Tip:
Highlight text to annotate it
X
A comemoração não era das mais conhecidas do calendário oficial.
Nem o aniversário correspondia a uma data redonda,
o habitual para comemorações especiais.
A homenagem era feminina,
e assinalava 31 anos de governo,
contados a partir de 1928,
o longínquo ano em que Salazar chegara ao poder,
então como Ministro das Finanças,
iniciando um Consulado que, sendo já longo,
as manifestantes querem que permaneça.
A manifestação inundara as imediações engalanadas da residência oficial de São Bento,
invadira mesmo os seus jardins privados.
Os serviços do Palácio
substituíam as paredes graves das assembléias masculinas e cinzentas
conforme a época e os ritos do regime.
Em vez disso, mulheres e flores
numa simbologia sem inocência política.
"Deviam inverter-se as situações
e havia de ser eu
a ofertar-vos as mais lindas flores,
não tanto como recordação desta hora,
mas em reconhecimento
de quanto se deve, nesta cruzada nacional,
à mulher portuguesa.
As mães, as esposas, as irmãs,
as filhas dos portugueses,"
Salazar parece falar para mães, mulheres e irmãs
de futuros soldados,
na cruzada pelo Ultramar
já iniciada há anos.
"Elas servem de apoio
aos que são tentados a descrer,
e hesitam,
e se perturbam,
com dificuldades que vós não receais,
e nós estamos seguros de vencer."
Salazar, talvez mais seguro dos desafios que terá pela frente,
do que da vitória sobre eles.
De fato, três décadas depois de instaurado,
o Estado Novo começara a mostrar fissuras,
que se foram acentuando gradualmente
e de que não mais recuperaria.
As nuvens foram se acumulando no horizonte do regime,
quer no plano interno, quer no plano externo,
com especial incidência no tema dos territórios ultramarinos.
E a começar pelo chamado Estado da Índia,
o quadro agravava-se em meados dos anos 50.
Em Bandung, após uma já longa luta contra o predomínio branco,
consagra-se definitivamente a tendência
que nos pós-guerra visava o fim dos impérios coloniais.
Liderados por Sukarno, Nehru e Nasser,
os povos de cor da Ásia e da África
revoltavam-se contra o poder do Norte do Mundo,
exigindo liberdade e independência,
respeito pelos direitos humanos,
consagrados na Carta das Nações Unidas.
Contra estas aspirações,
era difícil a Salazar descobrir grandes argumentos,
na anacrônica realidade das colônias,
que ele, aliás, não quis conhecer diretamente.
Nunca passará do aeroporto,
onde apresenta cumprimentos aos presidentes
cujas visitas prefere patrocinar.
Craveiro Lopes vai a Moçambique,
pouco mais de um ano após a Conferência de Bandung.
É presidente há 5 anos, desde 1951,
quando, tentando iludir a pressão das Nações Unidas,
Portugal passa a chamar províncias ultramarinas
aos territórios que até aí designava por colônias.
Esta palavra, tal como "império",
será excluída da linguagem oficial.
A Moçambique, o Presidente falará de "províncias"
e de "ultramar".
As novas palavras e algumas reformas
não trazem mudanças que anulem as críticas,
ou beneficiem diretamente as populações.
A ordem social continua a distinguir entre brancos e pretos,
e estes, entre os indígenas e assimilados,
conforme a Lei do Indigenato.
Foi um documento feito com a melhor das intenções
mas que depois, naturalmente,
se transformou numa verdadeira barreira
à integração
das populações.
O número de assimilados em 1960 era ridículo
em relação à totalidade da população.
Todo o indivíduo que soubesse ler e escrever
e fizesse exame de instrução primária
e tivesse uma vida que fugisse ao comum dos usos e costumes nativos
passava a ser considerado um assimilado,
era assimilado a branco.
Havia aquela situação de que
os assimilados deviam estar na zona dos brancos.
Então a minha mãe quando me acompanha,
de Buzi para a Beira,
entramos no barco,
a minha mãe estava na zona dos indígenas,
e eu estava na zona dos assimilados.
Mas eu fiquei muito chocada.
Era preciso saber falar bem o português,
era preciso não falar as línguas nativas, como diziam, a língua dos pretos,
que era a língua de cão,
Na Guiné, na altura, havia dificuldades enormes,
havia até separação de classes sociais,
havia grupos considerados civilizados, e outros considerados indígenas,
Havia a Caderneta do Indígena,
uma espécie de Bilhete de Identidade,
e havia o Bilhete de Identidade.
Eu tenho uma da era colonial de três folhas,
Mas, para conseguir aquilo, o amigo tinha que ter a Quarta Classe.
Além da Quarta Classe, querem saber mesmo, na Administração,
como é que a pessoa vive.
O assimilado, portanto, era o elemento mais aproximado dos brancos,
podia conversar com eles,
podia, quando fosse necessário mesmo, ser admitido a uma mesa,
a um convívio qualquer.
Ser assimilado dependia do Governador do Distrito,
e de um conjunto de requisitos
do âmbito escolar ao social.
Julgando-se nas condições necessárias,
o africano sujeitava-se então a um processo burocrático,
em que pedia para ser assimilado,
declarando já não praticar os usos e costumes indígenas.
Aqui em Lourenço Marques, para ter este documento,
tinha que ter quatro testemunhas.
Meu avô arranjou quatro testemunhas,
e cada testemunha tinha que ser pago 20 escudos,
para poder ter,
e com esse documento já,
bilhete de identidade de assimilada,
já podia fazer exame da Quarta Classe.
A partir da Quarta Classe, desse documento,
eu já sou assimilada.
Quer dizer, eu sou branca já,
posso estar no lado dos brancos.
Então já não posso estar com as indígenas.
Havia uns moçambicanos que tinham cultivado a assimilação.
Se faziam de assimilados, quer dizer,
quando viam os outros, viam que eram... de classe inferior.
"Esse não foi assimilado, portanto, não é igual a mim".
O caráter multiracial das colônias portuguesas,
tal como era apresentado pelo Governo,
surgia sempre sublinhado em reportagens estrangeiras.
Onde a imagem de convívio racial era invariavelmente afirmada
em oposição ao apartheid,
em vigor na África do Sul.
Éramos dois, era eu e uma portuguesa.
Ela ganhava o dobro do meu salário,
mas ela não tinha sequer a Quarta Classe.
Eu já estava no Segundo Ano do Ciclo Preparatório.
Eu era mais habilitado,
mas infelizmente ganhava menos.
Uns eram chamados Enfermeiros do Quadro Europeu,
e outros de Enfermeiros do Quadro Indígena,
mesmo os mestiços que gozavam de nacionalidade portuguesa,
da cidadania portuguesa.
Passavam para o Quadro Indígena,
onde ganhavam 1/3 ou 1/4 do que ganhava um Enfermeiro do Quadro Europeu.
De modo que eu então pergunto: - "Sr. Brito, como é que eu, com mais instrução,
ganho menos?"
- "Mas... qual é a sua dúvida?"
"Você é preto!"
Eu disse: - "Não, mas eu sou português,"
"como é que... então não está dito aqui, no Bilhete de Identidade,"
"cidadão português, como é que é?"
E ele disse "Não, isso é o que está escrito, mas... tu tens dúvida que és preto?"
Eu disse, "Não, não tenho dúvida." - "Então pronto, é isso, ela é branca,"
"tem que ganhar mais."
Havia separação,
a separação natural e sem brutalidade, é claro.
Mas... havia.
E como de costume, sem paternalismos nem nada,
tínhamos amigos de cor.
Lá em Moçambique não havia como em Angola
só brancos e pretos,
e mulatos.
Em Moçambique havia uma força muito grande que eram os indianos.
tratados por "monhés",
e que eram a força, uma força econômica de Moçambique,
e que faziam um bocado de vida à parte,
até de iniciativa deles.
Mesmo os mestiços, nalguns locais,
fundamentalmente na Beira,
- isso aconteceu comigo, não poder cortar cabelo
num salão chamado "salão chique".
Que não era nada de especial,
mas era um salão de corte de cabelo reservado aos brancos.
Lugares em que não nos deixavam entrar, por exemplo, o Hotel Polana.
Houve lugares donde eu fui expulso,
mas do Hotel Polana eu nunca fui expulso por uma razão muito simples:
nunca ousei lá entrar.
Quando inauguraram o Grande Hotel,
tinha lá uma piscina no Grande Hotel, era só para brancos.
Isso na Beira.
A Beira foi ponto fundamental do racismo.
Em contrapartida, Zambézia e Tete
já não tinham tanto racismo.
A cidade da Beira mantinha bastante contato com o exterior,
sobretudo devido às suas praias.
No início dos anos 60,
recebia cerca de 50.000 turistas por ano.
Era idêntico então o número de habitantes da cidade,
que era a segunda de Moçambique,
no seu desenvolvimento.
Se aqui a incidência do racismo era atribuída à herança da presença inglesa,
noutros lugares era resultado do próprio sistema.
Se excluirmos imagens deliberadamente criadas
para ilustrar a política multiracial,
mesmo os assimilados, portadores, portanto, da cidadania portuguesa,
raramente acediam aos meios frequentados por quem se movia
nos círculos do poder,
fosse político ou econômico.
E isto, em qualquer dos territórios.
Mais ou menos integrados na sociedade média branca dominante,
mais ou menos aculturados aos hábitos europeus,
os chamados "civilizados" eram muito poucos.
Em Angola, no final de 1958,
os assimilados eram menos de 60.000,
para uma população superior a quatro milhões de pessoas.
Em Moçambique e na Guiné,
as percentagens eram ainda mais baixas.
Fosse por incapacidade ou desinteresse
na elevação, pela escolaridade, dos africanos,
a orientação colonial permitiu apenas
a formação de um pequeno número,
que recebeu a cidadania portuguesa,
e assim pôde ascender na escala social.
Professores, enfermeiros, funcionários,
profissões existentes sobretudo em áreas urbanas,
a começar por Luanda,
cuja organização refletia a arquitetura social vigente.
Havia um certo grau de separatismo,
não tão evidente nem profundo como o da África do Sul,
mas havia realmente zonas distintas aqui ao nível da cidade.
No centro, a vila onde havia preponderância dos brancos,
dos agricultores, dos fazendeiros, dos donos das lojas,
onde muito a custo se integravam alguns mestiços.
Na parte sul da vila,
um bairro quase que exclusivamente de negros,
absolutamente negros.
Cá para baixo, em direção a Luanda,
outro bairro, Mossafo, que era essencialmente um bairro crioulo,
onde 90% dos habitantes eram mestiços.
Havia a Baixa, onde, por excelência, viviam os europeus,
havia a parte alta da cidade,
onde europeus mas também já alguns angolanos,
mas na sua maioria assimilados,
funcionários da função pública,
e a maior parte dos africanos, dos angolanos, vivia precisamente nos musseques,
nas zonas periféricas aqui da cidade.
Tive sempre Bilhete de Identidade de cidadã portuguesa,
nasci no bairro das Ingombotas, em plena cidade de Luanda,
mas nós éramos os únicos negros naquele bairro.
Eu nunca tive problemas, lá.
Mas cada vez que eu saía do bairro
e andava noutros bairros,
eu já era "macaca".
Porque ali toda gente sabia que era a Amélia, mas ali já era "macaca"
... que as divisões várias dos africanos que viviam na Baixa
portanto, na cidade mesmo,
pronto, era bastante considerada, quer dizer, as famílias que viviam aí,
e depois empurradas para os musseques
daí houve uma estratégia do colono de nos empurrarem a todos para a tal zona periférica
e aí sermos controlados.
Nós mestiços, além de sermos mestiços,
portanto, filho, família de portugueses,
éramos assimilados. Portanto, em relação a nós, praticamente não havia discriminação.
A grande hipocrisia da época era que
Portugal tinha feito uma colonização diferente de todas as outras potências,
que não havia racismo em território português...
A prova é que havia negros, brancos mestiços vivendo harmonicamente.
Mas o que é certo é que o papel social
o lugar de cada um,
era determinado pela sua pele.
A pele funcionava como um uniforme.
e portanto cada um sabia até onde podia ir.
Nos filmes de propaganda
Portugal reagia à pressão internacional
mostrando uma imagem das colônias
bem mais colorida.
Os africanos surgiam abundantemente representados
nos mais diversos escalões sociais e profissionais,
patenteando elevados níveis de formação acadêmica e técnica
que não existiam de fato.
Também o verdadeiro grau de integração racial
estava longe de corresponder ao que as imagens sugeriam.
E por vezes, através de verdadeiros quadros simbólicos.
Porventura mais eficazes do que caricaturas sobre a igualdade racial,
eram alguns exemplos de integração cultural.
O modelo de assimilação portuguesa
aparecia na obra de um sociólogo brasileiro
criador do luso-tropicalismo.
Gilberto Freyre falava de uma civilização resultante
da integração de povos diferentes dos europeus
em que os portugueses se distinguiam de outros colonizadores.
O inglês punha-se distante
(falando com o criado) "O Sr. faz favor de me trazer um copo de água.."
"Faz favor...", "If you please..."
O português não diz o (por favor)
não dizia...
Ele diz "Ó preto! Traz-me...", "O patrão quer aqui água para isto...", "Ó preto! Traz..."
Faziam isso, aquele nível.
Mas, olhe, essa troca de tratamento
- isso é mesmo curioso, isso só o português é que pode fazer -
essa troca de tratamento mesmo assim criou amizade.
Ele diz "O patrão fala-me aqueles nomes,
mas também, quando eu tenho problemas, ele resolve todos."
E estava contente.
Os portugueses não eram racistas
como se verificava na África do Sul,
e também não tinham estranho como faziam os ingleses,
Eram mesmo humanos.
Claro que havia alguns... Mas são poucos,
mas o resto não.
No tempo da luta dizíamos: "A relação entre cavalo e cavaleiro"
Há homens que gostam do seu cavalo.
gostam de andar a cavalo,
gostam, e tratam, e...
mas o cavalo fica embaixo e o patrão senta em cima.
É isso que as pessoas diziam.
não queremos essa relação de cavalo e cavaleiro.
Havia um sentimento realmente muito forte de temor,
de respeito temeroso,
para com o branco, não havia realmente aquela aproximação
que se pensaria.
Claro que no meio disto tudo há exceções.
Havia aquelas famílias brancas
que tratavam os seus criados negros
- não havia criadas brancas, nem criados brancos -
e tratavam-nos bem
com carinho, com amizade...
Até havia brancos que mal sabiam escrever,
mas por serem brancos, eram mais considerados
muito mais do que um ***,
embora este *** tivesse preparação acadêmica.
As Senhoras Marias
tornavam-se todas Senhoras Donas Marias quando atravessavam o Equador.
Quanto mais baixo era o estrato social, mais aquilo de ter três, quatro criados,
pessoas que toda a vida tinham servido, de repente viam-se dando uma de patrão.
O relacionamento que havia naquela altura era o do patrão e do empregado.
Portanto não havia aquele relacionamento de uma amizade...
... profunda, uma amizade assim de carinho.
Nunca houve o convívio, eles eram criados e nós éramos...
éramos patrões, éramos senhores,
isso nunca houve, ninguém pode dizer que houve,
mesmo no final, quando saímos de lá em 74, não havia.
Os negros que chegavam até à Terceira Classe
era nas Missões.
Nas Missões é que aprendiam a ler e tal.
Nas escolas oficiais, do Estado, não havia.
Não havia escola.
para moçambicanos.
No tempo colonial, podiam-se contar as escolas, por exemplo,
aqui no Sul, mais ou menos, mas no Norte, era muito difícil.
As escolas que havia no Norte
eram das Missões, dos padres.
Não se abriam escolas, não se criavam escolas,
sem que houvesse uma população infantil branca
que o justificasse.
A escola era para os brancos,
os negros em princípio iam para as Missões
católicas, de preferência,
fora disso, para as Missões Protestantes.
Criança considerada indígena,
seu único acesso à escola era através da escola da Igreja,
não podia frequentar as escolas oficiais.
porque para se ir à escola oficial tinha-se que ser "civilizado"
e para ser "civilizado" era preciso ter a Quarta Classe.
Os indígenas só podiam frequentar escolas missionárias
e os não-indígenas, ou seja, cidadãos
poderiam frequentar ...cidadãos ou estrangeiros, mas não indígenas,
podiam frequentar as escolas oficiais.
Excepcionalmente podia ser admitido um ou outro indivíduo,
filho de um pai que já tivesse sido...
sem ser assimilado, já atingisse determinado nível.
mas os filhos dos assimilados, mesmo que fossem pretos,
esses tinham direito a ir,
porque estavam inscritos no Registro Civil.
A vida social dividia-se em duas partes:
a dos indígenas que tinham caderneta indígena
e os assimilados que tinham Bilhete de Identidade.
A divisão começava no ensino,
na educação diferenciada a partir da infância,
e tendia a perpetuar dois mundos.
Por debaixo da imagem de harmonia racial,
aparecia o atraso em que vivia a generalidade dos negros.
Pobres e analfabetos,
não eram considerados cidadãos portugueses
pelo que não tinham quaisquer direitos.
Os indígenas estavam fora do sistema,
não podiam ter advogado,
só com uma autorização especial, o que era muito complicado,
e eles eram julgados nas regedorias
e nos tribunais próprios das administrações...
A vida dos indígenas dependia totalmente de patrões e autoridades
que os identificavam por cadernetas próprias.
Qualquer trabalhador indígena
que vem do musseque para a cidade branca,
quando regressa, tem que levar um cartão.
Esse cartão tem os trinta dias do mês,
e então em cada dia tem que levar a assinatura do patrão,
a dizer que ele foi trabalhar.
Se por qualquer motivo ele não tiver aquela assinatura,
fôr apanhado na rua por um polícia,
podia ficar preso dias consecutivos,
até, por exemplo, os patrões reclamarem.
E eles andavam na rua até às nove da noite,
das nove da noite em diante não podiam andar
a não ser que tivessem um bilhete do patrão a dizer
"Ele vai para casa a esta hora porque esteve no serviço"
porque senão podiam ser apanhados
pelos cipaios polícias e eram
levados para a Administração
e depois iam para os trabalhos forçados.
Quantas vezes já estive nessa situação de ser apanhado à noite...
Ou apanhava 24 palmatoadas,
ou apanhava 60, ou apanhava... sei lá, 48, etc.
Estava estabelecido que mandava-se comprar uma caderneta
e o patrão - ou entidade patronal -
é que o inscrevia e que lhe dava uma caderneta, digamos assim,
um estatuto.
Os nomes das pessoas - dos negros - eram normalmente dados pelos patrões.
O patrão admitia um empregado.
Ou um empregado para casa, ou para...
"E como é que te chamas?"
O gajo lá dizia um nome africano.
"Não, agora vais te chamar... André!"
Ou Joaquim, ou qualquer coisa do gênero.
Ou às vezes coisas esquesitas.
O patrão, o comerciante, os brancos em geral,
eram em si mesmos o poder.
No entanto, em Angola e Moçambique,
o relacionamento entre brancos e negros apresentava características próprias
de cada uma das colonizações.
E também influências de países vizinhos, como por exemplo,
a África do Sul.
O racismo houve, até certo ponto, em Moçambique.
Foi se desvanecendo pouco a pouco...
Agora, se o senhor me disser: "Mas não era qualquer preto que entrava num café!"
É um fato.
Entrava num café se fosse bem vestido, como aqui.
Ainda nessa altura, em 60, 61,
era muito restrito o frequentar os cinemas,
ir a restaurantes,
e mesmo ainda andar nas calçadas...
Ainda era bastante pesado para os indígenas.
Nos ônibus, por exemplo, de 40 lugares,
os negros só podiam sentar-se no banco do fundo.
Tinha só 5 lugares, um banco corrido,
5 lugares... só aí é que os negros podiam sentar-se.
O maximbombo (ônibus) estava dividido em duas partes,
o lado dos indígenas, onde se podia entrar sem sapatos, sem chinelos, não havia problemas,
isso era (típico) dos indígenas.
Os dois terços da frente eram dos brancos,
e se entrasse um *** e se afoitasse a ir pra lá
o pica (cobrador) dizia logo "Lá pro teu lugar!"
Eu assisti a tudo isto!
Isto é o apartheid!
Inclusivamente, no cinema,
quando íamos ao cinema, havia uma separação, uma barreira,
que era a "geral", onde a escumalha ficava.
Portanto, nas cadeiras, só quem tinha hipótese de estar
eram, portanto, os endinheirados.
Por exemplo, mulheres que não andassem de vestidos,
se tentassem vestir panos não podiam entrar nos autocarros (ônibus)
da Câmara Municipal.
Não se podia. Andava-se... Por exemplo, aqui em Luanda foi notório.
Algumas destas discriminações eram na época comuns a outros países,
incluindo os Estados norte-americanos,
onde os negros eram igualmente segregados nos autocarros públicos.
E pareciam até suaves
quando comparadas com a violência que frequentemente simbolizou
o exercício da autoridade junto das populações africanas.
Talvez houvesse um castigo ou outro, corporal,
não digo que não.
É claro que oficialmente eu desconhecia todos esses assuntos,
quer oficialmente, quer particularmente,
nenhuma dessas autoridades falava comigo acerca disso.
mas nós sabemos que, na prática, era o que vigorava.
A autoridade administrativa fazia uso da palmatória.
Isso tudo dependendo muito, portanto, da sensibilidade de cada um.
Eu fui sempre avesso ao uso da palmatória.
Recorri o menos possível.
Mas havia aquelas questões, eu posso citar,
a justiça de gado,
A justiça de gado, entre os balantes,
enquanto o queixado não apanhasse,
dificilmente abriria a boca para dizer "Sim senhor, sou eu, o ladrão"
O indivíduo rouba um porco,
leva uma advertência.
Daí a uma temporada, rouba outro.
e o administrador chamava-o e dizia "Então tu agora és gatuno?"
E dizia "Ó pá, espera aí! Seis palmatoadas em cada mão."
Ficava o castigo dado.
Eu nunca mandei dar palmatoadas,
e havia colegas meus que se serviam da palmatória.
Eu como disse, o meu castigo eram duas bofetadas,
e dois pontapés no rabo (bunda), como diziam,
e estava tudo certo.
Não podia mandar pegar uma folha de papel de 25 linhas
lavrar um auto de notícia,
despachar, etc, porque não tinha funcionários para fazer isto...
Nem para uma centésima parte dos casos que tinha de julgar...
E das duas uma: ou não julgava de maneira nenhuma,
ou julgava de uma maneira que naquele tempo era aceitável.
Os pais, naquele tempo, batiam nos filhos.
Em geral os portugueses evitavam dar palmatória aos régulos.
Mas havia casos em que davam, e davam bem mesmo.
O régulo não podia ser humilhado desta forma.
Mas havia casos em que os administradores davam palmatória ao régulo.
Isso era extremamente grave.
De acordo com a legislação, administradores e chefes de posto,
servidos por polícias, os cipaios,
eram a base da autoridade e da justiça.
Muitos deles, consagraram os castigos corporais,
que não existiam na lei.
Sei de muitos casos
de senhoras que, quando eles, ou quebravam muita louça,
ou não eram tão diligentes assim a lavar,
ou não passavam devidamente a camisa do patrão,
não hesitavam em dizer
"Ai, ai! Tu estás a precisar que eu te leve ao senhor administrador!"
Uma vez ou outra, há casos em que o próprio chefe de posto
não agia tranquilamente.
Mas raramente.
Normalmente, os chefes de posto procuravam cumprir os seus deveres.
Havia também os chefes de posto, e os aspirantes,
que dominavam postos nos centros urbanos,
onde eles eram verdadeiramente os donos dessas populações.
O chefe de posto, dentro dos nativos,
era ao mesmo tempo
Presidente da República,
Chefe do Tribunal,
era tudo.
O chefe de posto é que devia resolver tudo.
Isto é interessante...
Era quase total a autoridade que tinham sobre as populações
os administradores de circunscrição e os chefes de posto.
Com atribuições muito vastas,
controlavam toda a vida de aldeias e povoações.
Da ordem pública à atividade econômica e laboral,
da saúde à limpeza de estradas,
competindo-lhes realizar o censo populacional,
e cobrar uma taxa anual exigida aos indígenas,
o Imposto de Palhota.
Isto quando se limitavam a agir dentro da legalidade.
O meu sogro, o senhor João Gil,
pastor também, protestante,
eu via, todos os sábados,
a entidade administrativa portuguesa em Teixeira de Sousa,
ia lá na casa do senhor João Gil
Semanalmente, aquela missão tinha que dar essas coisas.
Isso é obrigação, não é uma doação.
Quando puderem ser avaliados os relatórios das autoridades administrativas
o chefe de posto, o administrador de circunscrição,
a base,
podem encontrar-se abusos, é evidente,
mas vão encontrar muita devoção,
vão encontrar muita luta contra abusos.
Todo o sistema colonial quer se impor,
quer impor os seus valores,
a sua maneira de ver,
e os portugueses também queriam impor lá os seus valores.
Só que não eram assim como hoje se tem escrito na história,
que era tudo cruel, era tudo a palmatória...
Não, havia também negociações.
Havia coisas...
em que os portugueses achavam que não valia a pena arranjar conflito,
"Vamos falar com ela", e falavam.
Não é verdade que todo o administrador colonial era mau.
Isso não é verdade.
O sistema assentava numa desigualdade,
influenciada naturalmente pela conduta pessoal
de cada um dos agentes da autoridade.
Os africanos desconfiavam da imparcialidade de um poder
que fazia parte integrante do mundo dos brancos,
e assim, acentuava o fosso já existente
entre os dois universos.
Os negros eram outro mundo.
Os negros eram outro mundo.
E havia, sobretudo, da parte do branco
via no administrador, na autoridade,
uma pessoa que os protegia.
O próprio comerciante fazia sua justiça.
A justiça era feita pelo próprio comerciante,
já não precisava recorrer ao chefe do posto administrativo.
Havia aqueles comerciantes que se utilizavam da força do chefe de posto
para cobrar o dobro, o triplo
daquilo que a pessoa tivesse recebido.
Mas também não deixou de haver
comerciantes sinceros e honestos.
Os comerciantes levavam os seus produtos,
em troca, a população vendia e cobria, assim sucessivamente.
Mas durante o funcionamento do mercado,
se você devia na loja de fulano,
em pleno mercado, os comerciantes batiam em pessoas.
E o chefe de posto via.
Quando por algum motivo a dívida não era satisfeita naquele prazo,
havia cenas incríveis de violência, chicotadas,
eu assisti efetivamente a cenas dessas.
O comerciante chega nessa aldeia, ele trazia um caderno com apontamentos,
das pessoas com dívida.
Chega na aldeia, pára, começa a chamar as pessoas uma a uma.
E quando as pessoas chegam ao pé dele, não pergunta,
bate, dá porrada,
e no fim diz-lhe
"Estou à sua espera. Amanhã ou depois tem que aparecer na loja para pagar."
Os comerciantes eram uma peça central
no sistema de relacionamento dos africanos com os colonos.
Nas povoações ou no mato (campo), os cantineiros comercializavam todo tipo de produtos,
desde alimentos a vestuário.
Vendiam as mercadorias, ou trocavam-nas por gêneros produzidas pelas populações
segundo sistemas de crédito que eles próprios definiam.
Os comerciantes tinham a mania de pagar com papel, um vale.
Eles iam lá entregar as suas mercadorias
"Sim senhor, toma lá um vale"
"Depois, quando vieres cá comprar, tu recebes, a gente desconta no vale"
Naturalmente também havia comerciantes portugueses ladrões.
Mas também havia comerciantes portugueses muito honestos,
e que foram muito estimados por essas populações africanas.
Ouvi falar de muitos casos em que as pessoas abusavam,
e abusavam bastante,
porque também eu penso que o sistema
o sistema que existia na altura
também lhes permitia.
Emprestavam por exemplo uns mil escudos e cobravam a dobrar,
e se não se encontrasse um chefe de posto que...
um chefe de posto que atuasse como devia ser e tal...
aí eles abusavam.
Sem estatuto de cidadania que lhes conferisse direitos,
os negros dependiam dos escrúpulos da autoridade portuguesa
fosse política, econômica ou policial.
Nas estradas, nas fazendas, nos caminhos de ferro,
o trabalho forçado era, nos anos 50,
uma prática comum.
Embora formalmente proibida,
tornou-se uma característica emblemática de colonização
quer sob a forma de "contrato" - ou imposição administrativa -
quer como medida correcional - ou disciplinar.
Castigos normais eram à base de porrada,
tudo é à base de porrada.
Você leva porrada, fica uma semana de castigo na povoação,
capinando à volta da Secretaria ou da residência do chefe de posto administrativo
ou então no campo de aviação.
Os indivíduos que não cumprissem
eram detidos - é uma maneira de dizer -
e iam prestar trabalho gratuito para o Estado.
Iam para o "contrato" oficial
ou iam para o serviço de limpeza das estradas.
Ainda fui apanhar presos que andavam com as pernas com guilhotinas
e com bolas, faziam a limpeza da cidade,
trabalhos de capinagem,
no campo de aviação - já havia um campo de aviação em Tete.
Ainda vi gente em Lourenço Marques com galhetas nos pés a trabalhar,
ainda vi...
Ao longo dos anos 50 todos,
muitos e muitos pretos de corrente aos pés
a arranjar os canteiros,
a capinar,
era o trabalho forçado que se chamavam os xibalos,
eram os que trabalhavam à força.
Os nomes podiam variar,
mas o sistema era o mesmo.
Desde os centros urbanos mais desenvolvidos, como Luanda ou Lourenço Marques,
até os confins mais remotos, e com pouca presença portuguesa,
como o Niassa, em Moçambique,
ou o Leste de Angola.
Os meus pais comentavam do sofrimento
porque na zona em que vivíamos recrutava-se tanta gente
para trabalho forçado nas zonas do chá,
na Alta Zambézia,
e recrutava-se também mão-de-obra
para a zona baixa, portanto, ao longo do Rio Zambeze
para trabalho da cana sacarina
produção da cana sacarina
para fabricação de açúcar.
Então este comentário era forte,
que as pessoas iam para lá, ficavam seis meses,
e voltavam e quase que não recebiam nada.
A maioria dos meus irmãos trabalhava nas estradas à força,
havia equipes de cipaios que vinham recrutar gente
para irem fazer estradas.
Então essa atitude
criava o ódio.
Depois de visitar Angola no final da década de 40,
Henrique Galvão, então Inspetor das Colônias,
apresentou um relatório numa sessão secreta da Assembléia Nacional
onde afirmava que
"só os mortos estavam isentos de trablho forçado."
O futuro dissidente do regime
denunciava um sistema assente no trabalho compelido pago ou gratuito
e em que o próprio Estado recrutava mão-de-obra
para empresas particulares.
Pude eu próprio verificar,
depois, quando me foi dado intervir,
na década de 60,
que muitas das coisas que ele disse
correspondiam exatíssimamente aos fatos
agravados entretanto com os anos que tinham decorrido.
O fazendeiro chega ao chefe do posto, faz contrato,
"Preciso de mil homens"
Que tipo de contrato fazia com o chefe de posto ninguém sabe.
Cada aldeia, cada soba, tem que apresentar "x" pessoas.
E o soba vai na aldeia, ali o soba nomeia,
o soba aí já não tinha outra alternativa, é só chegar
"Fulano, e fulano, e fulano
vão se apresentar no dia tal na povoação
para ir no 'contrato'"
Doze meses, um ano.
Ao fim do ano recebiam o seu salário,
e tinham então durante os meses que trabalhavam
tinham o seu sustento, tinham farda,
roupa, roupa para vestir na fazenda,
alimentação...
Era alimento mesmo selecionado só para aquelas pessoas,
eram condições sub-humanas.
O "contrato" existia em Angola e Moçambique
organizado entre sobas, chefes de posto e funcionários
autorizados pelo Estado a recrutar trabalhadores,
os "angariadores",
de quem se dizia que compravam brancos
para vender pretos.
Ele fazia a sua propaganda porque prometia mundos e fundos
e às vezes não cumpria.
Não cumpria.
E noutras vezes o angariador contava com o chefe de posto
com as ajudas do chefe de posto,
e se não encontrasse ficava logo aborrecido
como aconteceu muitas vezes comigo.
Mas havia chefes que ajudavam,
havia outros até... é um assunto que eu não quero me aprofundar demasiadamente.
Aquelas pessoas eram "angariadas"...
... obrigatoriamente,
praticamente obrigatoriamente.
Não tinham recurso,
os administradores também estavam ligados à máquina econômica,
com suborno ou sem suborno, a certa altura eles facilitavam mesmo esse "contrato",
que é um "engajamento",
mandavam os cipaios "Vai àquela (aldeia) buscar três, quatro cinco homens."
E o cipaio vai às senzalas buscar quatro, cinco homens
depois entrega ao angariador, o angariador carrega-os
e leva-os para as fazendas, pelas quais recebem um certo valor.
Os Cuanhamas, as populações do Sul,
fazia parte da sua tradição familiar
ter alguns anos de trabalho nessas fazendas.
quer dizer que - e não recuso que tenha havido algum excesso -
mas a maior parte dos contratados eram voluntários.
No fundo não era um verdadeiro contrato.
Não havia a liberdade contratual.
O vencimento todo, com imposto, era de 400 escudos.
Mas descontado o imposto, restavam 90 escudos.
90 escudos em dinheiro, a 100 nunca chegava, era difícil.
Os pobres indivíduos que tinham as roças de café para onde eles iam trabalhar
às vezes existia um comércio.
E nesse comércio procuravam dar-lhes crédito.
E então eles iam lá buscar a crédito coisas que precisavam,
e depois, quando chegava ao fim do contrato,
já têm... Muitas vezes compravam coisas que não precisavam,
por exemplo, havia indivíduos que compravam geladeiras
coisas que não precisavam nas suas palhotas.
Aquela parte que ele gastava era a parte que recebia.
Outra parte só recebia quando acabava o contrato
na terra de origem.
Então com esse dinheiro
ele comprava, se fosse de Angola, um boi, dois bois,
e adquiria bens que até aí não seriam possíveis.
Portanto, o aspecto positivo era apenas esse.
Uma das formas de contrato era que "x" eles recebiam enquanto estivessem lá a trabalhar,
o outro recebiam quando acabavam o contrato
que era para as famílias não ficarem sem nada.
Tal e qual como nas minas.
As minas de ouro da África do Sul
eram um destino procurado com entusiasmo
por milhares de moçambicanos
também como alternativa ao contrato,
ao trabalho forçado,
ou à falta de oportunidades.
Permanentemente renovada,
esta imigração viria a constituir uma tradição
entre os jovens moçambicanos.
Ir às minas do Transvaal ou da Rodésia do Sul
transformou-se num ritual de emancipação masculina.
Para além das vantagens salariais
com a experiência do trabalho nas minas,
os magaíssas, nome pelo qual eram conhecidos estes imigrantes,
valorizavam-se aos olhos da família
e do seu meio social.
Para os cofres do Estado português,
o trabalho destes homens, cerca de meio milhão,
constituía uma importante fonte de receitas.
De vez em quando, era transportado de Moçambique para a Metrópole,
ouro num barco, acompanhado por um funcionário administrativo,
para o ouro recebido dar entrada nos cofres do Banco Nacional Ultramarino.
A economia das colônias assentava sobretudo no setor agrícola,
que ocupava a maioria da população indígena,
e principalmente em culturas obrigatórias impostas aos camponeses.
Caso do algodão, que tanto em Angola como em Moçambique,
conheceu nesses anos grande difusão.
Outros produtos como a cana-de-açúcar, o sisal, as madeiras e o café,
de que Angola se tornara o terceiro produtor mundial,
eram pilares importantes da política econômica dos anos 30:
produzir e enviar para a Metrópole matérias-primas,
que, depois de transformadas pelas indústrias portuguesas,
abasteciam os mercados ultramarinos.
O Ato Colonial é o documento que estabelece esta política de solidariedade econômica
entre Portugal e as suas colônias.
Um modelo que o governo altera em função do expansionismo econômico do pós-guerra
e o simultâneo movimento descolonizador.
Com os anos 50, abre-se o comércio entre as colônias
e abre-se a economia a importantes investimentos
admitindo-se a instalação de indústrias,
embora condicionada.
O Orçamento destina 6 milhões de contos para a construção de infra-estruturas
especialmente em setores como os transportes,
as comunicações e a energia.
Durante a década, as exportações angolanas aumentam mais de 50%
e as moçambicanas quase duplicam.
Procurando construir e modernizar,
o governo tenta defender-se da hostilidade internacional
à sua política colonial.
Desse esforço faz parte um plano de povoamento
que incentiva os portugueses
à imigração para a África.
O Estado cria agora serviços próprios,
e condições especiais para estimular a fixação de portugueses em Angola e Moçambique
após décadas de exigência de Carta de Chamada,
o documento indispensável a quem pretendesse imigrar para o Ultramar.
Com especiais cuidados sanitários
e algumas instruções básicas sobre um mundo que desconhecem inteiramente,
preparam-se candidatos a um povoamento branco
supostamente capaz de equilibrar em número
os negros mais instruídos,
e ao mesmo tempo fornecer pessoal para as empresas que entretanto se criavam.
Muitos dos novos colonos vão integrar-se nos setores de comércio e serviços,
sobretudo nos centros urbanos
que registram então um grande surto de crescimento.
Capitais como Lourenço Marques, em Moçambique,
ou Luanda, em Angola,
entre várias outras cidades,
exibem uma modernidade,
um desenvolvimento e mesmo um cosmopolitismo
que se destacam na paisagem do continente africano.
E naturalmente, na imagem que Portugal exporta.
Porém, esta prosperidade não é nem sequer para todos os portugueses,
cujo nível de instrução é, em geral, muito baixo.
Alguns, menos preparados,
vivem mesmo em zonas pobres africanas
e entre estes, e os que verdadeiramente enriquecem,
há outros que, embora melhorando a vida,
ficam longe das expectativas com que tinham sonhado.
Na minha infância ainda me lembro que os empregados de café,
de bar, dos hotéis, eram angolanos.
Eram negros, um ou outro mestiço.
Depois passaram a ser brancos.
Muitos colonos refletem o estado de atraso do Portugal europeu
donde partem à procura de uma oportunidade
onde lhe dizem que ela existe.
Mas acabam por ter que disputar com a população local
as tarefas e os empregos mais modestos.
Eu me recordo que em 1950, 51 fiquei admiradíssimo quando vi um engraxador branco.
Ora, esta chegada de brancos não qualificados,
significou que uma quantidade de angolanos
que antes ocupavam essas posições
teve que se retirar.
Lembro perfeitamente da saída de Mirandela
com os meus pais e mais sete irmãos.
Eu vinha no comboio (trem) a tocar a pandeireta,
meus pais vinham a chorar.
e fomos no barco Império até Lourenço Marques.
Entramos diretamente no comboio,
para o Leonde.
Leonde e as outras 12 aldeias que constituíam o colonato do Limpopo
passaram a ser a terra de muitos camponeses de Trás-os-Montes
do Alentejo e da Madeira,
a quem o governo prometia 4 hectares em Moçambique.
Este povoamento aplicava-se também a Angola.
A idéia era criar colonatos de brancos
em zonas do interior destes territórios
enviando para lá o excesso de população rural da Metrópole.
A estes trabalhadores humildes de um Portugal analfabeto
o futuro era apresentado como "uma aventura divertida",
algures num mundo ficcionado pelo desconhecimento.
- Vamos então para o Vale do Limpopo, não é? - Para o Vale do Limpopo.
- De onde é natural? - ???
- E o que o senhor fazia? - Jornaleiro.
- Jornaleiro?... Disse alguma coisa?
- Então diga lá qualquer coisa...
- O senhor já vai prevenido com um chapéu...
- Vou para ver as pretas
- QUero lá arranjar uma, que as brancas não me servem.
- Quero uma preta daquelas que seja bonita
- que tenha uma ??? forte e que me ponha logo rico.
Os emigrantes esperam encontrar a fortuna no Vale do Limpopo,
o mais importante colonato criado em Moçambique
a algumas dezenas de quilômetros de Lourenço Marques.
Mas foi em Angola que se iniciou a nova política de povoamento,
na Cela, Kuanza Sul, a quatrocentos quilômetros de Luanda.
A área correspondia a cerca de um terço de Portugal.
Terras situadas a mil e quatrocentos metros de altitude,
escolhidas pela sua suposta aptidão agrícola.
Das quarenta aldeias que constavam do projeto inicial,
o colonato da Cela assentou em quinze,
cuja construção começou em 1951.
Dois anos depois,
num aglomerado de quatrocentas casas com estábulos e anexos,
além de algumas estruturas sociais,
aguardavam os primeiros povoadores,
famílias recrutadas nos meios rurais das diversas regiões portuguesas.
"Pedaços de Portugal em África",
era como os simpatizantes políticos da idéia chamavam aos colonatos.
De fato, os campos tropicais da Cela
reproduzem fielmente a imagem de uma agricultura
em que os meios de exploração da terra refletem o país
e o seu atraso.
Enquanto as aldeias são levantadas à semelhança do modelo português,
na arquitetura e na organização do espaço,
a marca política, presente em cada praça,
culmina na Cela com uma réplica,
construída por operários canteiros idos expressamente da Beira.
"A Igreja de Santa Comba em Cela
será uma contínua recordação da Igreja de Santa Comba, da Metrópole.
O Estado paga as viagens aos novos colonos
e além de terreno, atribui-lhes casa, subsídios, instalações e equipamento agrícola,
e cabeças de gado.
O colono pagará parte destes benefícios
principalmente com um sexto das colheitas.
Não era possível que naqueles territórios
as pessoas pudessem viver com os poucos hectares de regadio
e os poucos hectares de sequeiro
que eram atribuídos a cada uma,
como que tentando reproduzir a vida rural e pacífica
da nossa interioridade.
As virtudes desta colonização depressa se revelariam ilusórias.
Endividamento dos colonos e descontentamento dos africanos,
afastados das terras para dar lugar aos brancos.
Eles próprios me disseram lá isso quando fui visitar a Cela.
E de fato havia uma verba para indenização
aos deslocados dos terrenos da Cela.
E nem isso lhes tinha sido pago.
Dez anos depois, a idéia dos colonatos saldava-se por um fracasso político
e uma ruína para as finanças do Estado.
Então, no projeto da Cela,
as explorações familiares iniciais foram substituídas
por fazendas bastante maiores,
da ordem dos 100 hectares,
e entregues a empresários mais preparados.
Meios mecanizados tomaram o lugar da tração animal
o sequeiro foi abandonado,
e foi autorizada a contratação de trabalhadores africanos
que antes era proibida.
Do desenvolvimento trazido pela industrialização e pelo comércio de alguns produtos,
nasceu uma nova vila.
Ficava a identificação política de sempre,
mas ruía a concessão inicial
que esperava colonizar pela projeção nos trópicos
do Portugal deixado na Europa,
com os seus nomes, costumes e tradições.
Recordo-me que a primeira vez que cheguei ao colonato
do Limpopo,
imediatamente os transmontanos me serviram o folar transmontano
e as alheiras que eles tinham feito.
Não era certamente a melhor maneira de povoar, mas era uma convicção.
Esta é a casa onde eu vivi a partir de 1958.
Uma casa geminada para duas famílias,
constituídas normalmente por oito a dez pessoas.
Por exemplo, aqui nesta casa onde eu morei
tinha três quartos, nós éramos 8 irmãos,
e o pai e a mãe. Éramos 10 pessoas
que moravam neste espaço,
uma casa muito pequena.
- E aquela tua irmã mais nova que casou? - A Amparo?
- A Amparo, sim.
- Está em Valpaços, está em Portugal.
- E a Belisanda?
- A Belisanda está em Santarém. - Em Santarém?
- Estão os dois com o Sr. Vasco, não é?
- É, o Vasco é que está doente agora.
- O Evaristo? - Acho que está no Porto, não sei.
Os pretos não sabiam que existiam brancos pobres,
brancos que sofriam como eles.
Para os pretos, o branco era um ser superior,
nós classificávamos nessa altura brancos de terceira classe.
A minha mãe, se pedisse carona,
e houvesse lugar à frente, no carro,
o funcionário (do Estado) não mandava a minha mãe subir à frente, mandava para a carroceria.
A mesma coisa que faziam às mulheres negras.
Universos onde eram também especiais as relações étnicas,
os colonatos foram um investimento financeiro do Estado
e uma expressão ideológica do regime.
Ficariam para a história como obra de um país subdesenvolvido,
no seu último esforço de colonização, antes de um novo tempo.
A falência deste povoamento
simboliza a substituição da imigração de colonos nos anos 50
pela expedição de soldados nos anos 60.
Recrutados no mesmo interior arcaico da Metrópole,
imobilizados em nome da mesma presença portuguesa,
até então saudada,
mas que em breve seria combatida.