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Ano passado, Jean-Marie Straub e Danièle Huillet finalmente
conseguiram que o Comitê do Novo Cinema Alemão
e um produtor financiassem seu filme sobre Bach,
também graças a uma campanha organizada por cineastas e críticos.
Eles puderam iniciar as filmagens na segunda metade de 1967.
Tudo foi meticulosamente preparado:
As muitas locações nas duas Alemanhas, a seleção dos músicos,
as centenas de roupas da época, os equipamentos técnicos.
Você é Joachim Wolf,
o gerente de produção do filme sobre Bach, certo?
Qual é o orçamento do filme?
Gira em torno de 600.000 marcos.
É muito para o padrão alemão?
É relativamente baixo para um filme como esse,
feito com músicos muito bons, que geralmente cobram cachês muito altos.
Mas desde que conheceram o Sr. Straub,
foi possível produzir este filme com esta soma.
Você está ciente, imagino, que ele faria todo o possível para realizá-lo.
Sim, o Sr. Straub é dos poucos
que, quando começa algo, leva até o fim.
Ele nunca se sentiu tentado a fazer algo diferente, visto que
demorou muito para finalizar o filme desse modo.
Ele é completamente ascético neste ponto; vive uma vida simples e... sobrevive.
O que você quer dizer com isso? Poderia explicar?
Durante os últimos anos, enquanto o filme
seguia sem poder ser produzido, ele se virou como pôde com a língua,
investiu muito dinheiro neste projeto; ele não tem carro, por exemplo,
não tem telefone e tem vivido com sua esposa
em um quarto e sala em Munique pelos últimos 7 anos.
Mas não há por que ter pena dele e acredito
que o Sr. Straub deva ser a última pessoa na face da Terra
a fazer reclamações a esse respeito.
- Então ele está vivendo para o filme. - Ele vive exclusivamente para o filme.
Você poderia dizer que o filme é Straub e Straub é o filme.
E sua esposa também, isso se aplica a ela certamente.
O argumento inicial do filme sobre Bach é o desejo
de evitar usar a música como pano-de-fundo,
mas, como Straub diz, mostrá-la sob um aspecto estético.
A história é contada por Anna Magdalena, segunda esposa de Bach,
interpretada por Christiane Lang Drewanz, uma musicista de verdade.
Eu tinha um novo libreto para cravo que Sebastian
havia começado para mim com duas novas suites.
E para a Feira de são Miguel do ano seguinte, compôs essa suite
e a primeira partita de um ensaio ao cravo.
Foi a primeira composição publicada por ele.
Publicou uma partita por ano, até a quinta;
esta ele publicou junto
com a sexta como Opus I.
Além da música e da crônica de Anna Magdalena, o filme inclui
curtos episódios da vida de Bach,
filmados entre sequências musicais.
A seguir, uma preparação para uma destas cenas, nº 106 do roteiro.
A figura central é Gustav Leonhardt, que personifica Bach.
Straub não quer transformá-lo num ator.
Ele não deseja pontuações ou expressões no texto.
Uma vez mais, ele busca a completa autenticidade.
Certo, de novo. No início, vocês estavam...
Você estavam mais livres no início...
Bom, é difícil...
Ação!
É também chamado "bassus continuus" ou, à maneira italiana...
Sua mão fica aqui... definitivamente tem de ficar assim...
- Qual? - A esquerda.
- Minha esquerda. - E sua direita também.
É também chamado "bassus continuus"
ou, à maneira italiana, "basso continuo",
porque é tocado continuamente,
enquanto as outras vozes pausam aqui e ali.
Ainda que em nossos dias esse baixo também se silencia...
"Pausam aqui e ali", você pode dizer que tentou algo...
naturalista ... de alguma forma... você tentou...
- Sim. - Não, eu não tentei algo naturalista.
A... minha impressão é... Eu tenho a impressão
de que você vem tentando dar-nos a impressão
de que você o faz, de alguma forma, naturalista.
Não.
Ação!
É também chamado "bassus continuus"
ou, à maneira italiana, "basso continuo",
porque é tocado continuamente,
enquanto as outras vozes pausam aqui e ali.
Ainda que em nossos dias esse baixo também se silencia
em demasia, particularmente em obras compostas artisticamente.
Isso pode soar até mesmo como ironia.
Pode soar... como uma mistura de provocação e ironia.
É também chamado "bassus continuus"
ou, à maneira italiana, "basso continuo",
porque é tocado continuamente,
enquanto as outras vozes pausam aqui e ali.
Ainda que em nossos dias esse baixo também se silencia
em demasia, particularmente em obras compostas artisticamente.
- Muito bom. - Sim. Obrigado. Mantenha assim.
O elenco do filme é internacional.
O técnico de som é francês,
o técnico de iluminação e o cameraman são italianos.
Uma vez que tudo é filmado com som direto
e os microfones têm de ficar invisíveis,
é claro, determinar as tomadas requer grande cuidado.
Como você viu nos fragmentos anteriores do filme,
as tomadas de Straub são uma característica
de seu estilo de filmar. Elas são em grande parte estáticas.
Intencionalmente, não transmitem nenhuma modificação ou tensão.
Todas as composições deste filme, mesmo as que duram 4 ou até 7 minutos,
foram gravadas durante a feitura da cena.
O visual, o ótico apenas reforça a realidade deste filme,
ou seja, a música.
Sua mão esquerda... vai ficar deste jeito,
ou você tem outra sugestão?
- Bem, está ótimo assim. - Bom, eu tenho...
Bem... depois deixaremos desta forma.
Mas no começo, do outro jeito.
Então, você pode ficar assim ou surgir com algo a mais.
E no início, você definitivamente tem que... no... início.
Uma conversa, no intervalo das gravações, com Leonhardt
sobre seu primeiro e, provavelmente, último filme.
Minha primeira pergunta é como você, um músico com uma grande reputação,
subitamente foi parar na indústria do cinema?
Sim, posso dizer que foi uma grande surpresa,
porque um diretor que eu não conhecia,
e que veio a se tornar Straub, aparentemente havia me escolhido
como o músico que melhor iria representar Bach.
E sua escolha baseou-se naquilo que ele ouviu -
há dez anos atrás - das gravações
de todos os músicos que não apenas tocavam órgão e cravo,
mas também regiam concertos.
Você também esteve envolvido na seleção musical,
foi responsável, por assim dizer?
Bem, todas as peças já haviam sido selecionadas pelo diretor,
mas a execução, que dependia de mim,
o número de performances, os membros da orquestra,
tudo isso foi do meu interesse.
Tanto pela importância histórica, quanto musical que Bach teve,
ao menos para mim, tornou-se um objetivo
entender o que Bach tinha em mente, porque é tolice, é claro,
dizer que Bach não foi capaz de fazer o que tinha em mente.
O número ideal de músicos que Bach gostaria de ter também está documentado.
- Então foi cuidadosamente respeitado. - Foi indubitavelmente respeitado.
Agora, sobre a peruca e as roupas de Bach. Ainda são estanhas?
Não, elas se tornaram completamente naturais no contexto.
É estranho na primeira vez que você vê seus colegas
num traje destes, você ri. Mas na segunda vez é algo normal.
E agora, especialmente quando estamos tocando, isso se tornou um elemento
completamente normal para mim.
Isso também significa que você está intensamente envolvido
com a vida de Bach, não apenas com sua música?
É importante para mim,
mesmo que eu nunca tenha tido a sensação de interpretar Bach.
Eu faço isso como um músico. O elemento de união,
de modo que tudo que está no filme,
a atmosfera, os instrumentos antigos,
as roupas e o texto arcaico,
este elemento de união surge naturalmente.
Havia somente uma pausa nas gravações.
Este era um elemento muito importante para mim, o momento de união.
Primeiro, eu espero que aqueles que não conhecem a música de Bach
irão experimentar uma epifania neste momento...
Musical?
Sim. E depois irão, consequentemente, embarcar
numa jornada através da mentalidade
humana do século XVIII... da primeira metade do século XVIII.
E também descobrirão sobre o Sr. Leonhardt, porque este filme...
- Como Sr. Leonhardt? - Como Sr. Leonhardt, porque este filme
está gradualmente se transformando em algo sobre o Sr. Leonhardt.
Pode-se até mesmo dizer um documentário sobre o Sr. Leonhardt.
Algo que descobri depois que era importante, simplesmente por que...
Eu não queria que ninguém visse isso como uma afirmação nacionalista
de modo algum. Isto é... nem antinacionalista também, ou outra coisa.
Mas eu também acredito que seja... importante que aquele que,
digamos, personifica Bach neste filme -
pois no fim é o que ele faz - não fosse alemão.
Por conta do que houve com este país,
principalmente entre 1933 e 1945,
estou feliz de ter encontrado um holandês.
E o que as pessoas... espero que... o espectador, aquele que estará
sentado em frente à tela, descobrirá um momento cinematográfico.
Bem, o que tentei definir anteriormente, para falar de algo específico:
a cena que rodamos ontem,
a Variação Goldberg 25, executada pelo Sr. Leonhardt ao cravo,
é uma tomada muito simples em close-up.
Nós começamos com as mãos dele, muito simples, no teclado,
e subimos até seu rosto e as mãos permanecem fora de quadro...
e continuamos focando em seu rosto.
E o que eu chamo de momento cinematográfico
aqui é o que deve ser descoberto pelo espectador.
Você vê alguém que está fazendo algo abaixo da câmera,
de frente para uma parede mal iluminada, porque estamos no crepúsculo, quase noite,
e esta parede é tão importante quanto o rosto, mas ainda assim,
algo está acontecendo em seu rosto que, para mim, seria...
um puro momento cinematográfico.
Dez dias atrás, Jean-Marie Straub e Danièle Huillet
vieram à Holanda para o festival de cinema
de Utrecht, onde o filme sobre Bach teve sua première.
A primeira cidade em que parei quando deixei a França, em 1958, foi Amsterdam.
- Amsterdam? - Sim. A primeira cidade.
Diretamente de Paris para Amsterdam.
- Fiquei lá por suas semanas. - Ah, sim, sim.
Dez anos depois, como refugiado dos insensatos acontecimentos na Argélia,
Straub ainda não havia feito outro filme. Só possuía um roteiro completo:
Crônica de Anna Magdalena Bach.
E agora, este artista militante está mais uma vez visitando Amsterdam,
desta vez com o filme, resultado de dez anos de trabalho e reflexão.
Agora que eu o conheço um pouco melhor,
estou convencido de que ele e Danièle Huillet
nunca tiveram nenhuma dúvida em seus corações
de que Crônica de Anna Magdalena Bach
tornar-se-ia realidade.