.
Ele precisa de você. Ele é um cara decente.
Agora vá falar com Mieze.
Ela não vai voltar para casa se você não a quiser.
Pode deixar, eu consigo.
Está bem.
Certo.
Esquina da Jean-Paul com a Mosesstrasse...
junto à construção.
Não tem como errar.
Mosesstrasse...
junto à construção.
Silenciosa...
e delicadamente, Franz se despediu de Eva.
Estou bem, Franz.
Não chore, Mieze.
Por favor, não chore.
Sabe o que vou fazer agora?
O que já deveria ter feito há muito tempo.
Hoje, eu posso.
Estou forte o suficiente.
Às 8hOO estarei de volta.
Então, colega!
Não há histórias, hoje?
Para quê? Você nem me ouve.
Nem entra no nosso estabelecimento e aproveita nossa oferta especial.
Seja gentil. Conte sua estória.
Tente mais uma vez comigo.
Tanto faz.
Sentada, junto à água está a Babilônia.
A mãe da putaria e dos horrores!
Ela está sobre o bicho de sete cabeças e dez chifres.
Cada passo que você dá é uma alegria para ela.
Ela se embriagou com o sangue dos santos que ela dilacerou.
Esses são seus cornos.
Ela vem do abismo e conduz à danação.
Olhe para ela, para as pérolas...
o escarlate...
as jóias, os dentes...
como ela arreganha os lábios carnudos.
Por eles escorreu sangue.
Com eles, ela bebeu.
Puta Babilônia!
Olhos venenosos amarelo-ouro, pescoço opulento.
Veja como ela sorri para você.
Então, está satisfeito?
É uma bela história.
Eu também sei contar uma.
Uma mosca se arrasta...
e se arrasta...
e se arrasta mais...
parando num vaso de flores.
A areia escorre dele...
mas ela não se importa.
Ela a sacode.
Depois espicha a cabeça negra...
e engatinha para fora.
Não gostaram da minha história?
Não é tão ruim.
Talvez pudesse melhorá-la.
Mas contar histórias é coisa que se aprende.
Está bem, vou tentar.
Esquerda, direita! Esquerda, direita!
Boa sorte.
Não usarei o cansaço como pretexto.
Nem vou passar pelos bares, nada de beber. Vamos ver isso.
Esquerda, direita! Uma bala vem voando.
Vamos ver!
Esquerda, direita!
Quando os soldados
Marcham pela cidade
Quando as moças
Fecham as portas
PARTE 9:
DAS ETERNIDADES ENTRE OS MUITOS E OS POUCOS.
O que quer na minha casa?
O que temos a dizer um ao outro?
Também não sei direito, Reinhold, mas acho que vamos descobrir.
É que perdi um braço num atropelamento.
Sim, eu já fui um homem decente.
Mas agora eu sou um cafetão.
Talvez pudéssemos discutir...
de quem seja a culpa.
Pode guardar o revólver. Não precisa ter medo de mim.
Que tal me deixar entrar?
Está bem.
Se faz tanta questão...
entre.
Eu já disse para guardar o revólver.
Seria uma tolice, Reinhold.
Isso só lhe traria problemas.
Sente-se, Franz.
Eram três reis magos...
que vinham do oriente com incenso. Eles o espargiam.
Espargiam sem parar.
Por que olha desse jeito, Franz?
Está bêbado?
Não estou bêbado, Reinhold.
Eu só queria ver você.
O que pretende fazer?
Torturar-me?
Chantagear-me pelo que aconteceu?
Está bem.
Quanto quer?
Fique sabendo que estamos armados.
E que sabemos que você é cafetão. Estamos sabendo.
Sim, eu sou cafetão.
O que quer que eu faça com um braço só?
Então, o que você quer?
Nada, Reinhold.
Nada.
A Cilly esteve comigo.
De passagem.
Sabe, quando estou sem mulher por uns meses...
posso ficar com ela de novo.
Uma reprise é algo bem engraçado.
Saúde.
Você tem duas mãos, Reinhold...
e dois braços. Eu só tenho um.
Com suas mãos você me atirou para fora do carro.
Reinhold.
Por quê? Por quê?
Na verdade, eu deveria matá-lo.
Mas isso é apenas o que pensam os outros.
Eu não quero isso. São os outros.
Não é isso o que eu penso.
O que eu acho?
Não sei de nada.
Não sei fazer nada.
Mas eu tenho que...
Eu queria fazer alguma coisa.
Não sou um homem.
Sou um merda.
Franz?
Ouça.
Franz.
Desculpe.
Me desculpe.
Entrei em devaneios.
Esqueça.
Não importa.
E só que...
Eu gostaria...
Eu gostaria de ver a sua ferida.
E bem nojenta.
Já melhorou muito. No começo era bem pior.
Sempre usa a manga dentro do bolso?
Você mesmo enfia ou está costurada?
Não, eu sempre enfio.
Com a outra mão?
Depende.
Quando já estou de casaco não é muito fácil.
Precisa tomar cuidado para não pôr nada no bolso direito.
Senão poderão roubar.
Não de mim.
Não pode comprar um braço falso?
Quando um cara perde a perna, compra uma falsa.
Fica melhor.
Não, Reinhold. Só incomodaria.
Eu compraria um.
Ou talvez eu enchesse a manga.
-Vamos, deixe-me experimentar. -Para quê?
Para você não andar por aí com uma manga mole.
Não é preciso que todos saibam.
-O que quer que eu faça? -Veja.
Algumas calças, umas camisetas.
-Você vai ver. -De que adianta?
Isso fica parecendo uma salsicha.
Não.
Não está certo.
Precisa mandar fazer num alfaiate.
Mas é melhor assim. Não ande por aí como um aleijado.
Pareceria apenas que está com a mão no bolso.
Eu não suporto aleijados.
Um aleijado não serve para nada.
Quando vejo um aleijado...
eu penso que seria melhor acabar com ele.
Isso é mais ou menos o que eu penso também.
Você tem razão, Reinhold. Está certo.
Um aleijado não pode mais fazer o que quer.
Talvez fosse melhor...
-acabar com ele de uma vez. -É o que digo.
Você tem razão.
Vem.
Vou lhe dizer uma coisa, Mieze.
Você pode fazer o que quiser...
mas nunca vou deixar você ir embora.
Nunca!
Nem é preciso me dizer isso.
Nunca vou deixá-lo.
Nunca.
-Até hoje à noite. -Espere.
Eu também tenho que sair. Eu lhe acompanho um trecho.
Sra. Bast!
Sim, Srta. Mieze?
Vamos sair. Pode fechar as janelas mais tarde?
-Lá pelas 18h3O. -Claro.
Obrigada.
Até logo.
Olá, Willy.
Está com sorte. Eu estava saindo.
-Olá, Franz. -Desculpe.
Esta é Mieze. A minha Mieze.
E este é Willy.
Somos amigos e estamos trabalhando juntos.
-Como vai? -Olá.
Preciso ir andando.
-Até hoje à noite, Franz. -Tchau.
O que me diz? Me ajude aqui.
-A moça é decente. -''Decente''? Ela é um anjo.
Não viu como ela é inocente e meiga?
Claro que vi.
Espantoso que uma moça dessas possa parecer assim.
-Ela faz isso porque me ama. -Safado!
Maxie!
-Olá, Franz. -O dia está maravilhoso.
Uma cerveja e uma aguardente. Waldmeister ou framboesa?
-Waldmeister. -Então um Waldmeister.
Oi, passarinho.
Pode servir a aguardente primeiro.
Franz, Franz... O que fizeram com você?
O que foi, Max? Vai me dar sermão toda vez?
Não é sermão, Franz. É a verdade.
Ou estou enganado?
Você não jurou permanecer honesto?
''Venha comigo'', diz o homem a seu filho.
O filho vai com ele para as montanhas.
''Quanto tempo mais, pai?''
''Não sei. Venha comigo''.
Morro acima, morro abaixo, vales...
O caminho é longo. É meio-dia.
''Aqui estamos. Veja, meu filho.
Lá está um altar''.
''Estou com medo, pai''.
''Por que está com medo, meu filho?''
''Você me acordou bem cedo, levou-me para sair.
Esquecemos o carneiro que íamos sacrificar''.
''Sim.
Nós o esquecemos''.
''Estou com medo, pai''.
''Eu também, filho.
Chegue mais perto. Não tenha medo.
Temos que fazer isso''.
''O que temos que fazer?''
''Não tema, meu filho. Faça-o com prazer.
Chegue mais perto de mim.
Já tirei o casaco.
Não sujarei as mangas de sangue''.
''Estou com medo porque você está segurando uma faca''.
''Sim, estou segurando uma faca.
Eu tenho que matá-lo. Tenho que sacrificá-lo.
O Senhor assim ordenou.
Faça-o com prazer, meu filho''.
''Não quero ser sacrificado''.
''Não grite, meu filho.
Se você não estiver disposto, não poderei fazer.
Queira.
O que quer fazer em casa?
O Senhor é mais do que o lar''.
''Eu não posso.
Posso, sim. Não, não posso''.
''Chegue mais perto. Veja.
A faca já está aqui.
Olhe para ela. Está bem afiada.
É para o seu pescoço''.
''Para cortar a minha garganta?''
''Sim. Aí jorrará sangue.
Sim. O Senhor ordena.
Você quer?''
''Ainda não posso, pai''.
Não posso assassiná-lo. Se eu o fizer...
tem que ser...
como se você próprio o fizesse''.
''Eu mesmo''?
''Sim...
e não pode ficar com medo.
Você não pode amar a vida.
A sua vida.
Você a entregará a Deus.
Chegue mais perto''.
''Deus, nosso Senhor, deseja isso?''
''Não seja covarde''.
Enterre a faca em mim.
Espere, quero abrir o colarinho para que o pescoço esteja nu''.
''Você só precisa querer...
e eu, só preciso querer. Ambos o faremos.
Então o Senhor chamará. Nós o ouviremos dizer: ''pare''.
Sim. Venha aqui, dê o pescoço''.
''Tome. Não tenho medo. Faço com prazer.
Corte, não vou gritar''.
E o filho inclina o pescoço. O pai vai atrás dele...
segura sua testa, e com a mão direita levanta a faca.
O filho assim o deseja.
O senhor chama e ambos caem de bruços.
O que diz a voz do Senhor?
''Aleluia!
Vocês são obedientes! Aleluia!
Quero que vivam! Aleluia!
Pare, jogue a faca no precipício.
Eu sou o Senhor a quem obedeceis...
e sempre obedecerão. Aleluia''.
Antes você levava uma vida suja e se perdeu.
Depois matou Ida e cumpriu pena por isso.
E agora?
Viu? Agora não tem resposta.
Você está na mesma lama. Ida agora se chama Mieze.
Você perdeu um braço e voltou a beber como antes.
Isso quer dizer: tudo de novo.
Só que agora é pior. Depois é o fim de tudo.
Bobagem! Que culpa tenho eu?
Por acaso pedi para ser cafetão?
Não diga tolices.
Eu fiz o que era humanamente possível. Você viu.
Até perdi um braço. Que alguém diga alguma coisa. Estou farto.
Ou será que não me esforcei o bastante?
Não perambulei de manhã até a noite por aí?
Simplesmente entendi o recado.
Por mim, você tem razão. Pouco me importa.
Não sou decente.
Sou um cafetão.
Mas não me envergonho disso.
E além do mais, você, o que é? Do que vive?
Por acaso não vive das pessoas?
Ou alguma vez chantageei alguém?
Você me conhece, Franz. Conhece-me muito bem.
Sabe que eu não falaria assim se não gostasse de você.
-Você sabe disso. -Pode ser.
É assim, Franz. Uma coisa lhe digo...
você vai acabar na prisão ou com uma facada na barriga.
Prefiro a facada. Tudo bem.
Mas escreva o que eu digo.
O outro leva uma também.
A única coisa que não entendo, Franz...
é que você sempre agüenta isso. Sempre o mesmo sermão.
Bem, eu sempre vim aqui.
Está vendo?
É isso. Você sempre vem aqui.
O que importa é não nos prendermos a velhos hábitos.
É verdade, mas esse é o bar que eu freqüento.
Não tem que ser para sempre.
-Sim, mas... -Não tem ''mas'', Franz.
Mas sei de uma coisa.
Haverá uma reunião hoje.
Dentro de meia hora.
Vão falar disso.
É para lá que nós vamos.
-Uma reunião no meio da tarde? -Por que não?
Com tantos desempregados por aí...
eles podem fazer as reuniões de tarde.
E os poucos...
que ainda trabalham e querem ir, dizem que estão doentes.
Por mim, tudo bem.
O REICH ALEMÃO É UMA REPÚBLICA E QUEM NÃO ACREDITAR...
VAI LEVAR BALA NA NUCA.
O Parlamento só serve...
para enganar o povo...
os partidos sabem muito bem.
Os socialistas, por exemplo...
não querem nada e não sabem de nada...
e não podem fazer nada. Eles têm a maioria no Parlamento...
mas não sabem o que fazer com ela.
Só sabem sentar-se em poltronas...
fumar charutos e tornarem-se ministros.
Foi para isso que os operários deram seus votos...
e seus tostões, para que 5O ou 1OO homens...
fiquem gordos às suas custas.
Os socialistas não conquistaram o poder político.
O poder político é que conquistou os socialistas.
Não tomaremos mais uma cédula nas mãos.
Não vamos mais votar. Num domingo como esse...
é mais saudável passear no campo. E por quê?
Porque o eleitor está enquadrado na legalidade.
Mas a legalidade é uma grande violência...
a força bruta das classes dominantes.
Ninguém deve perceber...
o que o Estado realmente é.
Nem saber que há fendas e buracos por onde se pode espiar...
porque desta forma até o mais imbecil...
compreenderia que não passa de um eleitor ingênuo...
mais um integrante do gado. Apenas mais um do gado.
Que infinita distância...
há entre ele...
e o Estado...
no qual ele deve acreditar...
que faz parte.
A burguesia...
e os socialistas...
e os comunistas...
alegram-se e gritam numa só voz.
''Toda a felicidade...
vem de cima...
do Estado...
da lei...
das autoridades.
A liberdade está ancorada na Constituição''.
E é verdade que a liberdade esteja ancorada ali.
Tão firme que está presa.
E logo perceberão, senhoras e senhores...
como a liberdade está estabelecida.
Mas as eleições são realizadas, e mais eleições...
e toda vez eles dizem que as coisas vão melhorar...
com toda certeza.
Mas eu posso lhes dizer, senhoras e senhores...
o quanto as coisas vão melhorar.
Por exemplo, vão nos tirar completamente o direito de greve.
Mas temos a guilhotina...
dos conselhos arbitrários...
sob os quais podemos nos mover livremente.
Não, senhoras e senhores...
eu lhes digo: é tudo um ciclo...
de eterna cegueira...
e tudo ficará como antes.
O parlamentarismo perpetua...
a miséria da classe trabalhadora.
Escravos egípcios...
trabalharam sem máquinas...
por décadas no túmulo de um faraó.
Operários europeus...
trabalham há décadas com máquinas...
para alimentar fortunas particulares.
Progresso? Talvez. Mas para quem?
No futuro eu vou trabalhar...
para que Krupp em Essen ou em Borsig...
ganhe mais mil marcos por mês.
O que nos resta além do trabalho se queremos sobreviver?
Um minutinho só. Pare aí!
Agora me explique a diferença...
entre você e um indivíduo dos Social Democratas.
-Bom, está perguntando mesmo? -Claro que estou.
Veja, você fica no seu turno...
e leva seus miseráveis tostões para casa.
Enquanto a sua corporação...
distribui dividendos do seu trabalho.
Operários alemães trabalham como escravos há décadas com máquinas...
para fortunas particulares.
-Então, é assim ou não? -Bem...
-e o que vocês fazem? -Ora, Franz!
-Diga você. -Bobagem.
Conversas sobre política não me interessam.
Isso não é uma discussão política.
Estamos falando de nós mesmos.
Vamos, desembuche. Qual é seu trabalho?
Existe um ceifador que se chama morte.
Tenho que chorar e gritar sobre as montanhas...
lamentar-me entre os rebanhos no deserto...
pois são tão devastados que ninguém mais caminha por lá.
Tanto os pássaros do céu quanto o gado...
foram embora.
Agora diga...
-com o que você trabalha? -Eu ando por aí.
Faço uma coisa ou outra.
Trabalhar mesmo eu não trabalho.
Deixo que outros trabalhem por mim.
Então é empresário e tem funcionários.
Quantos você tem?
E o que você está querendo aqui se é um capitalista?
Transformar Jerusalém numa montanha de pedras...
e moradia de chacais.
Quero transformar em deserto as cidades da Judéia...
para que ninguém possa ir.
Isso é uma desculpa.
Como é que é?
Será que não viu que só tenho um braço?
Esse é o preço que paguei por trabalhar.
É por isso não quero ouvir falar de trabalho honesto.
Continuo sem entender, colega...
que você não tenha trabalho.
Se você não tem um trabalho honesto...
deve ter um desonesto.
Está vendo? Agora ele entendeu.
Venha, Willy.
É isso: trabalho desonesto.
Seu trabalho decente é escravidão. Você mesmo acabou de dizer.
Trabalho honesto é isso, e eu aprendi minha lição.
Está bem, então você não trabalha.
-E não recebe auxílio-desemprego. -Não, não recebo.
Então pergunto, embora não seja da minha conta...
o que queria aqui?
Era essa pergunta que eu esperava.
Você mesmo falou de escravidão.
Disse que somos excluídos...
sem espaço para nos movermos.
Sim, mas você não estava ouvindo direito.
Eu falava de recusa ao trabalho.
Mas para isso, é preciso que se tenha trabalhado.
-E eu me recuso. -Isso não nos adianta.
É melhor ir para a cama.
Eu falava de greve...
uma greve em ***...
de greve geral.
É isso que você chama de ação direta?
Falar, falar e falar?
Isso só fortalece mais os capitalistas.
-Seu idiota! -Ei!
Você fabrica granadas para eles...
com as quais eles vão lhe matar.
E você quer me ensinar alguma coisa?
Ouviu, Willy? Vou ''cair duro''.
Então pergunto mais uma vez: qual é o seu trabalho?
E eu digo mais uma vez: nenhum.
Uma droga, nada!
Vocês podem ir à merda...
porque eu nem posso trabalhar...
segundo a teoria de vocês!
Não vou tornar nenhum capitalista mais forte.
E eu cuspo nos seus falatórios e greves...
em tudo que vocês sempre dizem que vai acontecer.
Eu mando tudo às favas.
O homem é um indivíduo. Eu faço aquilo de que preciso.
-Eu sou auto-suficiente. -Então tente sozinho.
Sozinho não se pode fazer nada.
Precisamos de uma organização de luta.
Temos que criar organizações de luta, entendeu?
É nisso que temos que trabalhar. Organizações de luta!
Organizações.
Gostaria de saber o que se passa na sua cabeça.
Eu queria mesmo saber.
Por um lado, você diz ser contra todos os sistemas...
contra qualquer ordem...
e contra qualquer organização.
Mas por outro lado...
vocês querem montar organizações de luta.
Não percebe que há algo errado na sua cabeça?
-Será que você não percebe? -Você desperdiça palavras.
Você está cego. É isso que você está: cego.
Você não sabe o que importa para o proletariado.
Solidariedade.
Isso você não conhece.
Olá? Tem alguém aí?
Não me assuste assim. Não é bom para o meu coração!
Entendo.
-Isso ataca o coração? -Também.
Herbert está aí.
Está bem.
Este é o meu amigo Willy.
E a minha muito querida Eva.
-Olá. -Como vai?
Entrem.
''A companhia agradece e coloca-se à sua disposição''.
Quem é, querida?
Pelo que ouço é o execrável Franz Biberkopf.
Ouviu certo, meu general.
Seus ouvidos continuam sendo seus órgãos que melhor funcionam.
Como especialista, contesto essa afirmação.
Como queira, minha senhora. Todos têm direito a uma opinião.
-Estou certo, Herbert? -Olá, Franz.
-Não o vejo faz tempo. -Você também não aparece.
Estive em Breslau.
Que trabalho atrai um homem às províncias?
-Vamos beber. -Como veio aqui a esta hora...
-neste lugar abandonado por Deus? -Houve uma reunião aqui perto.
-Saúde. -Política, hoje em dia.
Com essa confusão atual, ninguém entende mais nada.
-Justamente, senhora. -''Senhora''?
Por isso é preciso se informar.
Willy pode ser jovem...
mas tem opiniões e idéias...
que jamais teríamos tido na idade dele.
Os jovens de hoje se interessam mais, pensam mais.
Claro, eles têm mais tempo.
Claro que têm mais tempo. Estão desempregados.
Temos que aproveitar o tempo...
e pensar é uma das coisas que não custam nada.
-Aprendeu alguma coisa? -Aprendi algumas coisas.
Que a ordem social vigente se funda na escravidão econômica...
política e social do trabalhador.
No direito de propriedade, está o monopólio do proprietário...
e, no Estado, o monopólio do poder.
A produção não se baseia na satisfação das necessidades...
mas na perspectiva de lucro...
digo, na perspectiva de lucro nas bases da produção atual.
Qualquer avanço técnico...
aumenta a riqueza da classe proprietária incomensuravelmente...
em contraste vergonhoso com a miséria...
de uma grade parcela da população. Saúde!
-Você decorou isso? -Diga a verdade.
Você decorou essa bobagem?
Sim.
Mesmo assim, a idéia é bem simples.
O Estado, ou seja, a polícia...
favorece mais...
e protege os direitos daqueles que já têm muito.
E os outros, os que trabalham...
nem pensam em...
sei lá...
tomar uma atitude...
contra isso tudo.
Ou...
Ou reclamar por seus direitos...
ou algo assim.
Saúde.
Está dizendo que não haveria mais ordem?
-Isso. -Que bobagem.
Sem ordem, é impossível. O que seria do mundo?
Eu acho...
que tem que ser assim.
Tem que haver aqueles que garantem...
que possamos atravessar a rua em paz.
Bravo. Aprendeu direitinho o que se deve pensar.
Mas não se iluda.
A maioria é mantida na ignorância...
porque...
não é, de certa forma...
natural...
que haja limites.
Que a Terra...
o mundo...
pertença inicialmente aos homens.
As florestas e tudo mais.
Qualquer limitação é artificial.
Por isso que você aprendeu que deve haver uma ordem...
e gente para mantê-la.
Isso é muito claro...
porque o mundo...
Entende?
Tudo, de certa forma...
as árvores, os animais, tudo que cresce...
tudo pode funcionar...
para quem quiser aproveitar...
se, de alguma forma...
Se tudo for bem dividido.
Se, de alguma forma...
tudo for bem distribuído.
Assim eles têm tudo de melhor nas mãos.
Inclusive as pessoas.
Então elas... Como poderia dizer?
São mais úteis.
Mais úteis para aqueles que mandam.
Preciso ir, fiquei de me encontrar com Mieze.
Diga para ela estar às 7h.00 no Mocca-Fix.
-Pode deixar. -Willy, vamos tomar mais uma.
-Acho isso estranho. -O quê?
Que se possa falar a favor e contra...
uma coisa ao mesmo tempo. Acho estranho mesmo.
Sim, mas...
assim é a vida.
FIM DA NONA PARTE