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Bom, como muitos aqui sabem,
a gente trabalha na maior rede de televisão no Brasil,
onde um programa pode ser visto por 100 milhões de pessoas ao mesmo tempo.
Todas as séries que a gente produziu até hoje,
a gente tentou ir a lugares onde, em geral, as pessoas não iam
e conversar com pessoas que até então pareciam invisíveis.
O que aconteceu? Logo de início a gente percebeu
que a televisão já não estava mais espelhando o que era realmente popular.
E essa palavra começou a perseguir a gente: popular, cultura popular...
A gente sentiu de cara que tinha uma enorme indústria independente que produzia CDs, DVDs, shows...
As músicas que estavam fazendo o maior sucesso no país, as vezes eu não conhecia,
porque elas estavam totalmente sendo produzidas à revelia das mídias oficiais.
Então, a gente começou a desenvolver um projeto que talvez alguns conheçam,
chamado Central da Periferia, querendo mapear esse "troço" que estava acontecendo,
esse fenômeno tão impressionante.
E o que ele revelou? Ele revelou uma potência incrível no funk carioca,
no forró-eletrônico que o Ronaldo mostrou tão bem aqui, em Belém do Pará.
E a gente viu que estava acontecendo um negócio muito grande no Brasil todo,
mesmo em lugares esquisitíssimos, que as vezes você achava que não estava acontecendo nada.
E a gente começou a suspeitar que isso não acontecia só no Brasil.
Que isso estaria acontecendo - sendo um fenômeno das periferias - no resto do mundo.
E aí a gente ampliou o projeto para o "Minha periferia é o mundo"
e começou a viajar pelas periferias, favelas e conjuntos habitacionais de grandes cidades
pelo mundo afora e aí a gente ficou mais "chapado" ainda.
Ficamos super impactados com a força da nova produção cultural planetária.
O Kuduro, que ele citou aqui, em Angola,
o Coupé Décalé em Paris, e na Costa do Marfim,
os sonideros, que é tipo um baile funk que tem no México.
Então, eu vou mostrar um vídeo que só ele demoraria 15 minutos,
então eu vou dar um "tequinho" de cada cidade, só para dar um gostinho do que a gente viu
e da importância e da magnitude desses fenômenos que a gente encontrou.
Essa é boa.
Belém do Pará.
O Ronaldo mostrou hoje a força do Tecno-Brega, principalmente economicamente.
Uma economia informal, totalmente original.
Pode avançar.
Bom, aí a gente sai e chega... ah não! Volta, volta!
Esse é o Kuduro, de Angola. Que está tomando conta praticamente do mundo todo.
Ah, esse pedaço eu vou deixar rolar porque é legal.
Olha como é interessante economicamente esse fenômeno.
Pode aumentar um pouquinho o som?
Ok!
Acho que já deu para ter uma ideiazinha.
Eu teria muitas outras cidades para mostrar, mas é para ter uma ideiazinha
do tamanho, da abrangência e da magnitude, da velocidade da difusão
da nova produção cultural das periferias planetárias.
O quê eu acho mais incrível, e isso que eu queria muito passar para vocês,
é que isso não é uma latência, não é uma tendência tímida,
uma coisinha que está acontecendo ali.
É uma indústria cultural gigantesca
que é totalmente estigmatizada,
totalmente ignorada pela economia oficial, pela mídia oficial.
E o quê eu acho que mais a gente pode ajudar:
Ela é totalmente estigmatizada e negligenciada pelas instâncias que
legitimam o que é cultura. O que é popular.
Eu acho que esse é o ponto principal do que eu quero falar.
Eu acho que as políticas culturais, mesmo as mais bem intencionadas.
Mesmo as mais boazinhas... Elas têm...
Ou elas ignoram, fingem que isso não acontece,
ou têm até, vou falar a verdade, certo "nojinho".
Uma certa repugnância por isso aí.
Isso não é cultura, e muito menos popular.
Então o quê é isso que está acpntecendo na periferia do mundo todo?
Esse é o ponto.
Não só a gente não está aproveitando economicamente, socialmente esse fenômeno desse tamanho,
como a gente não está incentivando.
Porque, uma coisa que eu sinto, há também uma tentativa de que eles abandonem
esse tipo de produção cultural.
Oferecendo uma outra coisa que seria mais digna, mais "cultural".
E que eles deixem de fazer isso. Isso que está absorvendo numa velocidade incrível,
com uma apropriação totalmente nova, das mais novas tecnologias,
isso que está produzindo uma renda local, que está resolvendo problemas gravíssimos
de desigualdade, e de má distribuição de renda.
então, a ideia de quem realmente legitima o que é cultura, o que é popular
é que eles abandonem isso e que seja oferecido alguma coisa mais chique,
de mais qualidade.
Eu acho que esses produtos que são oferecidos, na minha opinião, têm uma visão muito ingênua.
E muitas vezes, preconceituosa do que seria tradição,
e do que seria qualidade.
Esse que eu acho que é o ponto.
Bom, eu disse que muita gente tem uma visão ingênua.
Eu também tinha. Em muitos aspectos.
E perdi o que restava da minha ingenuidade
viajando no interior de Moçambique. A gente chegou numa aldeia, daquela clássica.
Todo mundo com uma roupa diferentona, tipo ele encontrava
eu fiquei sentada no chão com várias senhoras, naquela coisa de terra batida;
ninguém falava nem português, nem francês, nem inglês;
só um marido, várias esposas.
E aí, saiu uma mulher de uma casa que parecia uma toca,
e ficou batendo um pilão,
e falando numa outra língua, com aquela roupa.
E aí eu chamei o Estevão, o meu marido que é quem filma, dirige e produz.
E falei "Estevão, filma, filma!" Achando que aquilo era a coisa mais distante
que eu já havia vivido, a coisa mais distante do meu mundo.
De repente essa mulher pára de bater o pilão para fazer o quê?
Atender o seu celular.
Até foi a capa do The Economist semana passada.
Lembram-se? Uma mulher com aquela roupa, lembrei-me dela.
Aí, ela começou a falar alguma coisa que eu não entendia.
Bom, meu mundo caiu.
E aí, pois é. Bom.
Tem uma outra história que eu gosto muito.
Como tem aquela música, "Last Night the DJ Saved My Life"?
Essa eu chamo "Last Trip The iPod Saved My Life".
E "save" mesmo.
A gente estava chegando em Clichy, na periferia de Paris.
Lembram-se? Que em 2005 eles atearam fogo em tudo.
Aquele conjunto habitacional e tal.
E aí, era uma garota francesa, eu e o Estevão, e um cara atrás,
o câmera, três pessoas.
E a gente tinha marcado com um local, como a gente faz aqui, quando vai na favela.
Tem um cara que vai chegar lá para ser o guia, te orientar.
Aí, a gente foi entrando em Clichy, já começou a ficar tudo diferente, estranho,
a gente foi entrando e o cara não aparecia.
Choveu, e ele teve que ir buscar a filha no colégio,
e deixou a gente na "roubada".
A garota francesa, que nunca tinha ido lá, que estava dirigindo,
começou a ficar com medo e foi entrando cada vez mais.
E aí parou para pedir informação onde? Vou falar em português claro:
na "boca".
Bom, na hora em que ela parou o carro ali, em cinco minutos a gente estava cercado
cada negão do Senegal, da Costa do Marfim, todos batendo no vidro assim.
"Pára de filmar agora! Desce do carro!"
Um clima assim, bem amedrontador, todo mundo intimidando a gente,
primeira coisa que eu fiz para sair do carro: "Eu sou do Brasil."
É que isso no aeroporto hoje em dia é péssimo,
principalmente para uma pessoa com a minha cara ou como o meu marido que é
aquele, tipo assim que pode ser do argelino ou mulatinho brasileiro.
Agora já nem revistam a gente depois, já pegam ele dentro do avião.
A última vez em que a gente foi a Paris, o cara já pegou dentro.
Assim como fecha portas no aeroporto dizer que é brasileiro,
quando você chega na favela ou na periferia de qualquer cidade do mundo, isso ajuda "à beça".
Bom, aí o cara falou: "O que é isso? Está filmando o quê?!"
Então eu peguei o meu iPod vídeo e mostrei para ele o último programa, sem pensar muito.
Que era esse que vocês viram na Cidade de Deus. Lembram-se?
Para quem conhece, aqueles prédios são do "AP", uma área da Cidade de Deus com apartamentos.
O cara, o chefão, eram vários,
ele olhou ali e - por tudo o quê é mais sagrado - ele olhou
e fez assim: "Cidade de Deus!"
Aí eu olhei para o cara e falei: "Milagre."
Aí ele olhou para mim e falou assim: "Dadinho é o caralho, meu nome é Zé Pequeno, porra!"
É!
Não tem para Ronaldo, não tem para Pelé, não tem para ninguém.
Aí, eu falei: "Pois é, olha só, a gente estava lá." Ele viu que eu estava lá.
A partir daí, abriram-se todas as portas. Ele me mostrou tudo em Clichy, me apresentou todo mundo.
Nem precisou mais do cara. Ficou tudo tranquilo.
"Last Trip The iPod Saved My Life".
O quê o Brasil tem para oferecer? Eu acredito do fundo do meu coração.
Gente, eu acho que a gente pode se tornar a vanguarda anti-gueto do século 21.
Acho mesmo.
Eu acho que a gente tem soluções muito originais.
É claro que existe racismo, preconceito, injustiça. Viver numa favela é terrível.
Mas, tem alguma coisa que foi se processando apesar de todos esses pesares
que gerou uma maneira original de conviver com as diferenças.
Eu acho que onde as pessoas têm mais medo da gente, onde parece que a gente é pior,
a gente pode ser o melhor.
eu acredito nisso com a maior convicção.
"Ó",
se eu pensar que o mundo daqui para a frente, igual o Brasil virou, é tudo separadinho, igual americano.
Se eu pensar -- eu não quero que o futuro do mundo seja um bailinho de terceira idade,
que velhinho só dança com velhinho... Chato!
Não pode ser só gay com gay, preto com preto, branco com branco, criança com criança,
velho com velho... Então vamos imaginar esse futuro juntos?
O velhinho banguela dançando com a gostosona, com as crianças todas passando,
a velha gordona dançando com aquela bicha louca.
E essa bicha louca, ela foi para a pista porque tocou a música
que fez o maior sucesso no verão passado na Bahia, do Gerônimo, que é um compositor que eu adoro.
Já ouviram essa música? "Direito do Viado".
Está gravada e é isso mesmo. A música diz mais ou menos assim:
"Na Bahia a lei agora não tem discriminação.
Quem discriminar viado, pode até ir para a prisão.
Samba, viado. Quebra, viado. Samba, viado."
Aí, as bichas todas levantam, e tudo que é viado vem para a pista e começa a dançar.
É isso que eu sonho,
e eu acho que é isso que a gente tem para oferecer para o mundo no futuro. Obrigada.