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UMA SIMPLES FORMALIDADE
Vai pegar uma pneumonia, senhor.
Seus documentos, por favor.
Não...não estão comigo.
Devo tê-los deixado...
Pegou uma bela pneumonia, senhor.
Assim sentirá menos frio.
Vou ficar muito tempo nesta espelunca? Assim vou mofar!
Acalme-se. O comissário já foi avisado.
Está a caminho.
Pelo menos está abrigado.
Ainda me goza?
Parece um filme americano. Quando lerão meus direitos?
Tire os sapatos, se quiser.
Mijei nas calças.
Isso costuma acontecer...
...com os velhos.
Não é?
Preciso dar um telefonema.
Lamento, mas não pode.
O que quer dizer?
Preciso avisar que chegarei mais tarde.
Não insista. Peça ao comissário, quando ele chegar.
É exatamente o que farei. E lhe direi...
...como estão me tratando.
Ele vai se dar mal. Eu não sou um desconhecido!
Eu não o conheço, senhor!
Mas seja quem for, ninguém aqui tem tratamento especial.
Ponha isso na cabeça.
Diga o que quiser ao comissário.
Quem será ele?
Será que alguém pode me dizer as horas?
São 21:15.
21:15...
Merda!
Oh, merda, como é tarde!
Quer parar com essa ladainha? É insuportável!
Sente-se! E fique quieto!
Desculpem.
Desculpem.
É que amanhã de manhã tenho um encontro muito importante...
...com o Ministro da Cultura.
Preciso me preparar. Não posso faltar.
Já disse que o comissário está chegando.
Podem me dar um cigarro?
- Arranjem-lhe um cigarro. - Eu nunca fumei, capitão.
Nem eu.
Espero que o comissário fume.
Um comissário sempre fuma.
Um comissário fuma cachimbo... mastiga charuto.
Beba, vai lhe fazer bem.
Coragem.
Beba.
Está quente, beba.
- É leite? - Sim, é leite quente.
Vai lhe fazer bem.
Beba.
Beba.
Monte de merda!
Isso é ruim.
Não estava no programa.
Com um tempo desses, preferia estar na cama.
Ele está acordando.
Tente se levantar.
Ajudem-no.
Eu me viro sozinho.
Podem deixar.
Suponho que seja o comissário.
Excelente suposição.
Deve-me muitas explicações, comissário.
Com que direito seus homens praticamente me raptaram...
...impediram-me de falar com meus familiares...
...e me trataram como um animal?
Responda-me!
Eu lhe fiz três perguntas simples!
Sou eu que faço as perguntas.
E foi você o único responsável pelo incidente.
Lamento o atraso, eu costumo ser pontual.
Que se dane sua pontualidade.
E não é um prazer conhecê-lo.
Só quero saber por que estou aqui.
Vou tentar satisfazer sua curiosidade.
Mas antes quero saber quem é você.
Uma vez que sai para passear no campo, de noite...
...no meio de um temporal, sem capa, sem guarda-chuva...
...e sem documentos!
Não creio que seja delito ou crime estar sem documentos.
Devo tê-los deixado na carteira, na escrivaninha...
Sim, claro.
-...em outro paletó, talvez. - Com certeza.
Mas com quem tenho o prazer de falar?
Um caminhoneiro, um boxeador, um dentista, um astrólogo...
Quem sabe um juiz, visto que distingue delito de crime?
Antigamente as pessoas me reconheciam de imediato.
Mas eu não costumo me amparar na celebridade.
Bem...
...meu nome é Onoff.
E o meu é Leonardo da Vinci.
Não acredita em mim?
É um direito seu.
Mas não tem o direito de...
...prender as pessoas só porque estão passeando na chuva.
A chuva incomoda tanto assim...
...Leonardo da Vinci?
Eu sou Onoff.
Se não acredita em mim, mande verificar meus documentos.
É seu trabalho, não?
Eu moro no Recanto Corone. Devem estar no estúdio...
...na mesa da cozinha, na minha jaqueta ou na cama.
"Até hoje eu duvido de ter vivido aqueles dias...
...de ter estreitado aquela amizade...
...de ter conhecido quem me surgira diante dos olhos.
Um corpo que precisava de um sopro." Escrevi essas páginas.
"Seus olhos vazios precisavam de uma luz...
...e seus lábios, um último lamento.
E esse sonho precisava de um dormente..."
Muito interessante sua lengalenga. E bem declamada.
Mas não me impressiona. E nem sei o que quer dizer.
O que chama de lengalenga é uma citação...
...de um famoso romance, cujo autor se chama Onoff.
Onoff!
Você é mesmo azarado... muito azarado.
Ao se viver num lugar desses, onde nada acontece...
...sobra muito tempo para ler.
E eu leio muito.
Dias inteiros, semanas inteiras.
Um número incontável de livros.
Nem pode imaginar quantos.
E costumo ler mais de uma vez os que me agradam mais.
"Palácio das Nove Fronteiras", "Os Degraus"...
"O Ódio", "Geometria"...
"Os Tratados do Prazer", "Nero", "As Três Tochas"...
...são todas obras de Onoff, meu escritor predileto.
Na minha modesta opinião, o melhor.
Acho que você se deu mal.
Conheço a biografia de Onoff como ninguém.
Como vê, caro amigo...
...passear à noite sob um temporal, não é grave.
Esquecer a identidade em outro paletó é só um contratempo.
Tentar furar um bloqueio policial...
...ainda que desengonçado e agredindo dois policiais...
...já é mais arriscado.
Mas fazer tudo isso num curto espaço de tempo...
...e ainda declarar falsa identidade...
...é muito perigoso!
André!
Às suas ordens, comissário.
Acho que não será demorado. Quem está ganhando?
Eu. Estou com 45 pontos. Mas ele tomou Xangai.
Não importa. Xangai não tem valor algum.
Que jogo absurdo!
Prepare-me um café.
Levante-se.
Como se chama?
Sem muitos rodeios. Diga seu nome.
Diga-me como se chama.
Por Deus, diga-me o seu nome!
"Estava perto do armário...
...quando o carro da sra. Oneiras estacionou no pátio.
A camareira precipitou-se...
...para abrir-lhe a porta.
Cumprimentou-a e depois correu diante dela.
A senhora subiu as escadas.
Era muito bonita.
Do bolso da longa saia tirou um pedaço de peixe cozido...
...e começou a comê-lo.
Comia olhando para a frente sem ver nada.
Quando a senhora chegou...
...ele desencostou do armário e foi em sua direção.
Mas a senhora nem olhou para ele. Seguiu reto e...
...passou ao seu lado, como se ele não existisse."
O pedaço de arenque no bolso da saia.
É um trecho de "Os Degraus".
O momento em que a sra. Oneiras quer deixá-lo.
É na metade do livro.
Não é "Os Degraus"...
...é "As Escadas", comissário.
"As Escadas".
Terceiro capítulo, o retorno do druso.
"Declarar falsa identidade é perigoso". Leonardo da Vinci!
O discurso do Príncipe Cosme antes de pegar as faianças.
"É por isso que os segui até aqui.
O parque está cheio de homens ajoelhados.
E de dançarinos caídos."
"Por isso que dos ângulos dos afrescos aos muros vêem-se..."
"Figuras agachadas que defecam na sombra."
Confere?
Diz que conhece minha biografia de cor.
Tenho 48 anos.
Escrevi ensaios, romances, canções e óperas teatrais.
A última, "Nero", foi dirigida por mim... e mal.
Faz seis anos que não publico nada... Satisfeito?
Onoff!
O grande Onoff!
Como não o reconheci de imediato?
Eu não sei como me desculpar.
Permita-me apertar a sua mão.
Estou consternado pela maneira indigna que o acolhemos.
Não é preciso dramatizar.
Está todo molhado! Vamos, tragam roupas secas!
E também sapatos! Depressa!
Quer um café?
-Outro café! -Está bem.
Posso dar um telefonema?
Mas é claro!
Só que... vejamos...
As linhas estão ocupadas.
Mas como foi possível...
...eu não tê-lo reconhecido?
Já vi seu rosto uma infinidade de vezes.
Bem, sabe, a televisão deforma tudo.
Escondem os rostos, ao invés de mostrá-los.
É verdade!
Mas o que faz alguém como você por essas paragens?
Tenho uma casa nas montanhas, perto do rio...
-...onde às vezes... -Mulheres, hein?
Se é o que pensa...
Perdoe a indiscrição, eu não queria me intrometer...
Infelizmente, eu venho muito pouco.
Só para trabalhar em paz e me concentrar.
Um novo livro!
Está escrevendo um novo livro?
-Diga que eu adivinhei! -Bem, mais ou menos.
Está aqui há muito tempo?
Três ou quatro dias.
Cheguei na quinta-feira, hoje é domingo...Quatro dias.
A barba! Como não percebi antes?
Você sempre usou barba! Eis por que não o reconheci logo!
O café, comissário!
Obrigado.
Com licença, eu lhe trouxe sapatos. Abra, por favor.
Sim, claro...Já vou abrir.
São as botas do jardineiro.
Ficarão largas, mas estão secas.
Oh, não importa. Obrigado.
Desculpe o que fiz há pouco. Como está a mão?
Não se preocupe, eu vou sobreviver.
Obrigado pelas botas.
Obrigado por sua consideração pelo meu trabalho.
Não, não... Eu é que devo lhe agradecer.
Não pode imaginar como estou feliz por conhecê-lo...
...por apertar as mãos de quem criou os mundos...
...nos quais eu adorei viver.
Sem querer abusar, gostaria que me levasse para casa.
Oh, naturalmente.
Quero devolver o uniforme e as botas.
É claro, mas...
Bem, na verdade não sei como dizer.
Ah, os documentos! Eu os mostrarei.
-Não se trata disso. -O que é, então?
Eu lhe asseguro que não é nada sério.
Só queria que ficasse mais um pouco.
Se acha que é necessário, tudo bem.
Quero apenas lhe fazer algumas perguntas. É uma formalidade.
Não vai demorar muito.
Eu lhe agradeceria. Estou cansado.
Não precisava telefonar?
Dê-me o número. Mandarei ligar.
Nove, três, seis, três, três, três, nove, seis.
9-3-6-3-3-3-9-6. É fácil de decorar.
É o número da sua casa?
Não... É o telefone de uma amiga.
André!
Faça essa ligação no direto.
Nove, três, seis, três, três, três, nove, seis.
9-3-6-3-3-3-9-6.
Posso saber do que se trata seu novo livro?
Não é uma entrevista, espero.
Se me conhece tão bem, sabe que há anos não concedo uma.
Sim, é claro que eu sei.
Mesmo sem entender bem a razão.
As entrevistas são inúteis.
As pessoas vêm escutar o que já sabem...
...só pelo prazer de ouvir repetir. Não é ridículo?
De certa maneira, sim.
Mas não é o meu caso.
Eu gostaria que me contasse tudo o que fez hoje.
Nesse domingo.
Eu lhe asseguro que não sei.
Então, não é uma entrevista, é um interrogatório.
Chame do que quiser. Mas por favor, procure me ajudar.
Não é fácil perguntar certas coisas a alguém que se admira.
-Então, não pergunte. -Tenho que fazê-lo.
É preciso.
É de seu interesse.
Como pode ver, estamos a sós. Não será tomado nota de nada.
Diga exatamente o que fez hoje...
...e prometo mandar levá-lo para casa...
...e deixá-lo em paz.
Podem me arrumar um cigarro?
Lamento, aqui ninguém fuma. Não saberia...
Tudo bem, deixa pra lá.
Fuma muito?
Três maços por dia. Às vezes mais.
E hoje?
Hoje devo ter batido meu recorde.
A que horas acordou esta manhã?
Às 3:30.
Como pode ser tão preciso?
Acordo todos os dias às 3:30 da manhã.
Por que tão pontual?
Eu durmo pouco.
Uma hora e meia. No máximo duas.
Faz uns dez anos que acordo a essa hora.
Como a protagonista de "Geometria".
Exato. Como a protagonista de "Geometria".
-Isso já é mania. -Tenho que admitir.
E confesso que fiquei muito surpreso, quando há pouco...
...não reconheceu a citação. "E seus lábios, um último lamento."
Lembra do nome de todos que prendeu...
...interrogou ou colocou na cadeia?
Lembra dos rostos ou cor de cabelos?
Lembra de seus depoimentos?
Não creio. É impossível lembrar de tudo.
O trecho que citou poderia ser do "Palácio das Nove Fronteiras"
-...Quem sabe. -É isso mesmo!
O início do último capítulo.
É fantástico!
-Falávamos de insônia. -Ah, sim.
Eu também sofri de insônia durante anos.
Tentei todas as curas possíveis...
...e os remédios imagináveis.
Soníferos a mais não poder.
Nada resolveu.
Até que, anos atrás, de repente...
...sarei completamente, sem razão aparente.
Talvez lhe aconteça o mesmo.
Não preciso de soníferos ou remédios.
Eu convivo bem com a insônia.
É graças a ela que eu trabalho enquanto os outros dormem.
-Trabalhou também a noite passada? -Um pouco.
-Voltou a dormir? -Não.
Então...o que fez?
Fiquei olhando para o teto.
E o teto ficou olhando para mim.
Sozinho?
Quero dizer, estava só na cama?
É um investigador de extrema sensibilidade!
-Sim, eu estava só. -Sozinho...continue.
Levantei antes do galo cantar.
Coloquei o roupão, calcei os chinelos...
...e fui para a cozinha.
Tomei um café com uma colher de açúcar...
...e depois fui cagar.
Cocei a cabeça...
...tomei banho e me vesti.
Dei um telefonema.
Passei a limpo o que escrevi ontem...
...e pensei no que escreverei amanhã.
Então fui dar uma caminhada.
Depois voltei para casa...
...e coloquei ordem no sótão.
E depois?
Depois...
...eu fui na estação buscar minha agente.
Como se chama sua agente?
-Daniela. -Daniela de quê?
Daniela Febbraio.
Então, foi à estação buscar Daniela Febbraio.
-Exato! -E depois?
Almoçamos e falamos sobre trabalho.
-À tarde levei-a de volta. -Para onde?
-À estação. -A que horas?
Entre 17:00 e 18:00. Ela partiu e eu voltei para casa.
-A que horas? -Deviam ser umas 19:00.
E depois?
-E depois... -E depois?
E depois?
Não me lembro muito bem.
Não se lembra...muito bem.
Não consigo lembrar de nada.
Não consegue lembrar?
Muito bem, acaba de deixar a estação e volta para casa.
São 19:00. E depois?
Eu...não consigo lembrar... de nada.
Não me lembro.
Mas isso é um absurdo!
Não lembra o que fez quatro horas atrás?
-Isso lhe parece normal? -É crime não lembrar?
Está querendo me gozar?
-Você está me gozando! -Já cansou, comissário!
O que importa o que eu fiz?
Por que iria gozá-lo?
Vamos começar tudo de novo.
As coisas mudam, caro Onoff.
Eu queria muito ajudá-lo.
Tenho uma grande admiração por você e suas obras.
Mas enquanto não chegar a um acordo com sua memória...
-...não sairá daqui. -De que serve sua ajuda?
O que passa por essa cabeça de policial provinciano falido?
Vamos lá...diga seu nome!
Como se chama?
É uma pergunta simples, caro Onoff!
Só responderei se me deixar telefonar.
Mas você não pode telefonar!
Ponha isso na cabeça!
Tenho o direito de ligar para o meu advogado.
Só falarei na presença do meu advogado!
Ouça, conheço muito bem os seus direitos.
Ah, é? Mas não faz outra coisa que negá-los!
"Peça ao comissário. Espere ele chegar."
Depois você: -"Dê-me o número, mandarei ligar no direto!"
Por que não posso ligar dessa delegacia de merda?
As linhas estão bloqueadas. Entende?
Em toda a minha vida de escritor...
...nunca me deparei com tamanha imaginação. Parabéns!
Ele está dizendo a verdade. Quando há temporal desses...
...as linhas telefônicas pifam. Aliás, não sei como não acabou a luz.
-Deviam ter dito antes! -Quando consertarem as linhas...
...será o primeiro a telefonar. Diga seu nome!
-Por quê? -Como assim?
-Por que o interrogatório? -Seu nome, por favor.
Por que o interrogatório, comissário?
Esta noite, perto da sua casa, houve um assassinato.
Por favor, sente-se.
Parabéns, comissário. Já achou o assassino.
Nem me passa pela cabeça que é um assassino.
Mas se insiste em dizer que...
...não se recorda o que fez esta noite depois das 19:00...
...serei obrigado a suspeitar de você.
Qual o seu nome? Responda!
Eu me chamo Onoff.
-Local e data de nascimento. -3 de fevereiro de 1946...
-...em Vercéré. Profissão?
-Escritor. -É casado?
-Duas vezes. -Como assim?
Minha primeira esposa morreu logo depois do casamento.
Em que circunstâncias?
Câncer!
-Quando casou de novo? -Divorciei-me há 9 anos.
-Filhos? -Nenhum.
-Antecedentes criminais? -O que quer saber?
Quantas vezes roubei, as taxas que não paguei?
Ou os homicídios que já cometi?
Nega ter antecedentes criminais?
O que veio fazer aqui?
Eu já lhe disse antes.
Vim à minha casa para me concentrar no trabalho.
Longe de todos...
...distante do mundo...
...e dos comissários de polícia.
-E veio trabalhar sozinho? -Um momento, comissário.
Estava só quando chegou à sua casa?
-E com quem estava? -Com minha esposa.
Casou-se pela terceira vez?
Com a minha ex-esposa.
A minha segunda ex-esposa, se preferir.
-Vocês se reconciliaram? -Não, mas nos vemos...
...com freqüência. Digamos que nos tornamos bons amigos.
Quantos quartos há na casa?
Minha ex-esposa e eu dormimos juntos, se é o que quer saber.
Então, quando acordou às 3:30 da manhã...
...e fitou o teto, não estava sozinho.
Parece-me evidente.
-E por que disse que estava só? -Eu não disse isso.
-Meça suas palavras. -Não agora, antes.
Você me disse que acordou antes do galo cantar.
-E que estava sozinho! -Devo ter me enganado.
No fundo, estamos sempre sós.
Há quantos dias está na sua casa?
-Há nove dias. -Como pode ter certeza?
Como assim? Se digo que são 9 dias, é porque são 9 dias!
Antes havia dito 4 dias.
-Eu lhe disse 4 dias? -Sim, disse 4 dias!
Eu nem percebi.
Perco a noção do tempo quando trabalho.
Por isso se trabalha. Para perder a consciência.
Preste bem atenção, meu caro Onoff.
Que se contradiga nas suas poesias e romances, tudo bem.
Mas contradizer-se quando se trata de um assassinato...
...não é nada legal!
Se continuar assim, vamos nos afogar.
Já vamos cuidar disso, comissário.
Como podem viver num lugar desses?
Como vivemos num lugar desses!
Quando quiser, comissário. Estamos prontos.
-Com licença... -Pois não?
Diga.
Eu tinha visto umas garrafas no armário.
Parecia vinho. Será que eu poderia...
É um vinho ótimo!
E dizem que é milagroso.
Pode beber.
Obrigado...Obrigado.
-É bom, não? -Sim, é muito bom.
Beba mais. Vale como uma comemoração.
Feliz aniversário, mestre. Hoje é dia 3 de fevereiro.
Sim, é verdade.
É o meu aniversário.
Posso fazer-lhe uma pergunta?
É só isso que fazem por aqui.
Lembra-se que se zangou quando eu assobiava?
Perdoe-me, não era nada com você. Eu sinto muito.
Vamos dar-lhe uma mão!
Eu sei que sou meio desafinado...
...mas reconheceu a canção, não?
É claro que a reconheci.
Congratulações, é uma canção linda.
Quantas vezes deve ter ouvido isso por aí.
Mas para mim aquela canção é como uma parte da minha vida.
O que eu lhe disse, da luz, quando chove.
Sente-se aqui e fique quieto.
André! Onde estão as velas?
As velas estão por aí. Vá procurar. Depressa!
Mestre?
Mestre?
Vou lhe dar mais vinho... Onde pôs o copo?
Socorro!
Céus!
Abra, André! Abra!
O que houve?
-Como se chama? -Onoff.
Local e data de nascimento.
Em Vercéré, dia 3 de fevereiro.
-De que ano? -1946.
-Profissão? -Escritor.
-É casado? -Duas vezes.
-Filhos? -Nenhum.
Há quantos dias chegou à sua casa nas montanhas?
Quatro.
Antes havia dito 4. Depois 9. E agora, quatro de novo.
Quatro.
Chegou com alguém?
Com a minha segunda ex-esposa.
Como se chama sua segunda ex-esposa?
Daniela.
-Daniela de quê? -Daniela Febbraio.
-Não era sua agente? -Dá na mesma.
Como assim?
Minha segunda ex-esposa é a minha agente.
Foi ela que você levou à estação?
Sim.
-A que horas? -Antes de escurecer.
O que fez depois?
Fiquei em casa.
Ficou em casa ou voltou para casa?
Repito que fiquei em casa o dia todo.
O dia todo...
Pode me dar vinho?
Se ficou o dia todo em casa...
...como pôde acompanhar Daniela Febbraio à estação?
Eu não a acompanhei. Ela foi sozinha.
E depois que ela partiu, quem foi até a sua casa?
Ninguém.
-Tem certeza? -Eu fiquei sozinho.
E não saí a noite toda.
Por favor, acredite.
E o que fez depois da partida da sua...agente?
Responda. O que fez depois que sua agente partiu?
Não lembro o que fiz depois.
Mas disse que não saiu o dia todo.
Sim.
Como pode saber, se diz não lembrar o que fez depois?
O que eu fiz depois?
Podemos dizer que, até onde se lembra, ficou em casa?
Sim.
É possível, portanto que tenha saído...depois?
Não consigo me lembrar.
Não precisa lembrar de mais nada!
Só precisa me confessar que me contou um monte de lorotas!
Primeiro disse que chegou à casa sozinho...
...recebeu a visita da sua agente...
...e a acompanhou à estação entre as 17:00 e 18:00.
Depois, diz que chegou em companhia da esposa.
Aliás, ex-esposa.
Segunda ex-esposa, que também é sua agente.
Mas não a acompanhou à estação. Ela foi sozinha.
Meu caro Onoff...
...naquela estação...
...não existe um único maldito trem...
...que tenha parado sequer um minuto...
...desde que chegou à sua bela casa.
Pela simples razão que nunca houve uma estação.
Nunca!
Não é digno das obras que escreveu.
Seus romances, seus contos, suas poesias...
...e suas canções valem mais do que você.
Faço votos.
Diga toda a verdade.
Confesse.
Está cometendo o maior erro...
...de sua, imagino, pouco brilhante carreira.
Então, por que tentou fugir como um ladrão de galinhas?
Por que não prova sua inocência?
Por que não acaba com minhas suspeitas?
Eu lhe digo por que não o faz.
Porque esta noite cometeu um homicídio.
Nem sei se alguém foi morto.
E, se aconteceu, eu não sei onde.
E, se alguém realmente foi morto, não sei quem é.
Não sei se foi uma velha, uma cabra ou um espantalho!
Você não sabe coisa alguma!
Mas vai nos dizer quem é a vítima.
Acusa-me de ser um assassino, e quer saber quem é a vítima?
É você que deve dizer quem é a vítima!
Que raios de policial é você? Um doente? Um louco?
Nunca fui um bom policial, e acho que jamais o serei.
Mas na minha pouco brilhante carreira...
...cuidei de alguns homicídios.
Muitos, eu não soube resolver.
Em outros, cheguei a soluções que se revelaram equivocadas.
Em alguns casos, a sorte me ajudou...
...a raciocinar de maneira correta e...
...encontrar algum indício que ajudasse a desvendar o crime.
Poucas vezes cheguei à solução por meus próprios méritos.
Mas é a primeira vez que me deparo com um homicídio...
...cujo enigma é descobrir a identidade do assassinado.
E, infelizmente, não estou em condições de fazê-lo...
...pois sua vítima está com o rosto desfigurado...
...e não é possível identificá-la até amanhã.
Sabe o que eu acho?
Não.
Acho que você é o assassino.
Sim, você o matou...
...e um bode expiatório apareceu na hora certa!
-Como sabe que é um homem? -Que homem?
Você disse: -"Sabe o que eu acho? Acho que você o matou."
Está distorcendo minhas palavras!
Mas sabe que se trata de um homem.
Eu não sei de nada! Está tentando me confundir.
Sabe melhor do que eu se é um homem ou uma mulher.
Seja como for, não tem provas contra mim.
E não o será um simples lapso de memória.
Um simples lapso de memória!
"Para não morrer de angústia ou vergonha...
...os homens estão condenados a esquecer coisas ruins da vida.
E quanto mais ruins, mais depressa as esquecem."
É uma frase sua, meu caro Onoff!
Quem escreveu essa grande verdade deve ter feito...
...algo muito grave esta noite, para não se lembrar de nada.
Se os escritores soubessem quem repetiria suas frases...
-...cortariam a própria mão. -Seria um verdadeiro pecado.
Acredita em Deus?
No fundo, é ele o escritor supremo.
Se fosse levar em conta os medíocres que usam sua obra...
...teria que renunciar a muitas coisas.
Não é difícil crer em Deus. Já me aconteceu diversas vezes.
Mas em muitas ocasiões senti vergonha por ele.
Teria sido um ótimo escritor...
...se se limitasse a descrever as paisagens.
-Com licença, comissário. -O que há?
Não entendi bem.
Ele disse que Deus é um autor de irrelevante importância.
Por que se aborrece quando cito um livro seu?
Minha função é escrever, não ouvir falar dos meus livros.
E a linguagem não tem mais utilidade neste mundo.
Serve para os interrogatórios da polícia.
Agora entendo porque não publica nada há 6 anos.
Eu tinha pensado em outra crise criativa.
A que se refere?
Aos 3 anos de silêncio antes de "Palácio da 9 Fronteiras".
Já passou muito tempo, mas...
...lembro que os jornais falaram da crise.
Crise!
Um longo terror da página branca...Não é assim?
Muito bem!
Sabe da minha vida...
...mais do que eu mesmo posso lembrar.
Pode apostar.
Desapontado?
Confesso que sim.
Não é bom conhecer os próprios ídolos.
Vistos de perto percebe-se que eles têm espinhas.
Corre-se o risco de descobrir que produziram...
...suas grandes obras sentados numa privada...
...durante uma crise de diarréia!
Além de mim, tem muitos inimigos?
Claro que sim!
Um deles veio me insultar esta tarde.
Não sei como não o matei.
Já teve armas de fogo?
-Não. -Tem certeza?
Nunca tive nenhum tipo de arma.
Eu não sei atirar. Jamais atirei.
É inútil, comissário.
Seria melhor interrogar o cadáver que mandou esconder.
Por que diz que há um cadáver?
Eu o vi quando era tirado do furgão.
Como vê, só pode me acusar de ter agredido os seus homens.
O resto é balela. Não tem provas contra mim.
Não pode me acusar de homicídio. Disse não saber quem é a vítima.
Amanhã vou ver o Ministro da Cultura.
É melhor me liberar, caso contrário...
Está prestes a cometer outro crime.
Eu o aconselho a ficar calado.
Sente-se.
Seguirei seu conselho de ficar calado.
Caro Onoff...
...não descarto a possibilidade de não conseguir provar sua culpa.
E, de certo modo, torço para isso.
Mas não irá a nenhum encontro, com nenhum...
Você não irá a nenhum encontro com nenhum Ministro...
...até não me dizer o que fez ontem à noite.
Ainda que me diga que ficou o tempo todo...
...sentado numa privada devido a uma diarréia.
Quer que afastemos a mesa, comissário?
Vai nos manter acordados.
Acho que a noite será longa. Vamos continuar.
Sua ex-esposa casou de novo?
Vive com alguém?
Tem amante?
Seguirei seu conselho de ficar calado.
Por mais inverossímil que pareça...
...vamos supor que nenhum dos dois conheça bem o local...
...e que sua ex-esposa "não tenha ido à estação".
E sim, procurar uma estação.
Uma estação qualquer para partir.
Mas, e depois, como imaginava trazer de volta o carro?
Seguirei seu conselho de ficar calado.
Talvez sua ex-esposa tenha ido procurar a estação...
...acompanhada por outra pessoa.
Alguém que, depois, voltou para sua casa.
Quem?
Seguirei seu conselho de ficar calado.
Ou, simplesmente ela não partiu.
Talvez sua ex-esposa tenha lhe feito companhia.
Mas, nesse caso...
...onde estava indo, quando foi detido pelos meus homens?
Por que tinha corrido a ponto de estar sem fôlego pra falar?
Seguirei seu conselho de ficar calado.
9-3-6-3-3-3-9-6...
...é o número do telefone de sua ex-esposa?
Seguirei seu conselho de ficar calado.
Você pediu para ligar para esse número e...
...para se proteger, insinuou que a vítima podia ser um homem.
Para despistar.
A vítima é a mulher do 9-3-6-3-3-3-9-6?
E se não é ela...
...quantas quer que sejam as vítimas...
...de um solitário homem de sucesso fora de circulação?
Quantos o conhecem tão bem para encontrá-lo...
...nesse fim de mundo, onde já confessou que vem raramente?
O círculo não pode ser tão grande.
Um amigo?
Uma amante?
Um parente?
O chofer? Uma secretária?
Seu médico? Seu advogado?
Algum colaborador?
Um jornalista?
Um fotógrafo à procura de um furo?
Um estudante que o tortura há anos com perguntas idiotas?
O seu editor?
Quem entre esses foi visitá-lo ontem à tarde?
Seguirei seu conselho de ficar calado.
Você vem de família de militares. Seu pai foi um herói da guerra.
Você mesmo foi um oficial.
E vem me dizer que nunca teve uma arma entre as mãos?
Vai seguir meu conselho de ficar calado?
Basta! Pare com isso, Onoff!
Já chega. Pare!
Vamos virar o disco, Onoff?
Comigo não se brinca.
Se a sua biografia é conhecida no mundo, eu a sei de cor.
Foi parido num fosso, às margens de um campo.
Com os dentes, ela cortou o cordão umbilical.
Fez um nó e foi embora.
Deram-lhe o nome de Biagio Febbraio...
...porque foi achado numa fria noite de fevereiro...
...e era o dia...
...de San Biagio.
Biagio Febbraio sou eu.
A minha biografia é falsa...
...do início ao fim. Fui eu que a escrevi.
Um velho inventou para mim um nome próprio para um escritor.
O nome Onoff.
Ele se chamava Faubin.
Era o meu melhor amigo.
Foi ele que me tornou famoso.
Eu nunca estive no exército.
Não sei atirar.
Eu cresci...
...em um orfanato.
Lá, só nos davam leite.
Leite quente todos os dias. De manhã e de noite.
Eu odeio leite quente.
Paola, por favor, dê-me um café.
Prepare-me um café.
Eu tive um sonho...
Um sonho horrível.
Sonhei que matei meu editor.
Tinha recuperado o manuscrito e corria em sua direção.
Mas a sua casa era... uma delegacia de polícia.
Havia um comissário terrível...
...que sabia todos meus romances de cor.
Paola, traga-me uma folha antes que eu esqueça tudo.
Ah, Paola!
Nunca vi o comissário tão preocupado e sem ação.
A situação é terrível.
As provas...Isso vai acabar com o comandante negando...
O comandante. Eu não o suporto!
Faça de conta que ele não existe.
No fundo, é boa gente. Todos aqui são legais.
Preciso de tempo para me acostumar. Não pensei...
Que horas são?
São 3:30. Dormiu só uma hora.
Está com frio? Quer se aquecer?
Preciso de papel para fazer umas anotações.
Está bem.
Dê-lhe vinho quente.
Idéias para um novo livro?
Não se escreve por que se tem uma idéia...
...e sim, por não se saber fazer outra coisa.
Merda!
Merda!
-Estou mortificado. -Ao menos, cale-se.
Fique calado.
Quando eu contar, ninguém vai acreditar.
Como pode existir um lugar tão absurdo quanto este?
Concordo que não é o lugar ideal para alguém como você.
Não estamos bem equipados. pois não é uma cidade grande.
-Aqui só temos um bosque. -Eu trabalho aqui há 15 anos.
Sempre me dei bem.
Não voltaria para a cidade nem morto.
A máquina de escrever!
Posso usar sua máquina de escrever?
Sim, claro, me parece lógico.
Não. Bem, acho melhor pedir para o comissário.
É possível matar...
...e depois esquecer?
Lembrar, lembrar, é como um mergulho no fundo do mar
Lembrar, lembrar, aquilo que se quer apagar
Esquecer, esquecer, é como toda a alegria perder
Esquecer, esquecer, faz sumir todo o prazer
Esquecer, esquecer, é como toda a alegria perder
Diga-me, sr. Febbraio, já viu esse homem antes?
-Acho que o conheço. -Quem é?
Estranho.
Era o professor de matemática do 2º grau.
E aí?
Devo a ele o meu amor pelos números, as simetrias...
...o raciocínio geométrico.
O professor Trivarchi.
Demonstrava os teoremas como se fossem fábulas.
Suas palavras não chegavam aos ouvidos...
...iam diretamente ao nosso cérebro.
As suas aulas me davam um imenso prazer.
Duas retas paralelas nunca se encontram.
Todavia...
...é possível imaginar a existência de um ponto...
...bem distante no espaço...
...mas tão longe no infinito...
...que leva a acreditar e admitir...
...que as duas retas se encontrem.
Assim...
...chamaremos esse ponto...
...de "ponto impróprio".
Nunca a vi.
Tem certeza?
E então?
Sim, eu a conheço.
Fale sobre ela.
É uma garota que eu amei.
Pode me dizer quando a viu pela última vez?
Uma manhã a deixei dormindo no hotel...
...e fui ao aeroporto.
Nem me despedi dela.
Foi há 20 anos.
Como conseguiu essas fotos?
Tente descobrir sozinho.
Há muito tempo que as procuro.
Procurou-as também ontem à noite?
Sim, procurei-as também ontem à noite.
Faz anos que remexo tudo...
...e não as encontro.
E não são só essas duas.
Havia muitas outras.
Um monte de fotografias.
O que há de tão importante nessas fotos?
Tudo e nada.
A prova de um estranho hábito, ou, se preferir...
...de uma mania que tive por toda a vida.
Sempre carregava uma máquina fotográfica.
Costumava fotografar os rostos de todos, em qualquer lugar.
Um modo bizarro de ter um diário.
Um passatempo que abandonei no dia em que tomei a decisão...
...de me retirar da vida pública.
Logo depois...
...eu perdi tudo.
Naquelas fotos estão todos os amigos, inimigos...
...as pessoas que amo, que amei...
...e as que não soube ou não quis amar.
Gente que me apertou a mão e sorriu.
E aqueles...
...que apenas...
...olharam para mim... sem dizer nada.
Milhares e milhares de rostos.
Onde as encontrou?
Mandei simplesmente revistar sua casa.
Não devo ter procurado direito.
Veja!
Todos esses rostos!
Quem é?
É Faubin.
Faubin?
Foi ele quem inventou o nome Onoff.
Um mendigo?
Sim...
...um mendigo.
Foi ele que...você encontrou ontem à noite?
Como eu poderia?
Dediquei à sua memória "Palácio das..."
Dedicou?
Deveria saber!
Você nunca dedicou um livro a ninguém.
Todos sabem disso.
É...é impossível.
Impossível?
Por favor, não o suje.
Não é...não é possível.
Talvez tenha dedicado a Faubin um livro ainda inédito.
Só poderia ter sido esse.
Por quê?
Por que justo esse?
Faubin era um vagabundo.
Era o homem mais inteligente que conheci.
Nunca consegui saber do seu passado.
Não gostava de falar dele.
Mas sempre achei que fosse uma grande personalidade.
Após os primeiros sucessos, ofereci a ele uma vida nova.
Mas ele nunca quis sair de sob a ponte.
Era um tipo incomum.
Passava o tempo escrevendo no verso de velhos calendários...
...ou nos que encontrasse nas lixeiras.
Escrevia rios de palavras. Palavras sem sentido.
Certo dia...eu recebi uma carta dele.
Eu a abri...
...e notei que pela primeira vez ele tinha escrito algo legível.
Mais do que legível.
Cada...
...cada frase respeitava as regras mais sutis da gramática.
Percebi que ele tinha morrido.
Mas...
...por que diz que lhe dedicou um livro se não o fez?
Tempos depois, atravessei um período penoso.
Eu não conseguia escrever... e nem sequer viver.
Eu passava semanas inteiras sentado à escrivaninha...
...sem conseguir escrever nada.
Pensava freqüentemente naquela enxurrada de palavras...
...que Faubin me havia legado.
Comecei a passar os dias lendo e relendo aquilo.
O que esperava achar?
Não era possível, à beira da morte, escrever uma carta...
...tão perfeita, depois de passar a vida remexendo no lixo...
...para alinhar palavras sem pé nem cabeça.
Passei três anos montando aquele enorme quebra-cabeça.
Os jornais se referiam ao meu silêncio, impotência...
...afasia, misantropia...
Mas eu conseguira transformar meu fim...
...em uma infinita excitação.
Mil vezes montei e desmontei aquela parafernália...
...sílaba após sílaba.
E, por fim, descobri o mistério.
Era de uma simplicidade incrível.
Faubin não escrevia.
Só copiava o que já lhe estava claramente escrito na mente.
Transcrevia as palavras em 9 cadernos ao mesmo tempo...
...decompondo as palavras como se fossem algarismos aritméticos.
Era raro encontrar dois termos...
...que juntos fizessem sentido...
...a não ser acidentalmente.
Era extraordinário!
Finalmente consegui montar a história.
Era simplesmente sublime!
Eu nem podia imaginar...
...que se pudesse escrever uma coisa tão...
...pura.
Tão autêntica!
Eu gostaria de ter lido.
Você já leu.
O romance levou o título de "Palácio das 9 Fronteiras"...
...com a minha assinatura.
Foi um sucesso estrepitoso, após tantos anos de silêncio.
Mas eu era um homem acabado, e sabia disso.
Só o álcool me dava alegria. E como eu precisava dele!
Desprezo profundamente o que escrevi depois.
Nunca mais alcançarei aquele nível.
Mas estou condenado a seguir escrevendo...
...porque quando escrevo... é como se eu bebesse.
A minha arte não passa de um miserável remédio.
Odeio os que tentam me fazer publicar aquilo que escrevo.
Aquilo que escrevo só para não beber.
Quem quer convencê-lo a publicar?
-O meu editor, por exemplo. -Quando o viu pela última vez?
Não consigo me lembrar.
Foi ontem?
Acha que eu o matei?
Ele veio vê-lo em sua casa?
Não lembro de nada.
O que fez ontem à tarde...
...depois de procurar fotos no sótão?
Não sei.
Continuei a procurar.
Procurava isto?
Sim.
E depois, para onde foi?
Depois...
...eu me sentei e fiquei olhando.
Nunca ficou horas olhando por uma janela?
Horas e horas...
...sem ver absolutamente nada?
E depois, o que fez?
Paola chegou...
Paola?
Até agora disse ter estado em companhia de Daniela Febbraio!
Somente Paola esteve em minha casa.
Eu nunca vejo a Daniela.
Quem é Paola?
Quem é Paola?
Quem é Paola?
Ela é tudo.
Até agora não tinha falado nela.
É porque...
...a gente se sente embaraçado quando é amado.
Paola!
Então, Paola esteve com você na casa.
Após uns dias, foi embora.
Talvez ontem mesmo.
E depois, à tarde, ela voltou.
-Confere? -Sim.
Por que voltou tão cedo? O que aconteceu?
Não quero voltar para casa.
Quer levá-lo para casa?
Por que Paola quer levá-lo embora?
Quero ficar sozinho.
Vá embora com eles.
Vá com o Cesare.
Quem está com a Paola?
Amigos...
Insuportáveis amigos.
Cesare.
Quem é Cesare? O seu editor?
Encontro vocês à noite. Vão embora.
Por que quer ficar sozinho?
Cortou o cabelo?
Sim.
Por que cortou o cabelo? Por que tirou a barba?
Eu quero...quero me olhar.
Quis ver o seu rosto como não via há anos.
Não é?
E depois, o que fez?
Não encontro as palavras...
Não sei o que escrever...
Tentou escrever alguma coisa?
Escreveu isto?
"Nada tenho a declarar que possa interessar.
Teria preferido o silêncio. O meu amigo mais fiel.
Elegante, infalível...
...adequado a tudo.
Mas por mais que tenha conseguido viver em...
...completo isolamento...
...agora sou tomado por um absurdo desejo de agradecer...
...de me desculpar...
...de dar uma explicação...
...um sinal.
Qual, eu não saberia.
Esqueçam-me completamente.
Esqueçam-me.
Onoff."
Foi a única que não reconheceu.
Foi Faubin que a tirou.
Eu devia ter uns cinco anos nesta foto.
Eu tinha lhe dado a minha palavra.
Se quiser, pode telefonar.
Paola, sou eu...
Sou eu, Paola... Aqui é o Onoff.
Está me ouvindo? Ouça, tenho que falar com você.
Preciso lhe dizer...
Por favor, ouça-me...
Sou eu...Aqui é o Onoff.
Preciso lhe dizer algo muito importante. Está me ouvindo?
Perdoe-me, Paola. O que eu fiz é terrível, mas...
Alô?...Alô?
Por que não me ouve, Paola?
Digam ao Ministro que não irei mais.
Vai lhe fazer bem.
Beba. -É leite? -Sim, leite quente.
Vai lhe fazer bem.
Obrigado.
-Ele ainda não sabe? -Nem você sabia.
Nem eu.
Nem eles.
Nem o comissário.
Ninguém sabe... quando chega aqui.
Será um lindo dia.
É bom sinal, caro Onoff.
-Quero lhe pedir uma coisa. -É só dizer.
Posso ficar com minhas fotografias?
Na verdade, não podíamos...
...não tínhamos o direito de fazê-lo.
Tudo o que é tirado deve ser posto no lugar o quanto antes.
Entende?
Mas quem notará o sumiço das suas fotos?
No estúdio...
...na escrivaninha...
-...na gaveta esquerda, havia... -Um manuscrito?
O manuscrito do meu último livro.
-Você também o pegou? -Não.
Que pena!
Mas li algumas páginas.
Foi o bastante para me dar conta que é magnífico.
É inigualável.
Sublime.
A meu ver, é o seu livro mais bonito.
O melhor entre as coisas que escreveu e que não escreveu.
Fará um grande sucesso.
E agora...boa viagem.
Boa viagem, mestre.
Muito obrigado, comissário.
Não sei o seu nome.
Pode me chamar de Leonardo da Vinci.
Obrigado, Leonardo da Vinci.
Você tem uma bela profissão.
Algo complicada, mas...
"UMA SIMPLES FORMALIDADE"
Legendas: M.A. M
Movimento Cinema Livre