Tip:
Highlight text to annotate it
X
♫♪... ♫♪
♫♪... ♫♪
Buenos Aires cresce descontrolada e imperfeita.
É uma cidade superpovoada num país deserto.
Uma cidade onde se erguem milhares e milhares de prédios...
sem nenhum critério.
Ao lado de um muito alto, tem um muito baixo.
Ao lado de um racionalista, tem um irracional.
Ao lado de um em estilo francês, tem um sem estilo.
Provavelmente essas irregularidades nos refletem perfeitamente.
Irregularidades estéticas e éticas.
Esses prédios, que se sucedem sem lógica...
demonstram total falta de planejamento.
Exatamente assim é a nossa vida...
que construímos sem saber como queremos que fique.
Vivemos como quem está de passagem por Buenos Aires.
Somos criadores da cultura do inquilino.
Prédios menores para dar lugar a outros prédios, ainda menores.
Os apartamentos se medem por cômodos...
vão daqueles excepcionais, com sacada...
sala de recreação, quarto de empregada e depósito...
até a quitinete, ou "caixa de sapato".
Os prédios, como muita coisa pensada pelos homens...
servem para diferenciar uns dos outros.
Existe a frente e existe o fundo. Andares altos e baixos.
Os privilegiados são identificados pela letra A, às vezes B.
Quanto mais à frente no alfabeto, pior o apartamento.
Vista e claridade são promessas que poucas vezes se concretizam.
O que esperar de uma cidade que dá as costas ao seu rio?
É certeza que as separações e os divórcios...
a violência familiar, o excesso de canais a cabo...
a falta de comunicação, a falta de desejo...
a apatia, a depressão, os suicídios...
as neuroses, os ataques de pânico...
a obesidade, a tensão muscular...
a insegurança, a hipocondria...
o estresse e o sedentarismo...
são culpa dos arquitetos e incorporadores.
Esses males, exceto o suicídio, todos me acometem.
SUPERDISPONÍVEL
Esta é a minha quitinete. São 40 e poucos metros quadrados...
e uma janela deprimente que dá para um pulmão sem ar.
Santa Fé, 1.105...
quarto andar, H.
Há mais de 10 anos, sentei em frente ao computador...
e tenho a sensação de que nunca mais levantei.
Não sei se a Internet é o futuro, mas foi o meu.
Vivo de criar sites. Este é o meu ciberespaço.
Não sei se sou bom ou se fui um dos primeiros...
mas tenho muito trabalho.
Comecei com o site do meu psiquiatra, dedicado a fóbicos...
especialidade dele e o que me faz ir lá duas vezes por semana.
PILLS OUT APERTE ENTER PARA COMEÇAR
Este jogo é o maior sucesso do site.
Divertimento para insones que lutam contra o vício em soníferos.
Para a psiquiatria, sou um fóbico em recuperação.
Após repetidos e violentos ataques de pânico, eu me fechei em casa.
Por uns dois anos, não saí.
Ganhei 17 campeonatos com o River no nível mais difícil.
Em quatro, fiquei invicto. Em nove, fui artilheiro.
Ganhei do Federer quatro vezes na final de Wimbledon.
Subi na família Corleone até virar o chefão.
Fiquei totalmente isolado, com medo.
Com a estratégia do psiquiatra, fui perdendo o medo da cidade...
do mundo lá fora, dos outros. Tirar fotos.
Um jeito de redescobrir a cidade e as pessoas.
Procurar a beleza, mesmo onde ela não existe.
Observar é estar e não estar.
Ou talvez estar de um jeito diferente.
Assim, distraidamente, fui me afastando.
Não ando de ônibus nem de táxi, muito menos de metrô.
Avião então, nem pensar. Só me desloco a pé.
Só preciso dos pés e da mochila que levo para todo lado.
Conteúdo: Uma câmera Leica D-Lux 3 de 10 megapixels...
Rivotril em gotas a 0,25%, Amoxicilina 500...
Ibuprofeno, óculos de sol, uma capa plástica...
um Victorinox de 21 funções...
lanterna, pilhas, preservativos, três unidades...
400 pesos em notas miúdas, um iPod de 60Gb.
Tenho mais de 8.000 músicas.
Três filmes de Tati, um caderno e uma folha plastificada...
com instruções sobre o que fazer em caso de acidente...
ou ataque de pânico.
A mochila pesa 5,8 kg, 7% do meu peso.
Há dois anos sou arquiteta, mas ainda não construí nada.
Nem um prédio, nem uma casa, nem um banheiro. Nada.
Só umas maquetes inabitáveis, e não só por causa da escala.
Com outras construções, também não dei certo.
Uma relação de quatro anos ruiu...
apesar dos meus esforços para mantê-la de pé.
Se minha vida fosse um jogo como o Jogo da Vida...
caberia a mim o castigo de voltar cinco casas.
Por isso estou aqui...
com a vida desordenada em 27 caixas de papelão...
sentada num rolo de 12m de plástico bolha para estourar...
antes que eu mesma estoure.
Este é o meu novo e velho apartamentozinho...
que estes cinco degraus ridículos transformam em duplex.
E este é um negócio metade janela e metade sacada...
que o sol evita o ano inteiro.
Av. Santa Fé, 1.183, oitavo andar, G.
De gastrite.
De todas as construções da cidade, esta é a minha preferida.
Tem a melhor localização e é a mais divertida.
É feita com meus materiais preferidos...
concreto, aço e vidro.
É uma das poucas projetadas sobre a base de um módulo...
em forma de triângulo equilátero.
Foi inspirada em Saturno e seus anéis...
embora a maioria veja um disco voador.
Sempre entro, esperando que decole e me leve a outro lugar.
Se bem que o planetário me põe mais no meu lugar.
Lembra que o mundo não gira ao meu redor...
que sou uma parte muito pequena de um planeta...
que faz parte de um sistema, que faz parte de uma galáxia...
que, como milhares de galáxias, faz parte do universo.
Isso me lembra que sou parte de um todo... infinito e eterno.
UM OUTONO CURTO
O cachorro se suicidou.
Era a companhia de uma prostituta de 40 e tantos anos...
que o deixava na sacada para não incomodar os clientes.
O cachorro ficava bravo quando tocavam nela.
Não me admira que tenha se jogado.
Sozinho, numa sacada tão pequena...
ACIDENTE ESTRANHO.
UM CACHORRO MORTO E DUAS PESSOAS FERIDAS.
Assine.
Obrigado.
DISCARTROSE
Mas que cara de velório! Não tem nada de mais.
A quinta e a sexta vértebras são juntas, mas é de nascença...
senão você estaria aos berros, então não... Não é isso.
Você tem tontura? Não.
Nade, faça exercícios, use uma mochila menos pesada.
Você não tem nada de grave. Nada mesmo.
O que acontece...
é que esses laudos são feitos por jovens...
que, nos laboratórios e hospitais, só fazem isso.
Eles escrevem tudo, sabe? Para se proteger.
Não existe ninguém perfeito. Fazer o quê?
Se quiser se preocupar, à vontade, mas não por isto aqui.
Você está igual.
Até poder trabalhar como arquiteta, ganho a vida como vitrinista.
Isso me distrai e ocupa minha cabeça com outras coisas.
Gosto de pensar nas vitrines como um lugar perdido...
que não está nem dentro nem fora.
Um espaço abstrato e mágico.
Reconheço que refletem parte de mim...
mas me tranquiliza o anonimato.
Imagino, talvez burramente...
que se alguém para diante da vitrine...
de alguma forma, se interessa por mim.
Tenho este livro desde os 14 anos...
e é, que me perdoem os grandes escritores...
o livro da minha vida.
É a origem da minha fobia de multidões...
e criou em mim uma angústia existencial bem particular.
Ele representa de um jeito dramático...
a angústia de saber que sou alguém perdido entre milhões.
Os anos passaram, e ficou uma página sem resolver.
Wally na cidade.
Eu o encontrei no shopping, no aeroporto e na praia...
mas, na cidade, não encontro.
Sei que o nervosismo cega, mas não consigo achar.
Então me pergunto...
Se, mesmo sabendo quem eu procuro, não consigo achar...
como vou achar quem eu procuro se nem sei como é?
Oi! Sou Susú, o elo perdido entre bicho de pelúcia e cachorro.
Há sete anos, minha namorada foi visitar os pais...
em Nova Jersey, Estados Unidos. Era para ficar 20 dias, um mês.
Apesar do sofrimento, me ligou a cobrar...
para avisar que não voltaria...
que o lugar dela era lá, que tinha percebido que era muito americana.
Genial. Ela se sentiu americana bem quando a Argentina decaiu.
Pouca coisa a prendia aqui, só eu e a cachorra dela.
Ela deixou a cachorra também, mas com boas intenções.
Disse assim: "Ela vai sentir demais a mudança...
e vai ser difícil se acostumar com outro idioma".
Você sabe que avião me deixa nervoso.
Leve a pedra que uso sempre que viajo.
- Você só viajou uma vez. - Mas ela me serviu.
É o meu amuleto. Faça isso por mim.
Tudo bem.
De uma vez só, perdi a mulher que eu amava...
e a capacidade de voar.
Oi, é a Mariana. Depois do sinal, deixe o seu recado.
Você está aí?
Bom... liguei para avisar que hoje à noite...
vai passar na TV um filme muito bom.
Aquele do Bill Murray e da marmota.
Como você levou a TV, achei que poderíamos ver juntos.
Atenda. Sei que você está aí.
Está com outro? Você pisou na bola.
Como é possível ser próximo de alguém tão diferente?
É a conclusão estúpida que fica de uma relação de quatro anos.
Quatro anos são 48 meses...
são 1.460 dias...
são 35.040 horas com a pessoa errada.
Uma noite me peguei olhando para ele e entendi tudo.
Eu o senti distante pela primeira vez...
como se fosse um total desconhecido.
Tão desconhecido que tive até medo de estar com um estranho.
E aqui estou...
no apartamento que abandonei para ir morar com ele...
em frente ao mesmo espelho, quatro anos depois.
UM INVERNO LONGO
Obrigado.
A Internet me aproximou do mundo, mas me distanciou da vida.
Faço coisas de banco e leio revistas pela Internet...
baixo música, ouço rádio pela Internet...
compro comida pela Internet, alugo ou vejo filmes...
converso pela Internet, estudo pela Internet...
jogo pela Internet, faço sexo pela Internet e procuro...
PASSEADOR DE CACHORROS
Vamos, Susú. Vamos.
Vamos, Susú. Vamos, vamos. Susú.
- Esta é a Susú. - Legal.
Ela não está acostumada com outros animais.
- Então você precisa vir junto. - Bom, então eu mesmo levo.
- Pega um cigarro no meu bolso? - Aqui?
- Você tem fogo? - Não.
- Pegue aí, eu tenho. - Aqui?
- Quanto dura? - Você é gay?
- Por causa da cachorra. - É...
Não é minha. É de uma amiga que foi morar nos EUA...
e me pediu para cuidar.
Ela teve um problema lá, não pôde voltar...
e fiquei com a cachorra.
Desde que a dona foi embora, ela fica deprimida...
não late, fica insegura...
e não quer sair, então achei que seria bom...
ter contato com outros cachorros e outras pessoas.
Acho que ela se acostuma. O que você acha?
Achei que você fosse gay.
Não consigo me concentrar.
Fica para outro dia.
Bom...
- Então tchau. - Como ficamos? Eu ligo?
- Passo amanhã no mesmo horário. - Ok. Tudo bem?
Mais ou menos. Tchau.
Vamos jantar? Ou vou ter que esperar chegar a primavera?
- Agora? - Você pode?
Hoje eu queria começar a nadar. Estou toda dura.
- Não é hora de começar a nadar. - Não, nunca é hora de nadar.
Então vamos jantar.
É aqui.
Você conhecia?
O prédio sim, mas não sabia que tinha um restaurante.
Achei que fossem escritórios.
Achei interessante para uma arquiteta.
Vamos subir?
Vou pela escada.
Mas é no vigésimo andar.
É que...
Você vai me achar louca, mas...
tenho fobia. Não entro em elevadores.
Muito menos nos que são hermeticamente fechados.
Me dá claustrofobia.
E você mora no térreo?
- No oitavo. - Verdade?
Preciso pensar bem antes de sair.
Subo no mínimo três vezes por dia.
Quer tentar comigo?
O quê?
Subir pelo elevador.
Se você quiser, sei de outro lugar que fica no térreo.
Tenho curiosidade de ver a cidade assim de tão alto.
Posso tentar pela escada.
- Vou com você. - Não precisa.
Não tem necessidade. E você não vai aguentar.
- Claro que vou. - Mas...
Depois do tanto que você demorou para vir...
Desde quando você não usa elevador?
- Faz dois, três anos. - Teve alguma experiência ruim?
Não fale. Você vai ficar sem ar.
Controle isso.
- Já tentou de olhos fechados? - Se tudo se resolvesse assim...
A última vez que subi tantos degraus foi em Teotihuacan.
Na Pirâmide do Sol. Um calor de 40 graus...
nem uma porcaria de nuvem no meio do deserto...
e 260 degraus incômodos.
Subi porque dizem que o topo da pirâmide é um ponto...
de energia cósmica e que se você fizer um pedido, ele se realiza.
Pedi para descer sem cair.
Alguns desciam sentados exatamente para isso, para não cair.
Isso é típico das religiões. Prometem uma coisa improvável...
para você não se arrepender do sacrifício.
Espero não me arrepender de subir esta escada.
Tudo bem?
Você não quer ir de elevador?
- É, vai ser melhor. - A gente se vê lá em cima.
O cigarro está me matando.
- Peço uma água para você? - Pode ser.
- Com gás ou sem? - Sem.
Minha relação com o Pablo coincide com a explosão da era digital.
Quando começamos a sair...
comprei a câmera que registrou estes quatro anos.
380 fotos no primeiro ano...
150 no segundo, 97 no terceiro.
Estas são as quatro fotos do último ano.
Num ato simples e irreversível...
me desprendo de 38,9Mb de história.
Quem dera minha cabeça funcionasse bem como o Mac.
Quem dera um simples clique me fizesse esquecer tudo.
Tem coisa mais triste, no séc. XXI, que não receber e-mails?
Sorte que um amigo de Oman me escreveu.
Está visitando o Iêmen...
e me pede ajuda para sacar 9,5 milhões de dólares...
de um banco de lá. Fazia tempo que ele não me escrevia.
Me parece uma amizade imprudente e interesseira.
Por ali, por favor. Por ali.
Antes de ter fobia de elevador...
eu era guia de visitas no edifício Kavanagh.
Circulava sem problemas pelos 15 elevadores...
e pelos 31 andares do arranha-céu mais lindo da cidade.
A maior estrutura de concreto armado do mundo nos anos 30.
Um prédio de tanto impacto quando sua história.
Corina Kavanagh era uma mulher linda...
de uma família rica, mas sem linhagem...
e tinha um romance com um rapaz de ascendência importante.
Os Anchorenas, contra a relação, conseguiram interrompê-la.
Nada dizia mais sobre os Anchorenas...
que a Basílica do Santíssimo Sacramento...
construída para ser o sepulcro da família.
O palácio dos Anchorenas ficava do outro lado do parque...
e eles queriam construir outro ao lado da basílica.
Corina Kavanagh vendeu três fazendas...
e mandou construir um prédio com um único objetivo.
Cobrir a fachada da basílica.
Impedir que os Anchorenas a vissem das janelas do palácio.
Para vê-la, é preciso ficar na viela chamada Corina Kavanagh.
Quando eu tiver uma filha, vou chamar de Corina.
COMO FOI O SEU DIA?
Ótimo, obrigado. Tome.
ONDE VOCÊ ESTÁ?
ENTRANDO NO CINEMA.
- Posso pôr música? - Claro.
POR QUE NÃO ME AVISOU? VAI VER O QUÊ?
São milhares de músicas. Como você escolhe?
- Acho que não gosto de nenhuma. - Deixe, eu escolho.
QUERO TE VER. PASSO AÍ NA SAÍDA.
É MUITO COMPRIDO. PRECISO DESLIGAR.
ENVIANDO PARA MARIELA
- Você não comeu nada. - Eu janto pouco.
Já falei que estou escrevendo uma peça?
Você mal falou a noite inteira.
É mesmo? Estou estranha, não sei o que é.
Não sabia que você escrevia.
Nem eu...
até agora.
Estudo teatro há algum tempo.
Quer que eu conte?
A peça se chama Cruela.
No palco, um balanço...
a protagonista e sete dálmatas.
Na peça, as pessoas ouvem um monólogo com fone de ouvido.
Estão ouvindo o pensamento dela.
Ela está planejando...
como matar os donos dos cachorros para ficar com eles.
Gostou?
Parece boa, sim. Eu precisaria ler.
Estou na peça.
Você seria a "baseadora"?
- Baseadora? - Eu disse isso?
Foi boa.
11 MENSAGENS
VOU PARA CASA.
Não se iluda. Foi só sexo.
Brotam no cimento, crescem onde não deveriam.
Com paciência e vontade exemplares, erguem-se com dignidade.
Sem estirpe, selvagens, inclassificáveis para a Botânica.
Uma estranha beleza cambaleante, absurda...
que enfeita os cantos mais cinzentos.
Elas não têm nada, e nada as detém.
Uma metáfora de vida irrefreável...
que, paradoxalmente, me faz ver minha fraqueza.
Me chamo Marcela e sou psicóloga. Essa é a minha maior paixão.
Calma. Não ache que vou analisar você.
Tenho por regra não analisar os meus amigos.
Na verdade, sou bastante seletiva nas amizades.
Muitas vezes escrevo e adoro livros de autoajuda.
Sexo: Feminino. Idade: 31.
Estado civil: Solteira. Filhos: Nenhum. Religião: Budista.
Não bebo, fumo às vezes, tenho nível superior.
Idiomas: Francês, inglês, alemão, italiano...
português, grego, espanhol, claro...
e um pouquinho de russo.
Interesses: Música alternativa, jazz, blues, latina...
disco, anos 80, eletrônica...
pop, R&B, rock, clássica...
teatro, balé, viagens, ioga, meditação...
cinema, sapatos, carros, motos, academia...
escrever, cozinhar, Internet, esportes aquáticos...
natureza, política, caridade, vinhos e degustação...
montanhismo, compras, tarô, arte...
artes marciais, tai chi chuan, I Ching...
feng shui, astrologia, new age.
Eu ouço, mas não falo. Entendo o que você diz, mas...
não falo, não.
É sério, falo muito mal. Não gosto de me ouvir.
E não controlo o que digo.
Digo o que consigo e não o que quero.
Bom, você fala.
O seu francês parece... francês.
Concluí que esses encontros são como combos do McDonald's.
Nas fotos, é tudo melhor, maior e mais apetitoso.
Cada vez que vou a um encontro...
tenho a mesma decepção que vem diante de um Big Mac.
Nada de nada, não.
Não, obrigada.
O que você fazia em Paris sozinha?
Ah, não. É uma longa história.
Se quiser, posso contar o final.
Nós nos separamos no De Gaulle.
Acho que 13 horas de voo é demais para um casal em crise.
Enfim... felizmente, cada um tinha a sua mala...
então, ali no aeroporto, fizemos a divisão de bens.
Ele ficou com o xampu, eu, com o condicionador...
e assim fizemos com o pouco que tínhamos em comum.
Ele foi para Berlim, eu fiquei em Paris...
chorei 24 horas seguidas e pronto.
Tudo bem?
Quer uma água?
É tosse nervosa.
Estou nervosa.
Preciso me mexer.
Vamos dançar?
Sinto muita necessidade de me comunicar.
Por exemplo, se tivéssemos nos conhecido aqui, por acaso...
e você falasse italiano...
que eu falo também, mas se eu não entendesse nada...
teria perdido a chance de conhecer uma pessoa linda.
O que você disse?
Procure no dicionário.
Puta merda!
Como pode ser tão tonto?
Tchau, Susú. Vou chegar tarde. Tchau.
É a 15a. vez que me matriculo na natação...
e vai ser a 15a. vez que vou desistir.
Adoro nadar, mas odeio o que acontece antes e depois.
Odeio ter que tomar banho antes e depois de nadar.
Odeio tirar a roupa e depois pôr de novo.
No inverno, ter que secar o cabelo...
ter que guardar na sacola uma toalha molhada...
uma sunga molhada, um chinelo molhado.
Odeio o cheiro de cloro.
Odeio a carteirinha, o exame médico.
Mostrar, a alguém que não quer ver, os dedos dos pés.
Odeio saber que tem gente que faz xixi na água.
Odeio usar touca e a expressão de susto que os óculos causam.
Por fim, o que eu mais odeio é que é o esporte mais completo.
Está cansada?
Você está cansada?
Precisa bater menos os pés.
As pernas consomem mais oxigênio que os braços.
Mais que impulso, elas dão estabilidade.
Estique bem os pés e solte.
Quando puser a mão na água...
estique, sinta o impulso e o outro braço vai junto.
As mãos por baixo...
a cabeça não tão levantada. A água aqui, na testa.
Você está dando 32 braçadas. Faça o que eu disse.
Vai dar menos braçadas e se cansar menos.
Vai nadar mais relaxada.
E tente respirar a cada três braçadas. Vamos, eu conto.
- Posso? - Sim.
- E então? - É verdade, foi mais fácil.
Trinta braçadas, duas a menos, e você ainda pode baixar.
- Você é professor? - Sou um nadador inveterado.
Nado pelo menos uma hora por dia, senão eu não durmo.
É? O cansaço da piscina é diferente.
Sim, é só assim que eu me canso.
- Qual é o seu nome? - Rafa. E o seu?
Mariana.
O que foi, seu imbecil?
- Será que eu posso passar? - Passa logo, vai!
- Palhaço! Seu ridículo! - O que é isso?
Imbecil!
É sempre assim. Desgraçado!
Não encoste em mim! Não encoste em mim!
Ainda faltam 30 voltas. Sou inscrito e pago a mensalidade!
- E isso porque a água relaxa. - A vida saudável é estressante.
Saber tudo que é preciso fazer para viver mais...
é o pior que poderia nos acontecer.
Ninguém vem nadar para curtir. Vem contar as voltas.
- Por que você não dorme? - Achei que você perceberia.
Não acho o interruptor para desligar a cabeça.
- Já tentou terapia? - Sim, sou psicólogo.
Então só o que ajuda é nadar?
Se eu pudesse, iria nadando até a beira da cama.
- Foram 28! - Muito bem.
Amanhã não vou pode vir.
Tenho pacientes até as 22h, então vou ter insônia.
Vamos comer ou beber alguma coisa?
- Vou deixar você com sono? - Pelo contrário.
Ainda bem. Então vamos.
Vamos tirar a touca e os óculos, assim podemos nos reconhecer.
Não, eu vou assim.
Não é nada, não faz mal.
Está tudo bem.
Só a luz de uma manhã tão clara...
me deixou ver com clareza o reflexo.
Tarde, como sempre, percebi que era eu na vitrine.
Como um manequim.
Imóvel, silenciosa e fria.
FINALMENTE, PRIMAVERA
Todos os prédios, todos mesmo, têm um lado inútil.
Não serve para nada, não dá para a frente nem para o fundo.
A "medianera".
Superfícies que nos dividem e lembram a passagem do tempo...
a poluição e a sujeira da cidade.
As "medianeras" mostram nosso lado mais miserável.
Refletem a inconstância, as rachaduras...
as soluções provisórias.
É a sujeira que escondemos embaixo do tapete.
Só nos lembramos delas às vezes...
quando, submetidas ao rigor do tempo...
elas aparecem sob os anúncios.
Viraram mais um meio de publicidade...
que, em raras exceções, conseguiu embelezá-las.
Em geral, são indicações dos minutos...
que nos separam de supermercados ou de lanchonetes.
Anúncios de loterias que prometem muito em troca de quase nada.
DISPONÍVEL
Ultimamente, lembram a crise econômica que nos deixou assim...
sem emprego.
Para a opressão de viver em apartamentos minúsculos...
existe uma saída. Uma rota de fuga.
Ilegal, como toda rota de fuga.
Em clara desobediência às normas de planejamento urbano...
abrem-se minúsculas, irregulares e irresponsáveis janelas...
que permitem que alguns milagrosos raios de luz...
iluminem a escuridão em que vivemos.
ESPERANÇA
Posso?
Claro que sim.
Só não quero que você mude.
Preciso pegar o avião.
Você não precisa ir.
Por que você não falou disso na semana passada?
Seis meses não é tanto tempo.
Nem todo mundo se corrompe.
Você precisa confiar nas pessoas.
Quando vamos ser uma cidade sem fios?
Que gênios esconderam o rio com prédios, e o céu com cabos?
Tantos quilômetros de cabos servem para nos unir...
ou para nos manter afastados, cada um no seu lugar?
A telefonia celular invadiu o mundo prometendo conexão sempre.
Mensagens de texto.
Uma nova linguagem adaptada para 10 teclas...
que reduz uma das línguas mais lindas...
a um vocabulário primitivo, limitado e gutural.
"O futuro está na fibra óptica", dizem os visionários.
Do trabalho, você vai poder aumentar a temperatura da sua casa.
Claro, ninguém vai esperar você com a casa quentinha.
Bem-vindos à era das relações virtuais.
É a sua primeira vez no chat?
É. Dá para perceber?
Muito. Você precisa começar com H ou M.
O que é isso?
Homem ou mulher.
Mulher. Se bem que é meio amplo, não é?
- E você? - Homem.
- Preciso acreditar? - Isso é fácil de comprovar.
Escrevo como homem, penso como homem...
e ajo como homem.
E?
O quê?
Sua vez. As pausas no chat são um saco.
Não sei o que dizer.
É estranho falar com alguém de quem não sei nada.
O que você quer saber?
Nem sei por onde começar.
Vou embora. Tchau.
Não desligue. Espere. Você ainda está aí?
Posso dar uma lista de perguntas.
Quantos anos você tem? Qual é o seu signo?
Que músicas você ouve? Acredita em Deus?
O que você fez hoje?
Isso é sacanagem.
Isso é uma pergunta.
Ok. Acordei ao meio-dia porque fui dormir às cinco.
Tinha que começar a nadar. Tomei café à uma.
Tomei um Ibupirac Flex.
Às duas, comecei a trabalhar. Eu faço sites.
Às cinco eu almocei, às oito fui à terapia.
Tomei o segundo Ibupirac Flex.
Tocou o telefone e me iludi. Era engano. Estou fazendo um lanche.
Depois do chat, dou uma porrada na cabeça para dormir...
porque amanhã começo a natação.
VOCÊ FUGIU?
SIM!
Que bom! O que você fez hoje?
Adaptação. Estou me acostumando a ser sozinha de novo.
Sou especialista, poderia escrever um livro.
Sou uma espécie de Paulo Coelho, mas depressivo.
Não estou num bom dia.
ESTOU MUITO TRISTE.
Tenho um método totalmente involuntário.
Um gene budista que faz meus dias felizes não tão felizes...
e meus dias tristes não tão tristes.
Um termostato da alma.
E se o termostato não funciona?
Tomo um Rivotril.
Não achei que eu fosse rir hoje.
Em troca, me faça um favor. A que horas você acorda?
Às nove.
Passo o meu telefone, você me liga e me anima para ir nadar.
E se eu fizer isso agora?
Agora não vale. É um trato.
Me dê o seu telefone.
Puta merda! Puta que o pariu!
Puta merda!
Por que será que eu guardo tanta porcaria?
Espere, Susú. Já vou.
- Tem vela? - Sim. Só um minuto.
Já vou pegar.
Quatro pesos.
- Ainda tem vela? - Acho que sim, vou ver.
- Deu choque. - Em mim também.
- Será que é a lanterna? - Não sei, mas foi forte.
Aqui estão. São as últimas. É seu dia de sorte.
É... Que bom saber!
- Quanto é? - Quatro pesos.
- É meio cara a sorte. - É.
- Cobre isto também. - Nove.
Obrigada. Tchau.
Quer alguma coisa?
O que tem de um peso, para arredondar?
♫♪... ♫♪
♫♪... ♫♪