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No quotidiano, como professora
as leituras de gênero, de sexualidade e de diversidade
me auxiliam numa mediação intencionada.
A todo momento as crianças apresentam
as relações que já estão instituídas
desse lugar que é marcado culturalmente pelo masculino e feminino
e a necessidade de mediações.
É no espaço educativo que as relações de gênero
são construídas também assim como o espaço,
as questões de sexualidade.
Há uma demarcação, já no contexto familiar,
da diferenciação do masculino e o feminino
mas é na escola que muitas vezes isso tem eco, né?
É também nesse contexto institucional
que as crianças aprendem a diferenciar,
aprendem as desigualdades
aprendem a como lidar com a diferença.
Essas leituras de gênero me permitem qualificar
essas diferenças nas relações com as crianças...
... a não silenciar, a demarcar outras possibilidades...
Por exemplo, no teatro,
pensar que há uma possibilidade, sim,
de que uma personagem representada
por um feminino, por exemplo
uma rata casar com outra rata.
Nesse espaço educativo, eu brinco com os professores,
a ideia das crianças poderem transitar
entre aquilo que é demarcado culturalmente como masculino e feminino,
que é interessante
e então eu me pergunto o que é ser uma professora feminista na educação infantil,
quando eu faço essa pergunta, pra mim,
fica muito claro que para além de uma mediação,
de uma construção das diferenças,
da diversidade
não é só demarcar que há relações hierárquicas entre homens e mulheres
e sim pensar como a diferença pode ser qualificada para as crianças, né?
As crianças observam a diferença
a diferença de uma criança com deficiência
a diferença entre meninos e meninas,
eles constroem essas diferenças nesse contexto.
Como nomear, como qualificar,
como permitir o trânsito das crianças é algo que as leituras
de gênero e diversidade me permitem, como professora.
Um tempo atrás se pensava que as questões de gênero e sexualidade
estivessem pra além dos muros, pra fora dos muros escolares.
Hoje a gente já percebe que é uma questão identitária,
é algo que constitui as crianças.
No quotidiano elas vão olhar pra essa diferença,
elas vão aprender a nomear.
Como mediar esse processo que é importante
porque a gente vai dizendo, nessa mediação pedagógica,
que é uma relação intencionada,
a gente vai constituindo sujeitos, a gente vai construindo verdades.
Então, no momento em que as crianças estão observando
a diferença étnica, racial, a diferença corporal,
a intenção é ficar qualificando essa diferença, demarcando essa diferença
numa perspectiva que ela seja transitória.
Essa diferença, ela se constitui, mas as crianças podem estar
transitando entre as cores, como é muito, uma questão muito presente
das meninas e meninos estarem diferenciando que, pelas cores,
o que deve ser de menino, o que deve ser de menina,
a possibilidade do trânsito dos meninos usarem
aquilo que é considerado, no universo do feminino, por exemplo,
uma roupa de Cinderela, um vestido de noiva.
A possibilidade das meninas brincarem com carrinho, como acontece o tempo todo,
porque elas querem brincar com aquilo que provoca,
que permite o movimento
e isso fascina as meninas assim como fascina os meninos também.
Maquiar-se, assim como fascina os meninos,
brincar, muitas vezes, de pintar a unha,
e ai em relação aos meninos isso é um tanto violento.
Muitas vezes, a relação que se tem com os meninos,
quando se diz pra eles que eles não podem chorar,
quando se diz que eles não podem transitar
por aquilo que é considerado do universo feminino,
muitas vezes eles querem brincar de se equilibrar com o salto alto.
Não necessariamente eles querem usar um salto alto
pra ser uma referência do feminino e da mãe, em si.
Eles estão construindo essas identidades de gênero
que é o que a gente chama de culturas infantis.
Faz parte do universo das crianças olhar para as cores.
Imagina um menino olhando pro guarda-roupa da mamãe e do papai,
o guarda roupa da mamãe é cheio de adereços, é cheio de cores,
é cheio de brilhos e essa criança vai ficar fascinada
pelas cores, pelos brilhos, pelos adereços.
Eu já vi um menino pedindo pra usar o vermelho na unha
porque ele tava dizendo que era a cor da Ferrari.
Eu vi também um menino querendo usar o vestido de Cinderela,
olhando mais de perto, tendo uma sensibilidade, um exercício de alteridade.
Enquanto adulta a gente vai perceber que muitas vezes,
é o que esse menino nos disse claramente,
que ele queria ser o papel central, porque o papel do príncipe é o papel,
por mais que tem toda uma representação uma construção...
Ele chega no final da história
por mais que tenha uma construção idealizada que
é ele que vai trazer a felicidade pra princesa,
é casando que ela vai ser feliz né?
Assim como tem a brincadeira que as crianças estavam brincando agora
toda uma construção de gênero da “Bela e a Fera”.
Ele se transforma em fera porque era um moço muito vaidoso,
muito rude, que se transforma na Fera,
vai pra um espaço do castelo e é a Bela que salva.
Então há toda uma representação e uma construção
idealizada desse lugar, que a mulher transforma o homem.
O que eu acho importante demarcar, enquanto professora,
o currículo, a proposta pedagógica, um currículo culto, aquele que a gente chama,
ele está instituído das relações que a gente tem,
nas relações, da verdade que a gente diz, de como a gente vai nomeando,
como a gente vai permitindo, o que a gente vai reforçando,
na relação entre as crianças.
Quando os meninos começam a perceber
que eles podem usar a força física fazendo referência à força e à virilidade
pra intimidar as meninas, para elas cederem o brinquedo,
as meninas passam a ficar temerosas com isso.
Então, como professora é mediar:
“meninas, vocês não precisam ficar com receio,
com medo dos meninos, vamos conversar”
como aconteceu recentemente.
As meninas não estavam permitindo que um dos meninos brincasse de casinha,
isso é uma construção também e há necessidade de mediação.
Então, a gente tenta incluir esse menino na brincadeira de casinha,
no entanto ele percebe que permanece um pouco e depois o fascínio dele
é tirar a colher de pau com que as crianças estão brincando, com o bolo.
E ele sai correndo, e aí as meninas vem dizendo que estão muito bravas
bravas e quando ele se posiciona de um modo que lembre um pouco da força,
da virilidade, ele faz “Urrrrrrrrrr”,
as meninas ficaram temerosas né, e nesse momento eu disse:
“Meninas, vocês podem conversar com ele, vão lá negociar
pra ele ir lá arrumar a casa, convida pra ele brincar com vocês,
ele pode ajudar a fazer a comida com vocês, ele pode fazer o bolo com vocês”
e essa fala constrói a relação, que lugar é esse que as meninas podem ocupar
que lugar é esse que os meninos também podem ocupar, brincando de casinha.
O tempo todo, no quotidiano das instituições,
essa mediação pedagógica seja nas brincadeiras,
seja contando uma história e mesmo quando as histórias clássicas
trazem essas representações, esses lugares demarcados,
da princesa, princesas brancas, princesas loiras, né?
Por mais que eu traga a história da “Princesa Sabichona”,
a princesa Sabichona ela não quer se casar, ela anda de moto,
ela usa roupa de couro, no entanto, o cabelo continua claro,
a menina continua branca, né?
E mesmo que a gente esteja contando esses clássicos
ou trazendo essas histórias, muito presentes,
da Disney em todas essas demarcações generificadas,
é importante a gente possibilitar, no diálogo com as crianças,
outras falas, que incluem outras diferenças.
No teatro, incluir a possibilidade
da ratinha casar com um personagem feminino, né?
Que a dona Baratinha, que é o caso que ela quer casar, que ela possa,
quem sabe, não fazer referência só ao ratinho, o papagaio, o galo, o cachorro
e sim fazer referência também a um personagem feminino,
incluindo essas possibilidades, assim como a gente dialoga de incluir as outras,
os outros arranjos familiares, as outras diferenças étnicas
e ali inclui o papel da escola da parceria, ou num diálogo com as famílias.
Para as famílias é bem importante ter claro que nós, professores,
temos um lugar diferente né?
Nós somos técnicas, nós somos profissionais,
nós não somos tias, né?
Nós somos profissionais que estudamos.
O lugar de referência da escola muitas vezes é uma referência diferente do contexto familiar,
tem um lugar de respeito, tem que deixar demarcado pros pais que é assim
o respeito à questão religiosa, o posicionamento deles,
mas também no espaço educativo há um lugar do conhecimento,
há uma possibilidade da gente trazer outras relações homoparentais,
outras constituições de família, as possibilidades dos meninos transitarem,
as possibilidades de ser outro, ser homem de outros modos.
E é importante ter esse diálogo com a família, na medida em que
os professores ficam muito temerosos achando que os pais vão cobrá-los
uma posição construída dentro da heteronormatividade.
Mas o que eu vejo quotidianamente, com as famílias,
é uma valorização desse outro lugar político que a gente tem no quotidiano da escola,
porque muitas vezes, eles não sabem como falar pras crianças,
não sabem lidar com as questões de sexualidade,
não sabem como nomear pras crianças.
Eles me dão um retorno positivo em relação a isso.
Quando eu trago alguma história,
o príncipe Cinderelo casou com uma princesa,
mas esse príncipe poderia casar com outro príncipe,
assim como a princesa poderia casar com outra princesa.
As crianças chegam contando,
eu mesmo demarco para as famílias em reuniões pedagógicas
e eles me dão um retorno positivo:
“Professora, que bom que você está incluindo essas possibilidades,
que bom que você tá falando disso, que a gente fica muito em dúvida
como nomear com as crianças, como falar com as crianças...”
E as crianças vão qualificando a diferença,
isso que é muito interessante da gente observar né?
“Ah, então quer dizer que o meu amigo tem uma cor de chocolate,”
que é como elas vão dando nome, vão..
“Então quer dizer que meu amigo tem o cabelo de molinha?”
As crianças vão trazendo essa referência,
vão qualificando essa diferença,
que é isso que a gente vai permitindo e mediando né?
Nomear as diferenças e qualificá-las,
dizendo que é possível ser meninos de diferentes modos e meninas de diferentes modos.
E essa história que a gente vem brincando com as crianças,
que eu ouvi de uma professora aqui da UFSC faz muito sentido né?
Quando eu conto pra elas, “Olha, muito tempo atrás
inventaram que o rosa era só de menina, pros meninos ficarem
com todas as outras cores pra eles, né?”
Então naquele dia em que passei a mediar e contar pra eles,
reiterar esse discurso pra permitir o trânsito né?
Os meninos começaram a querer olhar pra sandália rosa das meninas
e querer brincar, de vestir a sandália rosa das meninas, né?
Então, meu nome é Mauro, estudante de pedagogia,
estou aqui no NDI desde o começo do ano,
tenho 20 anos, estou na terceira fase.
Quando eu comecei a trabalhar no NDI,
senti um estranhamento num grupo que eu estava, que eu era volante.
Quando uma família estava fazendo adaptação com a criança
uma da família falou assim pra mim:
“Não chega muito próximo dela, porque ela tem medo de homem”.
Eu senti esse estranhamento, aí eu me retirei da sala.
E hoje em dia, no grupo que eu estou, que é o grupo seis,
um trabalho muito bom, lá, muito legal,
a professora, a bolsista que trabalha comigo
e não sinto nenhum preconceito lá...
Tudo tranquilo...
Teve um dia em que eu contei a história do “Príncipe Cinderelo”,
todos eles adoraram e ainda depois houve brincadeiras com a história.
Teve um dia que foi marcado um passeio pra Lagoa do Peri, com o grupo seis.
Nesse dia choveu e as crianças estavam muito agitadas
porque elas estavam com biquíni, sunga.
Acho que pra acalmar essa euforia deles surgiu uma ideia comigo
e com a professora do grupo, a ideia de fazer um desfile,
a gente montou uma passarela com os tapetes, ai aconteceu o desfile,
os meninos de sunga, as meninas de biquíni, fizeram pose, foi bem legal, foi bem bacana.
É no espaço educativo que as crianças conhecem o corpo do outro,
as crianças tem os seus primeiros jogos sexuais,
tem suas primeiras trocas afetivas,
tem os primeiros reconhecimentos.
Então é extremamente importante olhar pra aquilo
de uma forma de reconhecer, de nomear e de não punir, principalmente não punir.
Eu lembro que uma professora contou que em um determinado ela chegou do parque e viu
duas meninas, uma de frente para a outra, nuas se olhando.
E ela disse para as meninas, muito espontaneamente:
"“Ah, isso é coisa de puta”.
Ou seja, essa é uma fala, pra mim muito agressiva, né?
Assim como em outro contexto as crianças desenhando a sua família,
a menina desenhou o seu pai biológico, o companheiro do pai e a professora disse:
“Cadê tua mãe?”, dando a entender que isso não é uma família.
Então é extremamente importante nomear pras crianças
e a gente falando num espaço educativo que é um espaço informado,
que a nossa relação é informada, ela é intencionada, técnica.
É importante a gente nomear, por exemplo, quando as crianças tão no banheiro.
Eu lembro de uma cena recente, quando o menino faz xixi sentado
e outro faz xixi de pé e ele passa e o menino que faz xixi sentado
passa a olhar o menino que faz xixi de pé,
ele chega a se encurvar perto do bacio para olhar o colega.
Geralmente nas relações fica um silêncio
e as professoras contam muito do desconforto
quando as crianças estão se masturbando,
em querer tirar essas situações,
tirar daquela situação porque não sabem como lidar.
É extremamente importante nomear,
permitir que as crianças reconheçam sim e aí eu perguntei pro menino:
“Ai, o que que você tá vendo?”
Ai ele apontou: “Isso!”
dai eu: “Ah, você tá vendo isso o que?”
E no primeiro momento, nesse olhar de adulta eu entendendo,
ah ele tá vendo o amigo fazer xixi, daí ele apontou, aí eu disse:
“Ah você tá vendo o pênis do amigo, né?”
E a menina sentada no outro vaso ao lado que estavam três crianças no banheiro disse:
“Ai 'profi', eu também tenho um pinto”.
Então é extremamente importante, no quotidiano educativo,
muitas vezes nomear do termo, do termo correto, científico né?
Cuidando com aquelas, com as nomeações
que também tem umas construções, por exemplo: aparelho reprodutor né?
E não aparelho ***, que o aparelho reprodutor denota
o tempo todo que se atrela a relação *** à reprodução, né?
Cuidar com isso também, no entanto é importante
também olhar pras crianças que estão conhecendo seu corpo
não de uma forma punitiva,
a mesma coisa as crianças se tocando na sala de aula né?
O que eu escuto, é relato dos professores dizendo:
“Ah, eu tento distraí-la, eu tento tirá-la de cena pra que isso não aconteça” né?
Então conseguir entender que a infância, as crianças, não são assexuadas.
Desde o momento em que elas tão sendo higienizadas como bebê,
que elas estão mamando, elas tem prazer com isso né?
Assim como elas vão ter prazer em tocar o seu corpo,
assim como elas vão ter prazer em olhar o corpo do outro
e o modo que a gente vai mediando é o modo que
elas vão aprendendo a lidar com seu corpo, né?
Aprendendo que algumas coisas não podem, né?
Quando as crianças estão brincando escondido e a gente chega e elas,
a menina e o menino tão, tão olhando um pro outro,
quando elas percebem que o adulto chega, elas abaixam o vestido,
o menino puxa as calças e eles olham pra gente e dizem:
“A gente só tá brincando”.
Ou seja, eles já sabem que existe um lugar que é proibido né?
Algumas coisas em relação ao corpo,
em relação a gênero, elas sabem o que não é permitido,
aquela história também dos meninos não transitarem entre as cores.
Elas aprendem isso no quotidiano da família,
no quotidiano social,
só que às vezes elas têm esse eco essa...
A instituição educativa, por meio desses professores reitera
esse discurso e é importante que a gente faça o movimento contrário,
que a gente possa ser uma referência outra,
que a gente problematize essas questões,
que a gente questione essas questões,
que a gente coloque outras referências, outras referências em vista.
Eu acho que o lugar do profissional da educação
e esse lugar que vai discutir gênero,
é permitir que as crianças transitem e possibilitem elas a transitarem
para além daquilo que é normativo e determinado culturalmente,
da qual a gente possa fazer uma leitura crítica
dessa conformação dos corpos dessas crianças.