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Em 1806...
os negócios da Europa tinham um líder militar.
Naquele ano, o Imperador francês Napoleão Bonaparte...
assegurou seu poder ao instalar seu irmão...
no trono da Espanha.
Foi o estopim para uma guerra sangrenta de resistência.
Os cidadãos de Madri se ergueram contra as tropas de Napoleão...
e a reação francesa foi a execução em ***.
A data era 3 de maio de 1808...
um dia triste para a história espanhola.
Mas foi este evento...
que inspirou a criação de um quadro histórico...
por um gênio do Romantismo: Goya.
Foi seu maior feito em uma longa carreira.
Goya veio de uma origem humilde...
para tornar-se o artista espanhol mais famoso da época.
Teve uma vida extraordinária: Foi julgado por traição...
e acusado pela Inquisição espanhola por obscenidade.
Seu sucesso como artista também foi devastado pela tragédia.
Em 1792, aos 46 anos...
ele contraiu uma doença misteriosa que quase o matou.
E o deixou surdo.
Com a guerra e a divisão de seu país...
a obra de Goya tornou-se mais introspectiva.
Isso foi detonado por sua surdez...
que ameaçava isolá-lo do mundo.
Os resultados eram apavorantes. Na época do artista...
sua obra o levou perante a Inquisição espanhola...
e ele passou o fim da vida no exílio...
mas nesse momento, seus feitos como artista...
eram fenomenais.
Goya é uma figura-chave na História da Arte.
Sua obra tem uma espontaneidade e objetividade...
que ainda nos atraem. Elas ainda nos chocam...
e maravilham, e quando olhamos para Goya...
temos a impressão de que era alguém que conhecia...
a natureza humana com todos os seus...
apetites e imperfeições.
Goya é um artista de profundas emoções humanas.
Ele não era santo, não era herói...
mas viveu num momento altamente conturbado...
foi testemunha dele.
Uma das coisas que me fascinam em Goya...
é sua tremenda honestidade, a maneira como ele mostra...
o lado obscuro e também o lado iluminado do homem.
É um artista natural que pode nos mostrar...
as cores mais líricas.
Goya pintou de tudo: Naturezas mortas, paisagens, retratos...
pintou quadros religiosos e históricos, gravuras satíricas...
e, no final da vida, sua atitude em relação à sua arte...
não havia mudado. Ele buscava a verdade...
mesmo que isso significasse pintar coisas grotescas.
Ele era um talentoso pintor, desenhista...
litógrafo, gravurista.
Um talento observador e brilhante inventor.
Acima de tudo, ele provou o fruto do sucesso.
Era um bem sucedido pintor da corte...
mas também era capaz de produzir...
uma arte profunda, muito imaginativa...
que ainda tem o poder de deixar perplexas as pessoas.
Francisco José de Goya y Lucientes...
nasceu na poeirenta região de Aragão...
no norte da Espanha, em 30 de março de 1746.
Era o terceiro de cinco filhos de pais pobres.
A aldeia onde passou sua infância, Fuendetodos...
não era um local rico...
e o pai de Goya lutava para ganhar a vida como dourador.
Em Aragão, onde nasceu...
há uma forte tradição de pintura de igrejas...
e ele teria aprendido sobre os velhos mestres...
através das gravuras e desenhos no estúdio...
do artista com quem estudou em Zaragoza.
Ele treinou com o artista José Luzán.
Luzán era da região.
Tinha a tarefa de procurar quadros indecentes.
Havia muitos quadros da Renascença...
que mostravam nus. A Inquisição não gostava deles.
E Luzán pintava roupas sobre eles.
Embora ensinado por Luzán, Goya aprendeu na prática...
ele não era um acadêmico.
Quando entrava em concursos na Academia de Madri...
costumava fracassar, porque não tinha as habilidades...
que os artistas da capital haviam aprendido.
Este era o centro do cenário artístico espanhol.
Onde o patrocínio da corte podia tornar rico um pintor.
Madrid também era o lar da Real Academia Espanhola.
Em 1764, esta influente instituição...
era dirigida pelo neoclássico Anton Raphael Mengs.
No ano anterior, ele havia convidado outro pintor de Aragão...
Francisco Bayeu, para estudar na Academia.
Bayeu era 12 anos mais velho do que Goya...
e eles se conheciam bem.
Mas duas das obras de Goya foram rejeitadas.
Deprimido, voltou para Zaragoza...
onde pintou afrescos para as igrejas.
Foi um começo vagaroso, mas em 1770...
conseguiu fazer a tradicional viagem para a Itália.
Goya esteve em Roma...
onde a fluência de sua pintura causou impressão.
Era óbvio que ele queria se afastar da Espanha...
porque foi para Roma às próprias custas.
Ele dizia que seu mestre era sua própria inventividade...
e os grandes artistas que havia visto na Espanha e na Itália.
Goya foi muito influenciado quando era jovem...
pelo grande espanhol do Século XVII, Velázquez...
e também pelo grande pintor holandês Rembrandt.
Por um lado, Velázquez tem esta pintura maravilhosa...
e é pintor da corte, e consegue combinar...
elegância com um alto grau de realismo.
De Rembrandt talvez venha o lado misterioso, a espiritualidade.
Além dos dois, também houve...
a influência do movimento neoclássico...
que afeta Goya no início de sua carreira.
Suas primeiras obras são um tanto rígidas e severas...
como um quadro neoclássico, mas é algo...
do qual ele vai se livrar quando voltar da Itália.
Em Zaragoza, teve a primeira encomenda importante.
Também pintou este auto-retrato.
Embora tenhamos poucos detalhes desse período de Goya...
esta imagem confiante revela um jovem pintor...
cuja técnica já era impressionante.
Em 1774...
uma série de encomendas feitas por igrejas...
fizeram de Goya o artista de maior sucesso na região.
Ele já estava casado com uma moça chamada Josefa.
Pelo que sabemos, era um casamento feliz...
embora apenas um dos cinco filhos tenha vivido até a idade adulta.
Josefa era irmã de Francisco Bayeu...
o artista aragonês estabelecido em Madri.
Em 1774, Goya foi convidado a trabalhar com Bayeu.
Sua tarefa era pintar desenhos em papelão...
para a famosa tapeçaria real.
Foi um momento importante em sua carreira.
O artista de 28 anos estava na periferia da alta sociedade...
onde poderia receber valiosas encomendas de retratos.
Seus desenhos de tapeçaria eram feitos para o gosto aristocrático.
Estas alegres imagens...
revelaram a influência do popular rococó.
Eram imagens populares...
mas logo Goya mostrava mais ambição nas tapeçarias.
Em 1777, ele pintou O Guarda-sol...
cujo layout e cor...
revelavam uma ousadia em sua execução.
O que é mais notável nele, são a leveza e a luz...
o modo como brilha por trás das figuras.
Essa leveza é um contraste interessante...
com a tradição mais formal da decoração de tapeçaria.
E acho que outra coisa é o contraste...
entre claro e escuro em seu papelão...
no sentido de que a maioria dos desenhos...
claro que eram feitos para uso em tapeçarias...
que não eram normalmente associadas...
ao contraste pesado entre cores claras e escuras.
Eram claras como um todo, não tendiam a ser...
extremadas no contraste de luz e sombra.
O Guarda-sol faz parte de uma série popular...
que deveria ir...
para os aposentos do Príncipe e da Princesa de Astúrias.
No O Guarda-sol temos um desenho claro...
e também temos duas figuras chaves.
O Majo e a Maja.
Digamos que eles são expoentes da classe operária...
muito orgulhosos.
Eles se viam como representantes puros do espírito catalão...
que não haviam sido contaminados por casamentos mesclados.
Este é Goya mostrando-se pela primeira vez...
como um forte anotador dos passatempos espanhóis.
O desenho para tapeçaria tinha um baixo status artístico.
Quadros grandes como este...
sequer eram vistos como obras de arte.
Goya ainda não era membro da Real Academia...
mas isso logo iria mudar.
Em 1780, ele pintou uma imagem religiosa que lhe deu entrada...
no coração da arte estabelecida espanhola:
Cristo na Cruz. Consideremos os motivos...
que levaram Goya a optar por este tema sagrado...
para sua apresentação para a Real Academia.
A crucificação havia sido retratada...
numa das mais conhecidas obras de Anton Raphael Mengs...
o chefe da Academia que morrera meses antes.
Cristo na Cruz também havia sido retratado...
por um grande espanhol do passado...
o mestre do Século XVII, Diego Velázquez.
Velázquez era o grande herói da Espanha.
Creio que sempre foi um mistério...
porque houve tantos grandes pintores no Século XVII...
Velázquez, e outros, e nenhum desde então.
Assim, havia essa idéia de querer voltar...
à grande tradição espanhola...
e acho que muito do entusiasmo por Goya...
foi isso, era um pintor que podia aceitar o desafio...
e seguir os passos de Velázquez.
Quando começasse a trabalhar na corte...
ele teria acesso à coleção de quadros do rei...
e foi ali que ele estudou Velázquez...
e fez uma série de gravuras, publicadas em 1778.
Vendo estas cópias, fica claro que o que ele admirava...
era a maneira como Velázquez pintava a luz...
e a maravilhosa transparência na pintura das roupas...
e também como Velázquez tinha interesse...
nos personagens, na mistura deles...
desde as elegantes mulheres da corte até os grotescos...
e deformados anões, uma mistura que Goya...
também pensava poder constituir.
Segundo Goya...
Velázquez foi uma das três maiores influências em sua arte.
Outra foi a natureza.
Vemos isto na crescente maestria em paisagens...
dos desenhos de tapeçaria.
A terceira influência foi Rembrandt...
o holandês do Século XVII, cujos maiores quadros são de pessoas.
Nos anos de 1780, Goya começou a revelar entusiasmo semelhante...
pela arte dos retratos. No final da década...
Goya era o retratista da moda em Madri.
Telas de corpo inteiro eram o que queriam os aristocratas.
Este é Don Manuel Osorio de Zuñiga...
que retrata o filho de 4 anos de um conde espanhol.
Retratos de crianças estavam ficando populares.
Na Inglaterra, Joshua Reynolds foi um dos artistas...
que se deu bem pintando os jovens de famílias abastadas.
Com a obra de Goya...
vemos que ele também sabia captar o espírito da infância.
Acho que o que surpreende o observador deste quadro...
são os contrastes ousados da roupa escarlate...
e o rosto iluminado de modo peculiar, e por isso, pálido...
do menino e também o contraste entre...
o escarlate e o verde do fundo.
Tecnicamente, é uma incrível mostra da representação...
de tipos diferentes de tecidos, do simples...
ao muito rico, à seda suntuosa...
e também algo quase estranho e grotesco...
na representação dos animais...
que sempre cativam as pessoas.
Algo que faz lembrar Velázquez.
Don Manuel Osorio não é apenas um retrato radiante.
Também é uma ilustração emblemática da infância.
Inclusive nos animais secundários que vemos no quadro.
Temos três gatos de aparência sinistra...
olhando para o pássaro que traz o cartão de Goya no bico.
Do outro lado, pássaros em gaiolas.
Foi dito que tudo isto é sobre a perda da inocência...
primeiro a inocência é projetada, ou engaiolada...
e, pela experiência, você chega ao mundo...
e é espreitado por figuras felinas.
No início dos anos de 1790...
retratos como este deixaram Goya rico.
Agora ele era um dos pintores oficiais da corte.
Também era diretor adjunto da Real Academia.
As tapeçarias agora tomavam menos tempo seu...
e, em 1792, ele abandonou de vez o desenho de tapeçarias.
Agora era uma figura importante na sociedade de Madri...
uma bela façanha para um provinciano humilde.
Mas uma cruel reviravolta do destino o aguardava.
A vida de Goya jamais seria a mesma.
No final de 1792, viajando pela Andaluzia...
Goya foi atacado por uma doença.
Sua causa e a exata natureza dela ainda são desconhecidas...
embora tenha-se falado em envenenamento por chumbo...
um ingrediente comum nas tintas da época.
Ele seguiu para Cadiz, importante centro médico...
e convalesceu com o rico mercador e amigo...
Sebastián Martínez.
As consequências da doença foram devastadoras.
Goya quase morreu e teve que descansar por um ano.
Goya estava surdo.
O humor de Goya levou-o a mergulhar no desespero...
mas ao recuperar o que restara de sua saúde...
sua imaginação começou a correr solta.
Ele decidiu incorporar suas visões...
numa série de quadros que marcam o ponto decisivo de sua carreira.
Imagens como este naufrágio...
são chamadas de Pinturas Privadas.
Igualmente depressivo é este quadro do hospício em Zaragoza.
Cenas como estas eram vistas em hospícios de toda a Europa.
O pintor inglês Hogarth...
retratou o notório Instituto Bedlam de Londres...
mas o hospício de Goya é muito mais sombrio.
Preso em seu mundo silencioso, quadros como este...
começaram a fluir do pincel do artista.
Antes, ele comentava ter ouvido canções folclóricas...
ido a concertos, visto pessoas dançando.
A música era algo que o interessava muito...
e a palavra tinha importância para ele.
Ele escreveu uma carta sobre sua convalescença...
e disse que, durante esse período...
uma das vantagens era não estar mais sob pressão...
para produzir quadros para patronos ou para a corte.
Ele quase podia pintar o que quisesse.
Goya parece usar mais temas de sua imaginação...
e temas com uma visão satírica ou absurda da natureza humana.
Goya gostava de dinheiro...
e queria encontrar um modo de substituir...
a renda que havia perdido das encomendas oficiais...
pintando pequenas e interessantes obras particulares.
Em uma de suas famosas cartas...
ele diz que um dos motivos para usar temas fantasiosos...
foi porque eram muito mais fáceis de vender.
A surdez de Goya fez com que dependesse mais...
do poder da imaginação.
Acima de tudo, foi isso...
que lhe garantiu o status de artista do Romantismo.
Mas a perda de audição não mudou totalmente sua vida.
Ele continuou a executar encomendas com sucesso.
Em 1798, ele pintou O Milagre de Santo Antônio...
na igreja de Madri de San Antonio De La Florida.
Ainda recebia encomendas de retratos...
e as imagens revelam um pintor no auge da carreira.
Talvez também revelem um artista ainda desfrutando...
dos prazeres físicos da vida.
Esta é a Duquesa de Alba...
uma das beldades da sociedade.
No início dos anos 90, Goya foi apresentado a ela...
através do marido desta, o Duque de Alba.
No ano seguinte, o duque morreu...
e Goya foi ficar na propriedade da duquesa.
Um quadro daria margem à especulação...
de que eles eram amantes.
O retrato que Goya pintou da duquesa.
No chão, abaixo dos pés dela...
vemos as palavras, "solo Goya"...
apenas Goya.
Muito se falou de sua relação...
mas não há provas concretas que sugiram...
que entre eles havia algo mais do que amizade.
Sabemos que Goya passou o verão de 1796...
na propriedade da Duquesa em Sanlúcar...
mas provavelmente ele era um hóspede...
pintando e desenhando, agindo como bibliotecário...
ele tinha essa posição na família.
Sabemos que a duquesa era muito gentil com os criados...
e Goya pode ter interpretado mal estes sinais.
É provável que ele se sentisse ligado a ela...
mas não era recíproco.
Se Goya teve mesmo um caso com a Duquesa de Alba...
isso coincide com o seu caráter.
Alguns disseram que Goya era um mulherengo.
Parece que tinha gosto pelo estilo de vida masculino.
Gostava de atirar, e sua fortuna possibilitou que conduzisse...
uma vistosa carruagem inglesa.
Mas faltam detalhes da vida pessoal de Goya.
Nesta tela dos anos 90...
vemos um espírito livre em ação.
Seu chapéu é iluminado por velas...
o que lhe permitia trabalhar no escuro.
A pincelada de Goya é típica. Quando começou a pintar...
ele foi muito influenciado pelo Neoclássico...
e sua tendência era pintar de modo ralo...
mas o pincel fica mais ousado no fim.
Não acho que ele só pinte com o pincel...
ele desenha e dá forma com o pincel...
de maneira desinibida. Acho que sua ousadia...
o distingue de outros pintores do período.
Ele foi um inovador em todos os tipos...
de técnicas da representação visual.
Ele experimentou tinta-seca, aquatinta...
e litografia no fim da vida, o que era novidade...
e seus afrescos são fantásticos pela novidade...
e ainda são vistos como tendo uma técnica extraordinária...
que rompeu as regras da pintura normal de afrescos.
Acho que é preciso ver o conjunto de Goya.
Ele não lida bem com apenas um meio...
ele espalha esse talento por vários meios.
No início do Século XIX...
a técnica de Goya não tinha rivais entre os artistas espanhóis.
Seus retratos tinham maturidade.
Ele recebia mais encomendas para pintar figuras femininas...
vestidas de Majas, a sedutora contrapartida do Majo.
A Maja usava uma roupa típica...
um corpinho arrematado por uma mantilha de renda preta.
Nós a vemos em muitos retratos de damas ricas.
A Duquesa de Alba doou a roupa de Maja com que posou...
para quem pode ter sido seu amante.
Teses de que a duquesa posou para estes quadros eróticos...
Maja Desnuda e Maja Vestida...
são infundadas, embora estivesse em sua coleção.
A sensualidade destes quadros foi demais para alguns...
e por eles, Goya enfrentou a força do Conservadorismo.
Mas com esta imagem de 1805...
não há estas dificuldades.
Esta é Doña lsabel de Porcel...
mulher da sociedade que também quis ser retratada como Maja.
Um traço muito comum nestes quadros de Goya...
é o uso do perfil. Ela é uma mulher vibrante...
e vemos que ele conseguiu combinar de novo...
elegância e sensualidade na obra.
Houve uma recente discussão sobre ela...
quanto à sua autenticidade. Sabemos que Doña lsabel...
posou para Goya nos anos 80 no estúdio dele...
e se esse é o quadro que ele produziu...
foi pintado sobre um retrato...
de alguém com uma roupa azul, não sabemos se homem ou mulher.
O que aconteceu posteriormente...
foi que o azul da roupa passou para o rosto de Doña lsabel...
dando um toque de porcelana aos tons da pele...
o que a faz parecer com uma moça vitoriana.
Por isso houve tanta discussão a respeito.
Vários estudiosos de Goya dizem...
ser inaceitável como obra de Goya, outros o defendem ferozmente.
Este é um retrato em grupo do Rei Carlos IV...
cercado pela família real.
Um quadro assim deveria ser um estudo da majestade e dignidade...
mas Goya preferiu retratá-lo como indivíduos com personalidade.
No caso do rei, o resultado não é lisonjeiro.
Aqui, a rainha é a figura dominante.
Este retrato é encarado, de certa forma...
como atrevido, ele desconstrói a família real espanhola.
Acho que isso é interpretar mal a tradição...
de informalidade dos retratos reais que data...
do retrato de Carlos III, e creio que seu valor aqui...
é mostrá-los como uma família, a força do quadro...
é que esta é uma reunião familiar, o centro da família é a rainha.
No centro temos o rei e a Rainha Maria Luisa.
Maria Luisa está realçada, ela é quem tem o poder.
Talvez seja uma concessão às realidades do poder.
Também é estranho que Goya seja visto atrás deles.
Um pintor jamais colocaria o cavalete atrás deles.
Então, por que Goya está ali? Creio que são duas as razões.
Velázquez se coloca trabalhando em seus grandes quadros...
uma espécie de assinatura elaborada...
e também podemos tentar visualizar um espelho diante deles.
Goya e a família real estariam olhando para o espelho.
E o que Goya pinta e o que eles vêem, é a mesma coisa.
Não tem discussão.
A aceitação deste retrato incomum por parte da família real...
pode revelar a estima que o artista gozava.
Goya agora era o primeiro pintor do rei...
a posição mais alta alcançada por um artista espanhol.
Mas ele não pretendia estancar sua carreira.
O período mais radical de sua vida estava apenas começando.
Isto se originava em parte da situação política caótica...
que caracterizou o período.
O melhor quadro de Goya...
foi inspirado pela ocupação francesa em seu país.
Mas muitas de suas obras-primas posteriores...
também foram inspiradas por intensas visões pessoais.
Em 1799, ele terminou sua primeira conquista em gravura.
Um exemplo típico é Eles Já Têm Assento.
Ela zomba do fenômeno eterno da vaidade feminina.
Os Caprichos foi uma série de 80 águas-fortes...
que satirizavam a insensatez dos seres humanos.
Outras mostram cenas cujos horrores são inimagináveis.
A mais conhecida das gravuras da série...
é uma obra escura e melancólica.
Pode ser vista como a imagem que define o Romantismo.
É O Sono da Razão Produz Monstros.
Sono da Razão é uma dessas imagens que tem...
fascinado as pessoas e continua sendo...
uma obra muito forte. Primeiro...
pela maneira como mostra o artista...
como testemunha involuntária. Uma idéia original para a época.
Goya é associado ao movimento Romântico...
e essa idéia de que o artista é uma espécie de profeta...
é alguém que vê a escuridão e a luz...
que vê o que outros não vêem. A idéia é expressada no quadro...
mas o que é peculiar a Goya é não apenas expressar a idéia...
e sim, a noção de que ele não consegue evitar...
é involuntário ele ter que testemunhar aquilo.
Originalmente, ele não iria chamar a série de Caprichos...
ia chamá-la de Sueños, ou seja, sonhos.
A tradução quase sempre é dada como...
o sono da razão produz monstros...
e esta parece ser uma idéia avançada.
Quando você está dormindo ou está inconsciente...
ou não tem controle total, como um doente ou bêbado...
então, sua imaginação foge ao controle.
Contudo, se formos traduzir "sueño"...
querendo dizer que o sonho da razão produz monstros...
isso sugere que a razão é, de alguma forma...
irrelevante ou não tem muito a ver com o comportamento humano.
Boa parte do Século XVII preocupou-se com a razão...
o Iluminismo se preocupava com a razão.
O pensamento europeu do Iluminismo...
mal tocara a Espanha.
Muitos espanhóis ainda eram dominados por superstições.
Tal crença irracional pode ser vista nesta tela de Goya...
retratando o chamado Enterro da Sardinha...
um ritual que marcava o início dos 40 dias da Quaresma.
As pessoas comuns que vemos aqui...
até poderiam ter sido pintadas por Hyeronimus Bosch...
no Século XVI...
mas este quadro foi criado na década de 1810.
Comparada a muitos de seus vizinhos europeus...
a Espanha estava atrasada intelectualmente...
e a causa não era difícil de identificar.
A Inquisição espanhola ainda era uma força poderosa...
embora seus piores excessos tivessem passado.
Hereges e judeus já não eram mortos às centenas.
No tempo de Goya, a Inquisição ocupava-se mais da censura...
uma tarefa que executava com prazer.
Não gostava do Iluminismo, e a arte provocativa...
dificilmente causaria boa impressão.
A Inquisição não aprovou a série Caprichos...
que foi severamente condenada.
A Inquisição era oficialmente conhecida como Sagrado Ofício...
e investigava a heresia e a moralidade.
Em países protestantes, temos uma imagem da Inquisição...
sendo brutal e torturando pessoas à toa.
Isso não é verdade. A Inquisição...
era forçada a seguir um processo legal...
mas é óbvio que era uma instituição conservadora...
e, com as mudanças que foram introduzidas na Europa...
a democracia pedida pela Revolução Francesa...
isso tudo desequilibrou a Espanha.
A Inquisição era altamente poderosa...
ao tentar manter o status quo.
Não seria a última vez que Goya enfrentava...
a força reacionária da Inquisição Espanhola.
Em 1815, ele teve que responder por uma acusação de obscenidade.
Os Inquisidores estavam descontentes com os dois quadros eróticos...
da Maja.
Goya não foi condenado...
mas é difícil não se surpreender com o caso.
Outro traço da vida espanhola no início do Século XIX...
era seu governo fraco e corrupto sob Carlos IV.
Muitos espanhóis vibraram quando ele foi destronado...
pelo filho Ferdinando, em março de 1808...
mas sua alegria durou pouco. Pouco depois...
Napoleão mandou suas tropas ocuparem Madri.
Em 13 de maio, seu irmão sentou no trono da Espanha...
e uma guerra de resistência havia começado.
Foi um conflito de notável crueldade...
e o maior artista espanhol buscou captar seu horror.
Em 1810, ele começou a criar outra série de gravuras:
Os Desastres da Guerra.
Como a série Capricho...
elas vieram acompanhadas de um título enigmático...
neste caso, Não Há Mais Remédio.
Esta gravura de 1811 poderia ser um comentário...
dos muitos horrores do Século XX.
A guerra também inspirou Goya na pintura.
Aqui vemos o primeiro ato de resistência espanhola...
em 2 de maio de 1808.
Um contingente francês é atacado pelos espanhóis...
e o resultado é um torvelinho de violência.
A brutalidade é mostrada com igual força pelos franceses e espanhóis.
A reação francesa aos eventos de 2 de maio foi brutal.
Foi ordenada a execução de dezenas de espanhóis.
Alguns haviam participado da insurreição...
outros eram inocentes que apenas estavam no local.
Este foi o tema para uma das maiores obras de arte:
Três de Maio de 1808.
A obra-prima de Goya.
Este é um quadro maravilhosamente dramático.
Não foi pintado no momento do levante de 1808.
Foi pintado em 1814, anos depois...
quando Goya estava tentando agradar...
os espanhóis e mostrar que afinal, era um patriota.
E sua aparência é tão convincente que muitos acham...
que foi pintado no local...
ele tem um ar de testemunha...
embora seja provável que Goya nem estivesse perto do evento.
Eles não estão morrendo como heróis, cantando o hino nacional.
Levantam as mãos em desespero, estão desesperançados...
e essa espécie de profunda humanidade...
é o que transparece no quadro.
A criação de Goya mostra um conflito de rua...
que ocorre num ambiente urbano.
Acho que teve influência sobre outros quadros...
como o de Delacroix, A Liberdade Conduzindo o Povo.
A influência formal fica bem clara quando vemos...
Execução de Maximiliano, de Manet.
A técnica de colocar juntos executor e executado...
de cortar a distância fazendo-nos sentir...
que tudo está sob controle.
Acho que Manet tirou isso diretamente de Goya.
Esta obra incrível foi a maior reação de Goya...
ao conflito que engolfou seu país.
Mas não foi a única.
Em 1812, ele terminou O Colosso...
uma imagem cujo apavorante gigante pode ser visto...
como representante do horror da guerra.
Mas as pessoas minúsculas também são dramáticas.
A liberdade do pincel de Goya capta o sentido de pânico...
movimento e medo.
A pequenez deles indica que não há lugar algum...
que se possa correr quando a guerra consome a terra.
Foi apenas em 1814, 6 anos após de luta...
que o Rei Ferdinando VII voltou para o trono espanhol.
Mas seu reino continuou dividido.
Sob a ocupação francesa, a Inquisição foi abolida.
Ferdinando restaurou-a...
e Goya teve que se defender uma vez mais.
O artista também teve problemas com a lei.
Em 1811, no auge do conflito...
Goya havia jurado lealdade a José Bonaparte.
Derrotados os franceses, foi julgado por traição.
Creio que não há dúvida de que Goya trabalhou para José.
Ele foi condecorado com a Ordem Real da Espanha...
coloquialmente chamada de Aubergine.
De certa forma, a posição de Goya é indefensável...
mas como muitos outros liberais, de maneira perversa...
ele saudou os franceses, por seu pensamento democrático...
que pôs fim a instituições como a Inquisição.
Uma das maneiras de combater a acusação...
foi mostrar que era patriota, e foi por isso que...
ele pediu permissão ao rei para pintar os dois quadros...
O Dois e O Três de Maio, que comemoravam...
o evento que os franceses haviam imposto quando assumiram.
Foi para demonstrar o grau...
de seu comprometimento e a dor da invasão.
Outro ponto a se ter em mente...
é que a série Os Desastres da Guerra, que ele fez...
durante a ocupação a partir de 1810...
nunca foi publicada enquanto viveu.
Eram obras que ninguém sabia que existiam...
pois ele não queria que os franceses as vissem.
Talvez por isso ninguém tenha pensado até 1814...
que ele havia expressado sentimentos a favor da insurgência.
A partir de 1815...
Goya começou a ter um papel público menor.
Era compreensível.
Estava viúvo, com quase 70 anos, vivendo num país dividido.
Ele passava mais tempo em sua casa de campo...
trabalhando na terceira série de gravuras...
retratando a insensatez do homem.
Goya estava adentrando o último estágio de sua vida...
e a morte parecia iminente em 1819...
quando novamente caiu doente.
Mas graças a seu médico, Eugenio Arrieta...
o artista de 73 anos sobreviveu.
Tipicamente, Goya transformou a experiência em arte.
Este retrato de 1820 mostra o médico cuidando do paciente...
e máscaras da morte aparecem no fundo.
Aqui vemos a figura sólida do médico...
cuidando com firmeza de Goya, que ao mesmo tempo...
parece estar desaparecendo. Sua cabeça está curvada...
e ambos os lados dela parecem estar sumindo na distância...
como se o médico o tirasse...
da estranha escuridão no fundo...
onde as figuras emergem pela metade.
Como se o médico o segurasse entre a vida e a morte.
Esse retrato é um drama quase narrado.
Deve haver poucos quadros do artista tão doente.
O quadro traz alguns traços estranhos porque...
afora o fato de que o artista está nos braços do médico...
cabeças parecem sair do fundo...
e não sabemos o que elas significam...
quem são, se são pessoas reais ou não...
se são monstros. Serão retratos de amigos...
que vieram ver o artista em seu leito de doente?
Goya tinha acabado de se mudar para a casa...
chamada de Casa do Surdo.
Provavelmente foi em um dos quartos da casa...
que Goya depois pintou, que a estranha cena aconteceu.
Nos 3 anos seguintes...
ele pintou as paredes internas da Casa do Surdo.
Ele soltou a imaginação.
Foi o último grande feito de uma carreira notável:
Pinturas Negras.
Nunca se havia visto nada igual a essas 14 obras.
Foram chamadas de Pinturas Negras, não pelas cores escuras...
mas pela obscura natureza de seu tema.
Vemos duas pessoas idosas comendo...
um quadro cuja pincelada grossa...
enche a imagem de dinamismo e imediatismo.
É uma obra imaginativa...
uma imagem escura cuja abordagem também é vista...
na mais negra, para alguns, das Pinturas Negras.
Este é o insano deus Saturno...
comendo o filho para que ele não cresça e o destrone.
Goya já está velho...
e começa a usar a morte...
e a passagem do tempo como temas.
Um dos problemas que temos quando lidamos com esses quadros...
é que eles foram retirados das paredes...
foram restaurados, alguns foram cortados.
Há outro problema. Os títulos que temos para eles...
nunca foram dados por Goya...
foram impostos a eles posteriormente por comentaristas.
São quadros misteriosos. Não temos certeza...
se conseguimos entendê-los. Mas está claro que...
eles são como exames do absurdo e da brutalidade...
da natureza humana.
Ele repassa os temas de sua vida...
seu interesse pela feitiçaria, pelo bizarro, inexplicável.
Tecnicamente, eles têm uma liberdade extraordinária...
quase a ponto da distorção. São quase Expressionistas...
no modo como os rostos parecem assumir estranhas formas.
Nestes quadros ele explora o mundo obscuro...
o mundo do inconsciente e dos desejos ocultos.
É uma pena que o idoso Goya...
tenha sido impedido de se aposentar na Casa do Surdo.
Em 1823, após um breve período de reforma liberal...
voltou com força a perseguição aos liberais e intelectuais.
No final de 1824, Goya estava em Bordeaux.
É surpreendente que um artista exilado, de 79 anos...
tenha se voltado para uma nova técnica: A litografia.
Em 1827, ainda em Bordeaux, Goya pintou esta charmosa tela...
A Leiteira de Bordeaux...
a última, de sua longa carreira.
O notável neste retrato é que ele traz...
as marcas daquela espécie de empatia...
aquela naturalidade, em termos técnicos.
Vemos como ele ainda usa bem as pinceladas curtas...
como desenha a curva do xale, para dar-lhe ritmo.
É um feito extraordinário para uma obra tão tardia.
É difícil ligar o artista que pintou Pinturas Negras...
com a frescura e vibração de Leiteira de Bordeaux.
Não parece obra de um artista idoso.
Ela parece otimista e muito colorida.
Goya morreu em Bordeaux em 15 de abril de 1828.
Estava com 82 anos, estava surdo...
há 35 anos.
Um dos fatos de ligação entre o tempo de Goya e o nosso...
é como muitas pessoas não gostam de sua arte.
Ali há cores bonitas, há beleza...
mas beleza de um tipo diferente.
E é alguém totalmente decidido...
a mostrar as coisas como elas são.
Talvez seja isso que atrai os artistas modernos.
Esta sensação de que vivemos num mundo ameaçador...
e que Goya foi um dos poucos artistas dos Séculos XVIII e XIX...
a reconhecer isto e a retratá-lo de modo único.
É um artista de versatilidade brilhante...
com os meios, gêneros e tipos de pintura.
Mas também tem um grande escopo imaginativo...
de maestria técnica, cuja capacidade de criar enigmas...
e mistérios e de juntar a força imaginativa e técnica...
é uma inspiração para muitos artistas depois dele.
Ele exerceu profunda influência...
em toda a tradição moderna da pintura...
de Manet a Picasso e além deles.