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PARA A MINHA ESPOSA KÄBI
Eu fui o primeiro a subir!
Foi refrescante.
Papai e Martin cuidam da rede e eu e Minus buscaremos o leite.
David e Minus cuidam da rede e eu levo minha mulher para passear.
Que tal Karin e eu cuidarmos da rede e Minus e Martin buscam o leite?
Nada disso. Eu mesmo vou decidir o que quero fazer.
Não nos vimos o dia todo, Minus. Vamos.
Por que é sempre a mulher que decide tudo?
Vamos fazer como a Karin quer, assim não perdemos nossa dignidade.
Teríamos ganhado tempo se Papai tivesse decidido logo.
Vamos nos vestir antes de lançar a rede?
O que você acha?
-Não está frio? -Você acha?
Meu robe é fino.
-Se está com frio... -Com frio? Não. E você?
Você disse que estava frio. Há mesmo um vento gelado.
Mas isso nos fortalecerá. Virilidade acima da saúde, certo?
Se Hemingway podia, nós também! Vamos.
Acha que vai chover?
Não esta noite.
Será? Veja quantas nuvens.
-Tem medo de trovão? -Você não faz idéia o quanto!
Nos Alpes era terrível.
-Você gostou de lá? -Senti saudade.
Mas eu só podia voltar depois de terminar o Iivro.
Então está terminado?
Sim, praticamente.
-Como vai a sua úlcera? -Mais ou menos.
Pode me receitar alguma coisa? Eu sofro com a mudança de tempo.
Vamos até a farmácia, amanhã. Tenho algumas coisas para fazer.
Recebeu a minha última carta? Enviei na segunda.
Fui visitar os Waldsteins em Basel. Eles mandaram lembranças.
Então não recebeu?
-Saí de lá na quarta. -Então não recebeu?
-Era importante? -Era sobre a Karin.
Achei melhor escrever...
mesmo que atrapalhasse o seu trabalho.
-Um cuco. Você ouviu? -Não.
-Mas agora está ouvindo? -Onde?
Ali.
Quando limpou seus ouvidos?
Pare! Você é que ouve demais.
É estranho. Desde a minha doença, minha audição ficou aguçada.
Deve ser por causa do eletro-choque.
O que achou do papai quando ele chegou da Suíça?
-Como assim? -Achei que parecia triste.
-Deve ser o cansaço da viagem. -Provavelmente.
Mas ele não parece feliz.
-A Marianne também vem? -Martin disse que romperam.
Coitado. Sozinho de novo!
Nunca gostei da Marianne.
Ela era tão metida...
e papai sumia ao lado dela.
E ela zombava dos livros dele.
O livro novo precisa receber boas críticas.
-Todo mundo lê os livros dele. -As vendas não importam.
Ele quer ser um escritor.
Por que está rindo?
Você está falando tão sério! ''Ele quer ser um escritor''.
Não fique magoado. Eu amo você, pequeno Minus.
-Você ficou tão alto! -Pare!
17 anos e quase dois metros de altura.
-Onde está a sua namorada? -E quem ia me querer?
Não fique bravo porque ri de você.
Edgar é o único psiquiatra em quem eu confio.
Ele sempre a tratou.
E?
Quando Karin chegou do hospital no mês passado...
eu e ele tivemos uma conversa.
Ele não pode garantir uma recuperação.
E agora?
Parece surpreendentemente bem.
Mas não tem dormido muito.
A audição dela está aguçada, deve ser por isso.
Quanto ela sabe?
Ela sabe toda a verdade quanto à doença...
mas não que seja relativamente incurável.
Relativamente?
Já houve casos de recuperação total, então há esperança.
Como vão as coisas entre vocês?
Bem, obrigado.
Os dias passam como de costume.
Dei palestras a primavera toda e examinei vários alunos.
Eu percebi que a amo...
e que estou impotentemente ligado a ela, haja o que houver.
Tornei-me a àncora de sua existência.
Talvez a sua única segurança.
Entendo.
-Vamos lançar as redes? -Sim. Vamos.
Minus...
Ei...
Tome cuidado.
Fique longe de mim.
Pare de me abraçar e me beijar. De se banhar quase nua! Que nojo!
-Como assim? -Você me entendeu!
As mulheres são terríveis!
O cheiro, a maneira como andam! O jeito como falam e se penteiam!
-Sinto-me um coelho despelado! -Coitadinho.
Me deixe em paz!
Já tenho toda a pena de que preciso.
Qual é o problema? Nunca vi você assim.
Por favor, não conte ao Papai ou ao Martin.
Não seja bobo.
Eu queria conversar com Papai ao menos uma vez!
Ele só pensa em si mesmo.
Ele também.
Vamos para casa.
-Eu derrubei o leite. -Garoto desastrado.
Droga! Eu odeio quando machuco o dedo.
Faça um curativo.
-Olá. -Olá.
-Martin cortou o dedo. -Deixe-me ver.
-Vou colocar o leite no celeiro. -Parece profundo. Faça um curativo.
Tudo isso por causa de um corte!
Não é uma beleza jantar aqui fora à luz do luar?
Você é um mestre na cozinha!
-Que cheiro maravilhoso. -Sinta, Minus.
Ao invés de romances, devia escrever livros de receita.
Vamos nos sentar? A Karin ali, você ali...
Minus ali e eu aqui.
-Esperei tanto tempo por isto! -Por quê?
-Senti saudade o tempo todo. -De nós?
Até mesmo de você.
-Agora vai ficar aqui? -Pelo menos por um mês.
Vai partir de novo?
Sou o responsável por uma turnê na Iugoslávia.
-Uma turnê? Por quê? -Foi uma proposta lisonjeira.
Uma delegação cultural.
Já que conheço bem o país, por que não?
Saúde, David. Bem-vindo ao lar.
Obrigado.
-Saúde, Karin. -Saúde, Papai.
Saúde, Minus.
E o seu livro?
Estará pronto até lá.
Falei com a editora, enviarei o original na semana que vem.
-Vai ficar muito tempo fora? -Não sei.
Talvez fique um pouco em Dubrovnik, depois.
Por alguma razão, me sinto um criminoso.
Você prometeu ficar em casa quando voltasse da Suíça.
Nós falamos sobre isso, mas quanto a prometer...
Você prometeu.
É uma pena.
É, mesmo.
Era para ser uma noite agradável...
e estamos quase chorando.
Eu trouxe presentes da Suíça para todos.
Karin...
-Martin... -Obrigado. Não precisava.
Minus.
-Podemos abrir agora? -Por favor.
Vou buscar o meu cigarro.
Não cabe nem no meu dedão.
Eu já tenho um igual.
Aposto que só pensou nos presentes quando chegou em Estocolmo.
Mas foi gentil.
-Muito obrigado, David! -Obrigada pelas lindas luvas!
-Temos uma surpresa para você. -Precisamos vendar você.
-Não vale espiar. -Eu cuidarei dele, podem ir.
Não consigo ver nada.
É como andar nas nuvens!
-De quem foi esta idéia? -Do Minus.
Karin e eu ajudamos.
Espere e verá.
É quase como Shakespeare.
Está pronto?
A nossa peça se chama ''A Assombração Artística''...
ou ''A Sepultura das Ilusões''.
Que a peça comece!
É meia-noite na Capela de Santa Teresa.
Aqui me encontrarei com o desejo do meu coração.
Aqui, ao lado deste túmulo que tem o cheiro da morte.
Ouço alguém lá dentro. Será que é ela?
Eu vou me esconder para não assustá-la.
Quem é você?
Sou a princesa de Castilha...
que morreu ao dar à luz quando tinha 13 anos.
Meu marido e amado mestre, meu companheiro de infância...
se voltou para outras mulheres.
Princesa, eu amo você!
Quem é você?
Eu não falo com qualquer um, mesmo estando morta.
Não há nada a temer.
Sou o rei do meu próprio reino, mesmo sendo ele tão pequeno.
-Eu sou um artista. -Um artista?
Sim, princesa! Um artista dos mais puros.
Um poeta sem poemas, um pintor sem quadros.
-Um músico. -Um músico sem notas musicais.
Eu desprezo a arte pré-fabricada...
o resultado banal de um esforço vulgar.
A minha vida é o meu trabalho, e eu a dedico ao meu amor por você.
Belas palavras, mas difíceis de acreditar.
Eu lhe imploro que me ***.
Ouça com atenção. Eu logo deixarei você.
Quando o relógio do convento der duas badaladas...
entre na campa e apague as três velas que lá se encontram.
Nesse momento, as portas se fecharão para sempre...
e você me fará companhia na morte.
Fácil sacrifício, minha princesa.
Pois o que é a vida para um verdadeiro artista?
Então aperfeiçoe a sua obra de arte e coroe o seu amor.
Enobreça a sua vida e mostre aos céticos...
o que um verdadeiro artista pode fazer.
Adeus, meu amigo.
Não me decepcione.
Estou diante da mais total perfeição.
Um pressentimento me aflige.
Ao ouvido pertencerei...
e apenas a Morte me amará.
Estou indo. Nada pode me deter.
Estou esperando.
Demônios, o que estou pensando em fazer?
Sacrificar a minha vida? Por quê?
PelIa eternidade?
Pela obra de arte perfeita? Por amor?
-Será que enlouqueci -Estou aguardando.
Quem verá o meu sacrifício? A Morte.
Quem irá avaliar a profundeza do meu amor? Um fantasma.
E quem me agradecerá? A eternidade.
Estou esperando.
Meus joelhos me falham, o corpo treme, o intestino solto...
Não posso adentrar a Eternidade assim.
Não esperarei mais.
Bom... a vida é assim.
Eu poderia escrever um poema sobre meu encontro com a princesa.
Pintar um quadro ou compor uma ópera...
mas seria necessário um final mais heróico.
Ao ouvido pertencerei...
e apenas a Morte me amará.
Nada mal.
O galo anuncia a chegada da aurora.
Vou para casa dormir.
Acabou.
Parabéns! Parabéns!
Vocês foram fantásticos!
-E você estava excelente. -Foi tudo idéia do Minus.
-Mas esqueci a minha fala. -Eu nem percebi.
Vamos limpar a mesa e lavar a louça.
-Eu lavo, está cedo para dormir. -De jeito nenhum!
Eu gosto de me ocupar, estaria me fazendo um favor.
-Bom, nesse caso... -Combinado, então.
Vou começar agora mesmo.
-Você vai dormir agora? -Vou.
-Tem água quente na cozinha. -Você pensa em tudo.
-A tempestade passou. -Eu avisei.
Deixamos a janela aberta, haverá pernilongos nos quartos.
-Alguns pernilongos não matam. -Boa noite, Papai.
Boa noite, Karin. Durma bem.
Boa noite a todos.
-Consegue sozinha? -Pode deixar.
-Eu ajudo. -Pode deixar.
Pode me ajudar?
Elas ficam tão pretas por causa da jardinagem.
Não sai.
Você tem dedos gentis.
Mas seu dedão é teimoso.
-Você está triste? -Não exatamente.
Em que está pensando?
Às vezes, somos tão indefesos.
Não, eu não sei.
''Como crianças sozinhas na selva, é noite.
As corujas a nos observar com seus olhos amarelos.
Você ouve os suspiros, os zunidos, os sussurros e os zumbidos.
Os focinhos úmidos a cheirar você.
Os lobos mostram seus dentes''.
Não se preocupe, nós temos um ao outro.
Você parece preocupado.
Não estou preocupado.
Você diz que não há lobo algum e que não vê coruja alguma.
''Não estou escutando nada...
o lobo é fruto da sua imaginação''.
Precisa confiar em mim, Karin. Pequena Kajsa.
''Pequena Kajsa''.
Você sempre diz isso. ''Pequena Kajsa''.
Sou pequena assim, ou a doença me transformou em criança?
Eu lhe pareço estranha?
-Você acha que eu digo a verdade? -Não sei.
-Não acha que amo você? -Acho.
Isso não basta?
É claro que basta.
-Pare, ou vai começar a sangrar. -Eu vou ficar bem.
Preciso lavar roupa, amanhã.
Venha para a cama.
Notou que papai viu a peça como uma afronta pessoal?
Ele ficou muito magoado, mas tentou não demonstrar.
E Minus ficou chateado, claro.
Vamos apagar a luz?
Sinto muito se magoei você.
Querida criança...
Me perdoe.
Minha amada.
Minha querida menina.
Eu amo você.
Você não poderia me magoar.
Você é tão doce e eu sou tão horrível.
Boa noite.
''Ela caminhou na direção dele, ofegante.
As bochechas coradas pela ventania.''
Meu Deus.
''Eles se conheceram...
na praia.''
Olá, pequena Kajsa.
Já se levantou? Ainda nem são 4:00.
-Oi, Papai. -O que houve?
Está com problemas?
Estou dando o retoque final ao livro...
o que nunca é agradável.
-Leia para mim. -Depois, quando estiver pronto.
Por que está acordada?
Alguns pássaros fizeram um barulho assustador.
Eles me acordaram.
E não ousei voltar a dormir.
Só um segundo.
Como quando eu era pequena.
Agora vai conseguir dormir.
''Eles se conheceram na praia.
Era um dia de sol.
O cheiro do outono no ar.''
Papai!
Karin pegou no sono.
Quer vir comigo puxar as redes?
Eu já vou.
No verão passado, eu andava tão bem com as mãos!
Agora estou tão alto que perco o equiIíbrio.
Eu também.
Espiritualmente, quer dizer?
-Você está escrevendo? -Peças.
-Posso ler? -Não.
Me desculpe, não é nada pessoal, é que não são muito boas.
-Tem escrito muito? -Treze peças...
-e uma ópera neste verão. -Meu Deus!
Elas me vêem à cabeça. Não é assim com você?
Não.
O que achou da peça de ontem? Seja honesto.
Foi boa.
Eu achei uma droga.
''A sua doença é incurável...
mas apresenta fases de melhora.
Eu há tempos suspeitava...
mas a certeza é todavia insuportável.
A minha curiosidade me apavora.
Assim como o impulso de registrar o progresso da doença...
e de fazer uma...
descrição detalhada da sua gradual desintegração.
E de usá-la.''
Martin, acorde! Quanto mais ainda vai dormir?
É hora de nadar! Levante-se!
-Que horas são? -Quase 10:00.
Dormi tanto tempo assim?
-Sua diabinha! São 5:00. -E daí?
Acordei faz tempo e passei por situações estranhas...
enquanto você dormia.
-Venha cá. -Levante-se. Nós vamos nadar.
Papai e Minus estão puxando as redes.
Venha cá.
Você dorme demais.
É isso que faz de você o Sr. Sabe Tudo.
Minha pequena, qual é o problema?
Nada.
O que houve, Karin?
-Tenho uma confissão a fazer. -Fale logo, então.
Quando Papai saiu...
eu mexi nas coisas dele.
Não sei por que, senti que era preciso.
E?
-Encontrei o diário dele. -E?
-Ele escreveu umas coisas... -Por exemplo?
Sobre mim.
O que ele escreveu?
Não posso dizer.
Era sobre a sua doença?
-É verdade que não tem cura? -Querida Karin, ouça.
Ouça.
Olhe para mim.
Eu disse ao David que você podia ter uma recaída.
Ele deve ter entendido mal.
Ninguém pode dizer que sua doença é incurável.
-Palavra de honra? -Palavra de honra.
Calma.
Havia mais.
O quê?
Não posso dizer.
-Por favor. -Não posso.
Pergunte a ele.
Karin, pequena Karin.
Martin?
Precisa ter paciência comigo.
Aposto que voltarei a ter desejo.
-Você não acha? -Sim.
-Isso preocupa você? -Nem um pouco.
Ouça, estou muito cansada...
mas ainda acho que devíamos ir nadar.
Não está frio.
Martin?
Imagine ter uma esposa estável que lhe dê filhos e traga café na cama.
Doce, calorosa e linda.
Não seria bom?
-É você que eu amo. -Claro, mas mesmo assim.
Não quero outra pessoa.
Engraçado. Mesmo sempre dizendo e fazendo a coisa certa...
acaba dando errado.
Se o faço, é por amor.
Aquele que ama de verdade sempre trata o seu amor corretamente.
Nesse caso, você não me ama.
Tchau, Minus.
Tchau!
Não deixe o Martin dormir sobre os livros de latim.
-Vou tomar as lições dele. -Tchau, minha menina.
Não se esqueça do conhaque. Traga também um vinho branco.
-Você leu a minha mente. -Tchau, querido.
Voltaremos para o jantar.
Por que diabos está rindo?
Então?
Diga alguma coisa.
Pode ver, se acha tão divertido.
Quais são as suas favoritas?
Não seja tão ''recatado''! Venha me mostrar!
Gosta mais desta? Por quê?
Ela é tão suave...
E bonita, também! Mas não é um pouco gorda?
-O cabelo é longo... -Não parece inteligente.
Mas não me ajuda em nada!
Você vai me bater?
Foi culpa minha. Me desculpe.
Calma, Minus.
Não importa. Não se preocupe.
Foi uma curiosidade boba, me perdoe.
Não é a minha intenção, apenas acontece.
-Você estudou? -Mais ou menos.
-Vamos fazer um ***? -Se quiser.
-Imagino se estão todos enjaulados. -O quê?
Você na sua jaula, eu na minha. Cada um em sua prisão.
Todos nós.
Eu não me sinto enjaulada.
Então estou enganado, como sempre.
''Constructio ad sensum''. O que significa?
Não!
Significa que uma construção gramatical correta é modificada...
em prol do contexto.
Por exemplo?
''Nobilitas rem publicam deseru...''
''Deseruerant''.
-Que calor! -Estou acordado desde 4:30!
Vamos fumar um cigarro. Você tem?
Se olhar fixamente com a cabeça inclinada para um lado...
-vai sentir caIafrios. -Calafrios?
Mas é fascinante.
Não falo com Papai ou Martin sobre isso. Eles não entenderiam.
Especialmente Martin. Ele é ansioso e já tem muitas preocupações.
Eles não entendem. Acham apenas que estou doente.
-Você também acha? -Não.
Eu sabia que não.
Você é mais forte.
Faz tempo que quero falar com você sobre isso. É como...
Pode confiar em mim.
É difícil não falar sobre algo que está sempre na sua mente.
Mas acho que não se importariam por eu falar com você.
Quem?
Não me venha com essas perguntas idiotas.
Ou eu digo o que eu quiser, ou está acabado.
-Estou curioso. -Isso já basta.
Vou lhe mostrar uma coisa.
Eu consigo atravessar a parede, está vendo?
De manhã, sou acordada por alguém que me chama, com a voz firme.
Eu me levanto e venho para este quarto.
Um dia, fui chamada por alguém atrás do papel de parede.
Eu olhei no armário...
mas não havia ninguém.
Mas a voz continuou me chamando...
então pressionei meu corpo contra a parede e ela se abriu...
e eu entrei.
Acha que estou inventando?
Entrei em um cômodo amplo...
iluminado e tranqüilo.
Pessoas indo e vindo.
Algumas falam comigo, e eu entendo o que dizem.
É tão gostoso, sinto-me segura.
Há uma luz que brilha.
Estão todos esperando pela minha chegada...
mas ninguém está ansioso.
Vou gostar de estar lá quando acontecer.
Por que está chorando?
Por nada.
Não há com que se preocupar.
Mas, às vezes, sinto uma ansiedade tão intensa...
Eu anseio por esse momento...
em que a porta se abrirá...
e todas os rostos se voltarão para ele.
Quem está chegando?
Ninguém me disse ao certo.
Mas acho que Deus se revelará para nós.
Será Ele que virá até o quarto...
através daquela porta.
Minus...
tenho uma coisa difícil a dizer a você.
-O quê? -Eu evito o Martin.
Ele está lá, me chamando, mas não posso ajudá-lo.
Parece até um jogo.
-Ele percebe alguma coisa? -Não sei.
Tenho que escolher entre ele e os outros.
Eu já me decidi.
Sacrifiquei o Martin.
-Isso tudo é real? -Eu não sei.
Eu não sei.
Estou no meio disso e não tenho certeza.
Sei que estive doente e que minha doença era feito um sonho.
Mas não são sonhos. Deve ser real, deve ser real.
Para mim, não é real. Nem um pouco.
Karin...
-isso não é real para mim. -É, sim!
Uma Entidade desce da montanha.
Ele anda pela mata escura.
Há bestas selvagens na escuridão silenciosa.
Deve ser real.
Eu não estou sonhando, estou dizendo a verdade.
Às vezes, estou neste mundo, às vezes, no outro.
Não consigo evitar.
Vamos nadar?
Então, vou sozinho.
Estou com sono.
Vou dormir um pouco.
Feche a porta quando sair.
Pare com isso!
Saia! Saia!
O que vou fazer?
Você já fez a sua lição?
Vamos continuar.
Mas antes, vamos tomar um chá.
Minus?
Vai contar ao Papai e ao Martin?
Contar o quê?
Boa resposta, mas você não me engana.
Vai chamar o Martin e dizer...
''Temos que conversar sobre a Karin.'' E então vai lhe contar tudo.
-Por que você não conta? -Prometa que não vai falar.
Eu prometo.
Você é o único que me entende.
Se disser uma palavra, estará me traindo.
Eu prometo.
-Parece que vai chover. -Você acha?
-O que há com você? -Como assim?
Está quieto, quase hostil.
-Não vale a pena dizer. -Por favor.
-É sobre a Karin. -A Karin?
Ela mexeu na sua escrivaninha e encontrou o seu diário.
E o leu, é cIaro.
Não.
O que você escreveu?
Karin pediu que eu perguntasse.
Escrevi que a doença dela é incurável.
E que meu impulso era registrar o progresso da doença.
Não há a quem mais culpar.
Isso não tem desculpa.
É sempre sobre você e suas coisas.
A sua insensibilidade é perversa.
''Registrar seu progresso!'' Típico!
Você não entende.
Não, não entendo.
Mas entendo uma coisa.
Está sempre à procura de tópicos.
A insanidade da sua filha. Que ótima idéia!
Eu a amo, Martin.
Você a ama? Você não tem sentimentos.
Nem decência você tem.
Você sabe se expressar bem, sempre encontra as palavras certas.
Mas há uma coisa sobre a qual você não entende nada.
A vida.
Você é um covarde.
Mas um gênio em se tratando de evasões e desculpas.
-O que quer que eu faça? -Escreva o seu livro.
Talvez ele lhe traga o que seu coração deseja.
A sua obra-prima como escritor.
Aí, não terá sacrificado a sua filha em vão e...
Vá...
em frente.
Em seus livros, está sempre cortejando algum deus.
Mas ouça...
a sua fé e a sua dúvida não convencem.
Apenas a sua engenhosidade é aparente.
Acha que não sei disso?
Então por que continua? Por que não opta por algo respeitável?
Por exemplo?
Alguma vez em sua carreira escreveu uma palavra verdadeira?
-Não sei. -Viu?
As suas meia-verdades são tão precisas que até parecem verdades.
-Eu faço o que posso. -Talvez sim.
Mas fracassa.
Eu sei.
Você é vazio, mas esperto.
E está tentando preencher esse vazio com a extinção da Karin.
Mas não sei como poderá trazer Deus a essa questão.
Ele pareceria ainda mais inescrutável.
-Posso fazer uma pergunta? -Claro.
Sempre consegue controlar seus pensamentos mais profundos?
Felizmente, não sou muito complexo.
Meu mundo é bem simples. Claro e humano.
Mas desejou que a Karin morresse?
De jeito nenhum.
Apenas você pensaria tal coisa.
Pode jurar que nunca pensou nisso?
Seria lógico.
Sabe que seu caso é irremediável...
e que o sofrimento de vocês é inútil.
-Se morrer, dá na mesma. -Você é grotesco.
Isso depende do ponto de vista.
Eu a amo.
Estou impotente.
Só posso ficar a observar...
enquanto ela se transforma em um pobre animal atormentado.
Vou lhe dizer uma coisa.
Quando estava na Suíça, eu decidi me matar.
Aluguei um carro e encontrei um penhasco.
Eu me preparei calmamente.
Era fim de tarde, o vale já estava escuro.
Eu estava vazio. Sem medo, remorso ou expectativas.
Mirei o carro para o penhasco, pisei no acelerador e o carro morreu.
O carro morreu.
O carro deslizou nos cascalhos e de repente parou...
as rodas dianteiras sobre o penhasco.
Eu saí rastejando, trêmulo.
Eu me apoiei em uma rocha à beira da estrada.
Fiquei horas recuperando o fôlego.
Por que está me dizendo isso?
Para que saiba que eu não quero mais mentiras.
A verdade não causará uma catástrofe.
Isto não é sobre a Karin.
Acho que é.
Eu não entendo.
Neste vazio dentro de mim, nasceu algo que não compreendo...
cujo nome não sei.
Um amor.
Por Karin. E Minus.
E você.
Um dia, talvez eu conte tudo.
No momento, não ousaria.
Mas... se for como eu espero que seja...
Por enquanto, chega.
Vai chover.
Não.
Sim.
A chuva está chegando.
Karin!
Karin?
Karin?
Karin?
Karin?
Karin, é você?
Karin?
Karin?
Sou eu, Karin.
Karin?
Karin!
Não pode me ouvir, Karin?
Eu não estou bem.
-Vamos para casa. -Você precisa me ajudar.
Como?
Você precisa me ajudar.
-Tenho tanta sede. -Eu vou buscar água.
Deus.
Que horas são?
5:00, eu acho.
Eu estava me sentindo mal...
mas estou melhor, agora.
-Pobre Minus. -Karin, minha querida.
-Quero falar com Papai a sós. -Vamos para casa.
Tenho que falar antes da chuva voltar.
-Querida... -Por favor.
Eu vou chamar uma ambulância.
Por favor, busque a minha maleta.
Tenho que aplicar uma injeção nela.
Papai...
Quero ficar no hospital, agora.
Não quero mais tratamentos.
Pode dizer a eles que não quero mais?
Eu não sei.
Não posso viver em dois mundos. Tenho que escolher.
Não posso ficar perambulando entre os dois.
Isso não pode continuar.
O quê?
O ódio.
Que ódio?
Eu não o fiz por vontade própria.
Uma voz me disse o que fazer.
A voz lhe disse para ler o meu diário?
E para contar ao Martin o que havia lido.
Fiz pior do que isso.
Muito pior.
Eu tentei resistir....
mas não consegui me livrar.
Fui forçada a fazer isso.
Quando?
Agora.
Pobre Minus.
Eu não entendo! Eu não entendo!
Tente se acalmar, Karin.
E aquele quarto, com eles esperando.
Esses rostos iluminados esperando que a porta se abra...
e que Deus vá até eles.
E então a voz aparece...
e preciso fazer o que me pedem.
Eu não consigo entender.
Será que é só a minha doença?
Papai...
é terrível ver sua própria confusão e não entendê-la.
Eu quero me desculpar.
Sempre me senti culpado, por isso me afastei de você.
Fico doente de pensar na vida que sacrifiquei peIa minha tal arte.
Fiquei famoso na época em que sua mãe morreu.
E isso foi mais importante do que a morte dela.
Eu estava secretamente feliz, mas eu a amava desse meu jeito confuso.
Quando fiquei doente, você foi para a Suíça.
Não suportei ver que havia herdado a doença dela, e fugi.
Tinha que terminar o meu livro.
Ele é bom?
Sabe, Karin...
traçamos um círculo imaginário ao nosso redor...
para afastar aquilo que não faça parte do nosso jogo secreto.
Cada vez que a vida rompe esse círculo...
os jogos se tornam insignificantes e ridículos.
E então construímos um novo círculo e novas defesas.
Pobre Papai.
Sim, pobre Papai, forçado a viver na realidade.
Vamos para casa.
Tenho que fazer as malas.
-Quando a ambulância vai chegar? -Daqui a uma hora.
Só quero me trocar e fazer as malas.
Pode deixar, obrigada.
A luz está tão forte.
Precisa ajudar o Minus com o latim, Papa.
Sim.
Não podemos esquecer as chaves de casa. O porteiro está de férias.
-Não vai voltar para cá? -Não, ficarei na cidade.
Acho que é melhor.
Não fomos pegar cogumelos.
Me ajuda a fazer as malas, Martin?
Claro.
Minus!
Minus! Quero falar com você.
Minus!
Venha cá.
Lavei suas camisas, mas não passei.
Vou usar esta. Tenho outras na cidade.
Pode me ajudar a fechar?
São os sapatos.
-Vamos deixá-los aqui. -Use estes e deixe aqueles.
Vou levá-los ao sapateiro.
Tem remédio para dor de cabeça?
-Achei que a maleta estava aqui. -Não, está na cozinha.
Certo.
Viu a Karin?
Não.
Vim o mais rápido que pude, mas não foi fácil.
Muita gente ia querer me deter.
Estou tão feliz.
Sim, eu entendo.
Eu entendo.
Sim.
Que bom.
Sim, eu entendo.
Sim, eu entendo.
Sei que não falta muito, agora.
É um alívio saber disso.
Mas a nossa espera foi uma espera feliz.
Martin, não faça barulho.
Disseram que chegará logo.
Temos que nos preparar.
Vamos para a cidade.
Não posso ir agora, não vê?
Você está enganada.
Nada vai acontecer, aqui.
Ninguém vai entrar por aquela porta.
Ele vai chegar a qualquer momento e eu tenho que estar aqui.
Querida, não é verdade.
Se não pode ficar quieto, é meIhor sair.
-Venha cá. -Por que tem que estragar isto?
Vá embora e me deixe viver este momento só.
Querido Martin...
sinto muito ter sido tão rude.
Pode se ajoelhar ao meu lado...
e cruzar as mãos?
Você parece tão conspícuo sentado aí.
Sei que não acredita...
mas faça isso por mim.
Karin...
meu amor.
Meu amor.
Meu amor.
Calma.
Segure as pernas dela.
Calma, Karin.
Eu fiquei com medo.
A porta se abriu.
Mas o deus que apareceu era uma aranha.
Ele veio em minha direção...
e eu vi o seu rosto.
Era um rosto terrível, impassível.
Ele veio rastejando, tentou entrar dentro de mim...
mas eu me defendi.
O tempo todo, eu via seus olhos.
Eram frios e calmos.
Quando ele não pôde penetrar em mim...
ele subiu pelo meu peito...
pelo meu rosto, e subiu na parede.
Eu vi Deus.
Espere no píer, sairemos assim que possível.
Eles vão aguardar no píer.
Papai...
Eu estou com medo.
Quando eu estava abraçando a Karin, lá no barco...
a realidade se revelou a mim. Entende o que quero dizer?
-Entendo. -A realidade se revelou...
e eu desmoronei. É como um sonho.
Qualquer coisa pode acontecer. Qualquer coisa.
Eu sei.
-Não posso viver neste novo mundo. -Pode, sim.
Mas precisa ter algo em que se apoiar.
E o que seria?
Um Deus?
Me dê uma prova da existência Dele.
-Não pode. -Posso.
Mas precisa ouvir com atenção.
Sim, eu preciso ouvir.
Só posso dar a você uma idéia da minha própria esperança.
É saber que o amor existe de verdade no mundo humano.
-Um tipo de amor especial, suponho? -Todos os tipos.
O maior e o menor, o mais absurdo e o mais sublime.
Todo tipo de amor.
E o desejo por amor?
O desejo e a negação.
Confiança e desconfiança.
Então o amor é a prova?
Não sei se o amor é a prova da existência de Deus...
ou se é o próprio Deus.
Para você, amor e Deus são a mesma coisa.
Esse pensamento ameniza o meu vazio e meu desespero sórdido.
Fale mais, Papai.
De repente, o vazio se transforma em abundância...
e o desespero em vida.
É como a suspensão temporária...
de uma sentença de morte.
Papai...
se for como você diz...
então Karin está rodeada por Deus, já que a amamos tanto.
-Sim. -Isso não pode ajudá-la?
Acredito que sim.
Papai...
se importa se eu for correr?
Pode ir. Eu preparo o jantar.
Vejo você em uma hora.
Papai falou comigo.