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O Contestado foi a maior guerra civil camponesa da história do Brasil.
Superior a Canudos, em todas as dimensões.
Políticas, belicosas, sociais.
A região do Contestado era uma terra de passagem...
das tropas que vinham do Rio Grande do Sul para São Paulo.
Era uma região de campos naturais muito ricos...
e intercalados por florestas de araucária.
A população cabocla do Contestado é uma mescla...
de todos os povos que de certa forma...
compuseram o mosaico cultural do sul do Brasil.
São remanescentes...
da Revolução Farroupilha...
da República Juliana em Santa Catarina...
da guerra civil conhecida como Revolução Federalista...
da Guerra do Paraguai...
de quilombolas...
de índios Caingangue e outros.
E também, evidentemente...
de remanescentes de europeus.
O mundo do caboclo do Contestado...
é o mundo da ignorância.
O Contestado é marcado pela falta de tudo.
Falta saúde, falta escola, falta Estado.
É uma região, de certa forma...
típica de sertão, onde o Estado não chega.
Ele veio, em 1891...
de um espírito aventureiro.
Saiu da casa dos pais e foi aventurar.
Aventurou bastante. Trabalhou como oleiro...
trabalhou em serrarias...
no corte de erva-mate.
Depois, já tinha 30 anos, eu acho...
na Argentina ele começou a estudar fotografia.
Ele é um personagem de trajetória itinerante.
Ele era um homem que tinha habilidade...
para fazer trabalhos que envolviam...
a destreza manual, numa região...
numa época que isso era uma espécie de trunfo.
O Percival Farquhar...
é um mega empresário...
do final do século XIX, início do século XX...
que atua em vários continentes...
em vários lugares ao mesmo tempo.
O Percival passa a ser dono...
das terras que margeiam essa ferrovia...
concluindo-a com muitas curvas...
e entrando nas terras onde vivem os caboclos do Contestado.
Essa população será retirada.
O que causa a guerra camponesa...
é a expulsão dos caboclos...
que moravam às margens da ferrovia...
e tiveram sua terra tomada...
e entregue ao capital estrangeiro.
Eles vão lutar pelo direito à terra.
A floresta, aquele espaço geográfico...
era fundamental para a sua subsistência.
O Percival Farquhar traz um corpo de segurança...
muitos dos quais estrangeiros...
para desapropriar os caboclos, que viviam ali secularmente.
A Companhia Lumber...
tem um papel primordial...
nas terras do Contestado.
Com a modernização do Brasil...
a Lumber significa a técnica...
chegando em um mundo arcaico.
A Lumber é uma das maiores serrarias instaladas...
no Brasil, naquele momento.
Talvez uma das maiores do mundo.
Ela vai construir, em território catarinense e paranaense...
o território contestado a época...
uma pequena cidade, um pequeno país.
Um fragmento dos Estados Unidos...
que comemora o 4º de julho.
Tudo isso agride o caboclo.
Mas a Lumber não agride apenas...
tirando dele o direito à terra.
A Lumber tira a vida.
Tira a dignidade e tira o direito de ser brasileiro.
O Contestado é marcado pelo catolicismo rústico.
Diferente do catolicismo tradicional...
e oficial que existe em cidades e vilas do Brasil.
Esse catolicismo marca o mundo social do caboclo.
É um catolicismo do benzedor...
da passagem dos monges, que por ali...
de tempos em tempos...
levam a notícia, a boa-nova...
Lêem a bíblia com eles...
por que é um povo que não teve acesso a escola.
E cura, cura a alma com rezas...
ou mesmo com chá de vassourinha...
e cura as chagas com chás de vassourinhas.
Logo que o governo do Estado do Paraná à época...
foi avisado que um grupo de pessoas...
havia cruzado a divisa da região dos campos de Irani...
enviou, em seguida, o Coronel João Gualberto...
para dissuadir esse grupo de ficar em terras paranaenses.
Ou aquilo que se consideravam terras paranaenses.
Ao passar por Porto União da Vitória...
ele descobriu meu avô como fotógrafo...
e tirou algumas fotos.
Da tropa dele... ele mesmo, montado a cavalo.
É possível afirmar que ele era o único fotógrafo...
que estava ali naquele momento...
e apto a registrar fotograficamente...
os episódios que se desdobraram então.
É possível dizer...
que pelas pretensões políticas do coronel...
João Gualberto na vida política paranaense da época...
ele tinha interesse de imortalizar...
a passagem dele pela região do Contestado.
Ele tinha o interesse...
em criar uma espécie de depoimento...
para fazer com que a sua 'missão'...
fosse transformada em uma missão heróica.
Com a morte de João Gualberto no Irani...
começam quatro anos de Guerra civil.
Paraná e Santa Catarina não dão conta...
de sustentar politicamente a região...
pelo anseio e pelos elementos violentos, políticos...
e econômicos que acontecem no Contestado.
Há o envio de três expedições...
de forças federais para o Contestado.
Papai foi contratado pela Lumber...
para fazer a cobertura da serraria.
Ele se mudou para Três Barras em 1914, com a família.
Foi pedido dos executivos da empresa...
que ele fizesse alguns trabalhos fotográficos...
que pudessem ser enviados aos Estados Unidos, aos patrões...
mostrando o que eles faziam no Brasil.
O papel dos vaqueanos no Contestado...
é importante numa época que as forças militares oficiais...
sejam as federais e as estaduais ainda eram insignificantes.
Então eles não dão conta de dar fim...
a uma guerra que ocupa um espaço geográfico tão grande.
Por isso vai ter que contratar mercenários.
Esses mercenários que são contratados são os vaqueanos.
O vaqueano, por ser um homem do mato...
um homem acostumado a buscar pessoas...
e buscar coisas na floresta...
evidentemente ele tem o conhecimento...
do espaço geográfico do Contestado.
Mas é importante ressaltar que eles...
de certa forma vão guiar também...
os soldados do exército...
para os campos de batalha.
Canudos, uma expedição dá conta de eliminar.
O Contestado precisa de quatro anos...
e três expedições.
Durante esses quatro anos, o caboclo...
a exemplo do povo do Vietnã...
vai vencendo as forças militares.
Por que o caboclo conhece cada grota...
cada toco oco de uma árvore.
Ele faz emboscadas contra o exército brasileiro...
que vai perdendo a cada batalha.
O exército só vai vencê-los em batalha...
em 1915, na Páscoa Sangrenta...
que é a Páscoa mais sangrenta da história do Brasil.
É quando já se tem um mapeamento da região...
quando já há alguns caboclos entregues...
ou cooptados pelas forças militares, como o Alemãozinho...
que é fotografado pelo Claro Jansson.
E eles acabam mostrando os caminhos...
que levam ao miolo do Contestado.
De todo o acervo que eu verifiquei...
não existem fotos espontâneas.
Fotos nas quais os personagens estão sendo flagrados.
Eu chamaria a atenção das fotografias...
do período que é o final do conflito.
São fotografias de rendição.
Numa dessas fotografias, um dos líderes rebeldes...
conhecido pelo apelido de Bonifácio Papudo...
está de frente para um militar...
esse militar está de dedo de em riste...
como quem diz 'agora você vai ouvir...
um sermão, você vai ser repreendido'.
Essa fotografia, se você olhar de forma desatenta...
facilmente você acredita que é um flagrante.
Não é. É uma fotografia encenada.
Era fundamental que o exército pudesse mostrar...
principalmente na capital da República...
que o relacionamento que manteve com os rebeldes...
não foi desleal...
não foi um relacionamento cruel...
de agressividade desmedida...
mas um tratamento ponderado.
Se você pegar as demais fotografias...
que mostram os rebeldes...
eles geralmente estão sentados...
geralmente estão num plano inferior aos soldados.
Eu acredito que isso representa uma situação de subordinação.
'Nós perdemos, nós fomos derrotados...
tanto é que estamos aqui recebendo comida...
do exército, que nos faz uma espécie de favor'.
'Veja, eu acabei de perder a minha terra...
acabei de ser expulso do estilo de vida...
que os meus ancestrais levavam desde tempos imemoriais...
e agora tudo o que eu recebo é...
um pedaço de carne do governo'.
É uma fotografia que guarda...
uma violência simbólica muito grande.
Elas tinham um papel ideológico...
de mostrar o que não foi o Contestado:
uma guerra civilizada.
Além disso, é importante a gente lembrar...
que essas imagens que foram produzidas...
já há praticamente um século...
obviamente não vão...
ser lidas hoje da mesma forma.
Quanto mais a gente se afasta do episódio...
mais essas fotografias ganham uma espécie de aura...
uma importância... eu diria diferenciada.
Eu acredito que hoje, essas fotografias...
podem ser tomadas...
como a documentação visual de um projeto de modernização...
cujo impacto ainda não foi plenamente conhecido.
Eu acho que Carlo Jansson se achava um técnico....
não um artista.
Não imagino que ele tivesse essa visão de si próprio.
Assim como acho que ele não imaginava...
que seu trabalho fosse ter tanta repercussão...
tantos anos depois de sua morte dele.
Mas registra passagens...
que são fundamentais para entender o Contestado...
ou para abrir interrogações sobre o Contestado.
O Contestado ainda é uma guerra...
cheia de interrogações, cheia de dúvidas...
sobre o que realmente aconteceu.
Ele teve um papel, um papel didático...
de deixar algumas imagens daquele momento histórico...
que de certa forma seria invisível sem ele.
A foto, na minha concepção...
mais famosa do Carlo Jansson é a dos caboclos...
ou dos mercenários...
ou de um grupo que se escolheu a dedo...
para mostrar um pouquinho de todas as cores e pessoas...
que estavam lutando no Contestado.
Ele consegue, por meio da sua leitura...
do seu olhar, da sua sensibilidade...
fotografar muito proximamente a cara de um caboclo...
ou de um habitante não caboclo da região.
Ele permite ver...
a invisibilidade de um povo que, de certa forma, não existiu.
Existiu oficialmente...
para legitimar o processo.
Mas não existiu na hora da concessão...
das terras para os estrangeiros.
E, terminada a guerra, deixou de existir totalmente.
Foi invisível até o fim da ditadura...
em 1985.