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Pedi ao Sr. Sérgio de Mello para ser meu representante especial.
Ele irá chefiar o trabalho da ONU no Iraque nos próximos quatro meses.
Acho que ele é alguém que irá trabalhar duro desde o início.
Farei o possível para garantir que os interesses do povo iraquiano...
sejam colocados em primeiro lugar.
Durante meses, me recusei a autorizar a ida de Sérgio.
Havia muita pressão dos americanos, dos britânicos.
Eu disse: "O Sérgio já tem um trabalho.
Ele é Alto Comissário de Direitos Humanos...
e esse é um trabalho de tempo integral.
Ele não está disponível, vamos pensar em outras pessoas.”
As pressões continuaram. Eles contataram diretamente o Sérgio.
No final, concordamos que ele iria para ajudar por quatro meses.
Como soldado da ONU, ele foi convocado.
Ele usou essa palavra, para ir ao Iraque.
Acho que ele foi a escolha correta.
Era o mais hábil negociador, o diplomata mais preparado...
o melhor representante que Kofi Annan tinha.
Ele não era pró-americano, e sim pró-ONU.
Começamos imediatamente, logo no primeiro dia...
houve uma reunião com Paul Bremmer, que disse à imprensa que a ONU...
tinha um papel vital, e essa palavra foi muito repetida.
No fim do dia, ficamos refletindo sobre o seu significado.
Os primeiros dias foram muito difíceis...
pois não sabíamos o que estávamos fazendo.
"Ahmad, você está com a resolução?", ele dizia.
E eu a entregava para ele, que fazia mais anotações nela...
sentávamos e dizíamos "Certo, isso significa que nos Direitos Humanos...
estaríamos fazendo isso".
Mas é claro que Sérgio sabia muito bem que a resolução 1483...
conferia ao administrador civil mais poderes do que Saddam jamais tivera.
"A CAMINHO DE BAGDÁ"
Costumávamos vir a este Café, geralmente aos domingos às 11 h00.
Viemos aqui muitas vezes durante a Guerra do Iraque.
Muitas vezes mesmo em março, abril, maio...
antes de ele finalmente concordar em ir ao Iraque.
Mas ele era contra a guerra?
Ah, sim, não contra remover tiranos como Saddam.
Mas certamente contra aquele tipo de processo unilateral.
Bem, ele era multilateralista.
Acho que ele procurava fazer mais para o Terceiro Mundo.
Apesar de muitos de nós nos identificarmos com...
as aspirações do Terceiro Mundo...
para ele era mais emocional, eu diria.
Sua obsessão era estar no local.
Além de ser um teórico, um intelectual, um filósofo...
um homem de Sorbonne, era um homem de atuar no local.
Sérgio adorava a África. Ele tinha um carinho especial pela África.
Em uma das minhas viagens para o ACNUR...
visitei refugiados em Ruanda, na fronteira com a Tanzânia e...
tivemos de parar para reabastecer. Chegamos antes do pôr do sol...
e havia um cheiro no ar que só há na África.
Era o cheiro da terra e da luz. E Sérgio o sentiu também.
A África realmente tinha algo de especial que o tocava profundamente.
Eu entendia muito bem isso.
Chegaram tropas de Portugal para esmagar a resistência nacional.
Em 25 de junho de 1975, à meia-noite, Moçambique se torna independente.
A bandeira portuguesa é recolhida, tornando o país...
a 43ª nação independente da África.
Era muito difícil, logo após a independência...
mas era também interessante, pois era um país que estava nascendo.
Como Sérgio andava por Maputo...
como conhecia todo mundo, os embaixadores...
as pessoas do governo como se fossem seus amigos íntimos.
Eu pensei "meu Deus, como vou fazer tudo isso?"
O Sr. Sérgio veio aqui quando éramos muito pobres.
E apesar disso, ele sempre nos visitava.
Sérgio abria a porta e se sentava do lado do motorista.
Então, eles se sentiam um tanto incomodados, pois achavam que...
não conseguiriam trabalhar de maneira certa. Mas depois entendiam...
que era um tipo de relação diferente, que não era hierárquica...
e que o Sérgio admirava o trabalho deles.
Aquela época era ainda a época da esperança.
Sentíamos que trabalhávamos para algo, que ajudávamos um governo...
a se organizar e seguir adiante. Foi muito difícil no começo.
Viam-se os buracos de bala nas casas e é claro...
barricadas e zonas de defesa que foram criadas.
E agora é um parque de diversões.
O Sérgio também era muito enfático, quando ficava nervoso...
ele falava alto e grosso, quando estava bravo.
Ele tinha algo de militar.
Sua aparência... Ele era como um general:
"Como eles podem fazer isso, é inacreditável...
não posso mais aceitar essa bobagem".
Sempre me lembro de uma delegação americana que acabara...
de vir de uma reunião com Sérgio, e eles diziam...
"Toda vez que encontramos o Sérgio, acontecem duas coisas.
Primeiro, ele nos faz sentir que estamos mal informados.
Segundo, ele nos faz sentir que estamos mal vestidos".
Parecíamos desleixados, suados e sujos e...
ele parecia que tinha acabado de sair uma loja de roupas.
Não sei como ele fazia isso.
Eu não achava que as pessoas no Brasil entendiam a sua grandeza.
Quando fui a um jantar no Rio de Janeiro com alguns jornalistas...
eu fiquei surpreso e disse: "por que vocês não fazem...
uma matéria de capa com o Sérgio, ele é o mais importante...
funcionário público internacional do Brasil".
Eles disseram que ele saíra do Brasil há muito tempo...
e que não o conheciam mais tão bem.
Eu respondi que ele tinha orgulho de ser brasileiro.
Sérgio Vieira de Mello, Enviado Especial do...
Alto Comissariado da ONU para Refugiados...
e Diretor de Repatriamento da UNTAC.
Você se importa de soletrar o seu sobrenome?
V-i-e-i-r-a d-e M-e-l-l-o.
Então você está cautelosamente otimista?
Diria mais do que cautelosamente, muito otimista, pois o Camboja...
merece o empenho e o otimismo de todos nós.
Então esta é a obra do Khmer Vermelho.
Dois milhões de pessoas desapareceram durante esse período.
Devido à guerra, ao Khmer Vermelho...
centenas de milhares de cambojanos saíram do país...
e ficaram em acampamentos na Tailândia, mais de 300 mil.
Em três acampamentos controlados por facções políticas diferentes...
incluindo o Khmer Vermelho.
E foi importante que, após os acordos de paz assinados em Paris em 1991 ...
todos os cambojanos tinham o direito de voltar ao Camboja.
O Sérgio tentou reunir as famílias.
O principal objetivo do seu repatriamento não era só trazer...
os cambojanos da fronteira com a Tailândia e dizer:
"Agora vocês estão em casa, façam o que quiserem".
Não, ele tentou reunir os cambojanos com suas famílias.
Era trabalho muito difícil para a equipe de repatriamento...
pois era preciso trazer antigos inimigos.
E eles não precisavam parar de lutar apenas...
precisavam criar as condições para que todos pudessem se beneficiar.
A Agência da ONU para Refugiados tinha um plano bem definido para...
o repatriamento de 370 mil refugiados cambojanos que estavam na Tailândia.
Mas, evidentemente, esse plano não estava funcionando.
Tínhamos de adaptá-lo, e Sérgio logo entendeu isso.
Os cambojanos não queriam ser repatriados em *** para os locais...
que tínhamos preparados com antecedência.
Eles tinham boas razões para querer voltar aos seus vilarejos.
Ele via o repatriamento também como um modo de libertação.
Perguntávamos a eles para onde eles queriam ir.
Eles ficavam perplexos com essa pergunta.
Para eles, era a primeira vez nas suas vidas que alguém estava...
dando-lhes a oportunidade de escolher algo importante.
Sérgio acreditava que se as pessoas queriam voltar...
às áreas controladas pelo Khmer Vermelho...
elas deviam ter o direito de fazê-lo.
E nós realmente fomos ao território controlado pelo Khmer...
e essa foi a primeira vez, pois ninguém, nem mesmo...
o Representante Especial da ONU, o Sr. Akashi...
tinha ido ao território do Khmer.
Ele abriu a porta e conseguiu envolvê-los nas negociações.
Ele acreditava fortemente que devíamos falar com todos...
independente de que lado estivessem.
Esse é realmente o Sérgio de mochila nas costas...
e calça dobrada.
Perto do fim do almoço...
eles nos disseram que queriam nadar no rio Mongkol Borei.
Eu e o Sérgio olhamos um para outro e um de nós disse...
"Mas não trouxemos nossos trajes de banho".
Porque não estávamos com vontade de pular nesse rio...
com o Khmer Vermelho ou com qualquer um.
Eles disseram: "não tem problema, vamos lhes dar sarongues".
Não nadamos de verdade, só mantivemos um sorriso no rosto.
E eles nos perguntaram o que sentíamos e respondemos:
"Ah, a água é bonita, fantástica, boa e refrescante".
E eles disseram: "queríamos que entrassem nesse rio para sentir...
como a água é limpa e natural".
Bem diferente de quando os vietnamitas ocupavam o Camboja...
quando, segundo eles, esse rio era repleto...
de cadáveres e restos humanos.
Isso era típico de Sérgio...
se as pessoas queriam voltar a uma determinada área...
e você precisava falar com pessoas que, por dentro, desprezava ou...
não desejava ter contato, ele fazia, pois tinha de achar uma solução...
e, nessas ocasiões, ele era muito gentil, encantador...
as pessoas imediatamente ficavam fascinadas por ele e...
o ajudavam a conseguir o que queria, então essa era a sua força.
Um de nossos amigos jornalistas dizia que a biografia dele seria...
"Os Criminosos de Guerra que eu conheci"...
porque ele muito famoso por lidar com esses caras ruins.
Mas ele tinha mais do que um interesse profissional apenas.
Ele era formado no mesmo lugar da liderança do Khmer...
todos eles tinham estudado na Sorbonne.
"O que tinha dado de errado?"
"O que fez essas pessoas se tornarem genocidas?"
Eu acho que havia uma curiosidade intelectual de compreender aquilo.
Ele era fiel aos seus princípios.
"Quando os refugiados voltarem, têm de decidir aonde querem ir...
sem pressão de vocês do Khmer Vermelho.
O ACNUR decide quando eles voltarão para casa, não vocês.
Os refugiados decidem para onde querem ir, não vocês.
E quando voltarem, queremos fazer o que precisamos...
isto é visitá-los, ver se estão bem".
Ele literalmente arrancou as garras que eles tinham sobre o povo...
havia 15, 16 anos, e ele dizia: "Não se metam".
Com o passar dos anos, o Camboja...
foi literalmente coberto por camadas de minas.
E devo dizer que esta foi nossa maior preocupação...
como verificar duas, três vezes...
se a terra destinada aos refugiados, estava de fato livre de minas.
Não tem jeito, ninguém nunca lhe dará a garantia...
que um pedaço de terra é livre de minas no Camboja.
Quando ele chegou, eles não queriam voltar...
pois não havia terra para onde ir, tudo estava minado...
não estava disponível. E tivemos de gastar muito...
com pesquisas, fotografias áreas da terra para que eles...
pudessem voltar e eles não estavam interessados nisso.
E, da noite para o dia, o Sérgio disse:
"Não, não os levaremos para a terra, nós lhes daremos dinheiro".
E isso era inédito, nós não damos dinheiro para refugiados voltarem...
e ele disse que não daria certo de outro jeito.
E ele conseguiu, para resumir, trouxe todos os refugiados de volta...
a tempo da eleição, o que ninguém pensava que aconteceria.
Lembro-me de falar para o Sérgio:
"Os tailandeses querem que comecemos no dia 29".
Ele disse: "Não, este repatriamento é nosso.
Quero deixar bem claro que o repatriamento está sob os auspícios...
de uma organização humanitária. Começaremos no dia 30 de março.
Lembro-me de uma reunião em especial, onde havia de 50 a 60...
representantes de ONGs numa sala encarando o Sérgio...
todos fazendo perguntas duras e críticas.
"Por que está iniciando essa operação?"
"Porque está colocando as pessoas em risco?"
"Qual é a posição da ONU?"
"Vocês não podem afirmar que trarão as pessoas de volta...
com segurança e dignidade".
Para mim, essa é uma demonstração de verdadeira liderança...
ter a coragem de se arriscar e de tomar uma decisão controversa...
que Sérgio acreditava estar certa.
Literalmente, o mundo todo estava olhando para ver o que acontecia...
com o primeiro grupo de cambojanos que retornava.
Ele estava transpirando, pois ele próprio fazia as ligações.
"Agora estamos atravessando a ponte, agora estamos fazendo..."
Ele estava com o rádio e, de fato, dirigia o primeiro comboio...
o que foi um grande evento.
E nas horas extras, ele continuava...
a usar essa roupa de safári, esse homem elegante...
eu falava para ele: "Quando você vai tirar essa roupa de safári?".
Ele dizia: "Sou realmente ligado a esta roupa, ela me dá sorte".
Eu dizia: "Você pode querer lavá-la um dia". Ele respondia:
"Não, tenho medo que a sorte evapore".
Ele era muito próximo, como de costume, da liderança do país...
mas também do Rei Sihanouk, que o adorava.
Sérgio tinha acesso ao palácio...
de um modo que ninguém tinha na missão da ONU.
Ele fez com que o rei viesse à estação para receber os...
primeiros refugiados, um grande acontecimento para o Camboja.
E eu costumava dizer:
"Mas Sérgio, politicamente isso é um tanto surpreendente.
A reputação do rei Sihanouk é um tanto polêmica".
Mas ele disse: "Nos anos 60, eu tinha uma foto dele na parede...
como um dos fundadores do Movimento dos Países Não-Alinhados".
O Rei Sihanouk era para ele uma das figuras fundadoras da libertação...
do movimento dos não-alinhados do mundo.
Ele tinha uma grande afinidade por aquele grupo de líderes...
independentemente do que eles se tornaram depois.
Mas o Sérgio era assim, uma vez leal sempre leal.
E isso era muito positivo, pois ele tinha muito apoio do palácio.
E foi capaz de trazer todo mundo a tempo da votação...
o que foi um feito miraculoso.
Sérgio queria...
meu apoio para o seu trabalho.
Foi assim que eu presidi, a seu pedido...
as cerimônias de repatriamento cambojanas.
Ele nos entendia muito bem, ele tinha vindo de longe...
mas rapidamente entendeu a mentalidade e o espírito cambojanos.
Se analisarmos todas as atividades do UNTAC...
acho que o repatriamento foi um sucesso.
Devido à sua personalidade...
acho que ele conseguiu fazer com que muitas coisas dessem certo.
Mas à época tentamos dizer a ONU que...
um ano e meio não era suficiente, que devia ser mais tempo.
Essa é a única coisa da qual me arrependo, pois se a ONU tivesse...
ficado um período maior, o país estaria mais estabilizado.
Quando a ONU é criticada...
é quando você quer ficar o mais próximo possível de Sérgio...
pois ele fazia todos nós parecermos bons.
E para as pessoas que acreditam no multilateralismo, no humanitarismo...
nos ideais da ONU, ele fazia com que esses ideais parecessem bons...
muito bons, ele os tornava possíveis e factíveis.
Antigamente, eu dançava só para me divertir.
Hoje, ensinar dança é um modo de preservar a cultura cambojana.
No segundo andar desse prédio, acho que é o mesmo prédio.
Não podemos entrar. Ah, sim, podemos.
Nosso último encontro foi nesse apartamento.
Todos estavam lá.
Ele não tinha se mudado totalmente para o outro.
Ele veio de Nova York, largou as suas coisas e foi para o Iraque.
É onde nos encontramos no ultimo dia...
ele foi embora na manhã seguinte para Bagdá.
Eu sonhei com ele. Foi um mês depois de sua morte...
ele voltava para me ver e dizia: "Estou morto há um mês...
chegou a hora de eu ir para onde quer que seja que os mortos vão".
E ele disse ainda: "Foi um mês estranho...
com toda essa gente dizendo essas coisas sobre mim...
eu não era assim, você sabe disso...
todos sabemos que sou muito mais humano do que isso".
Sempre que ele fazia o relatório para o Conselho de Segurança...
acho que eu envelhecia anos nas horas antecedentes.
Ele fazia pequenos ajustes nos parágrafos, insistia que os textos...
fossem traduzidos em pelo menos três línguas diferentes para que...
pudesse se dirigir a todos os membros do conselho em seus idiomas.
Finalizar esses relatórios...
era uma experiência estressante.
Porque ele realmente não acreditava muito em hierarquia...
o Sérgio queria que as coisas fossem feitas, então para um interino...
apesar de eu ser um amigo muito próximo, era sempre difícil...
pois ele ignorava a hierarquia. Eu era responsável pela polícia em Timor...
por exemplo, e ele ligava para o chefe de polícia para passar instruções...
sem me avisar. E eu entrava bravo, dizendo:
"Eu sou o responsável pela polícia... desculpe, é claro, sim, encantador..."
Mas sua firmeza costumava causar impaciência...
o que era quase sempre difícil.
"Venha comigo por um mês. Monte o escritório...
sei que você tem coisas para cuidar em Londres.
É claro, faça a sua mala, coloque o suficiente para um mês".
Após duas semanas, ele disse: "Ah, Ahmad, você está se divertindo.
Realmente precisa voltar daqui a duas semanas?
Em duas semanas podemos resolver isso e aquilo.
Vá cuidar de seus negócios e volte".
Então fiz isso, não havia como recusar quando o Sérgio dizia...
"duas semanas a mais".
E as duas semanas a mais se tornavam dois meses a mais, etc.
Eu adoraria tê-lo conhecido melhor.
Porque depois de 19 de agosto...
conhecemos muita gente...
e tive a impressão que seus amigos e colegas...
o conheciam melhor do que os seus próprios filhos.
Acho que ele estava querendo muito se fixar em Genebra...
e ter uma relação adulta com os seus filhos.
Deixar claro para eles...
porque era ligado aos acontecimentos, ao mundo.
Indiretamente, isso também fazia parte do seu amor por eles.
Ele podia estar longe durante meses, sabe ele estava no Timor Leste.
Ele disse: "Por que você não passa por aqui?"
E eu disse: "Sérgio, o Timor não está no caminho de nada".
Muitos deles, podemos ver nos seus rostos, olhos, eles o conheciam.
Porque ele ficou aqui por mais de dois anos na pior época do Timor.
E eles se lembram disso, que ele esteve aqui na pior época e...
e os tirou dessa situação horrível...
quando não havia nada...
e nada funcionava até a restauração da independência.
A milícia do Timor Leste com o apoio dos militares indonésios...
tinha saqueado e assassinado quem defendia a independência do Timor.
Eles foram muito violentos quando o referendo foi contra a Indonésia.
E eles destruíram o local, as cidades e metade do interior.
Ele foi para o Timor Leste sobretudo por minha causa...
pois quando precisávamos de um Alto Representante da ONU no Timor...
Sérgio queria ser o chefe do Alto Comissariado da ONU para Refugiados.
Mas eu disse para Kofi Annan:
"Você precisa enviar o Sérgio. Ele tem todas as qualidades, a experiência...
o idioma português, e ninguém pode fazer um trabalho melhor".
Ele era responsável por milhares de tropas, de policiais e de civis.
Militares, segurança da fronteira, sistema postal, funcionários...
tudo era dirigido pela Administração da ONU durante aquele período.
Não era mais eu e o Xanana...
lidando com um obscuro burocrata da ONU.
Lidávamos com um verdadeiro amigo e, às vezes, ele nos dizia coisas que...
nenhum diplomata do ONU ousaria dizer, nem mesmo os americanos.
Mas quando ele acreditava em algo que não estava nos livros...
no seu mandato, contatava a ONU, e brigava para mudar ou adotar...
políticas que se adaptassem ao povo timorense.
Ele trabalhou junto ao governo para persuadi-los que os seus interesses...
nacionais de algum modo coincidiam com o interesse internacional...
para apoiar mais o multilateralismo do que uma ação bilateral mais limitada.
Ele fez isso no Timor, o exemplo do qual me lembro é que ele conseguiu...
que os navios de guerra americanos permanecessem durante toda a...
operação de manutenção da paz.
Os EUA não faziam parte disso, não estavam oficialmente lá.
Ele persuadiu o governo americano...
com todas as autorizações necessárias a ter uma presença alternada no mar.
E quando se acordava de manhã...
e se pensava em causar encrenca, a primeira coisa que se via era...
a silhueta de um navio de guerra americano.
As coisas eram feitas rapidamente, em dois anos, dois anos e meio...
se esperava constituir um governo de três poderes...
uma constituição, implantar a segurança, um poder judiciário.
Se esperava construir isso em dois anos. Não.
As pessoas esperavam muito, a expectativa era tão grande...
e, no final do dia, percebiam que as coisas levam tempo.
As coisas levam tempo.
A meu ver, o Timor foi um dos seus grandes êxitos...
em termos de pacificação. Não só porque ele conseguiu politicamente...
ele controlou a situação de segurança, deu segurança ao país...
ao usar os militares de maneira muito agressiva, mas o Timor...
era seguro de um modo que Camboja e Kosovo não eram...
e, é claro, o Iraque nem de longe.
A noite de 20 de maio...
era o primeiro dia de independência do Timor.
O Sérgio estava exausto, ele partiria no dia seguinte...
ele ficou a noite inteira acordado com centenas de cartas de...
agradecimento que seu escritório lhe havia preparado.
Ele ficou escrevendo "Prezado Fred, Cara Esmeralda", e assim por diante...
e ele assinava pessoalmente cada uma delas, e escrevia algumas linhas...
para mostrar que sabia para quem estava escrevendo...
que se lembrava de quando tinham se conhecido, que se recordava...
exatamente da ajuda que eles tinham dado.
Senti-me muito mal por não ter ido ao aeroporto me despedir dele.
De repente, me senti muito triste. Então, pensei comigo mesmo...
"Estou triste pelo Sérgio ter ido embora ou...
só estou apavorado que agora estou sozinho sem o Sérgio?"
Nos dois anos anteriores, estávamos tranqüilos porque o Sérgio estava lá.
Às vezes, brigávamos com ele, mas sempre o procurávamos.
E a gente se sentia dependente dele, e esse foi o meu medo.
De repente, o peso do país estava sobre nós.
Era como se o Sérgio dissesse: "Vocês queriam independência...
brigavam conosco sobre quando a ONU iria embora...
bem agora estamos indo e aqui está o país".
Nós entramos no avião, a porta fechou...
e eu me lembro do Sérgio colocando a mão na janela...
e quando ninguém olhava para ele, desfazer-se em lágrimas.
Raramente tinha o visto assim, se emocionando daquele modo.
Ele não conseguia mais segurar, simplesmente teve um colapso.
Ele me disse que era muito difícil.
Depois do programa "Hard Talk"...
fui para casa na Páscoa e levei a fita.
E eu disse: "Vocês não sabem o que estou fazendo de verdade...
não sabem com quem estou trabalhando, então pai, para variar...
assista a um dos meus vídeos".
E eles sentaram e assistiram com uma das minhas irmãs...
e disseram: "Ah, que pessoa fantástica!".
E duas semanas depois, me ligaram dizendo:
"Aquele seu chefe se chama Vieira de Mello, não é?
Bem, ouvimos que ele vai para o Iraque".
"Eu acho que ele talvez vá", mamãe.
"O papai acha que talvez ele peça para você ir junto".
"Sim, talvez ele faça isso".
"Tudo bem, tenho certeza que ele cuidará de você...
ele parece uma pessoa tão boa".
Eu não teria ido lá por ninguém mais.
A missão era diferente das outras.
No Timor Leste, ele tinha uma margem de manobra muito grande...
porque a superpotência não estava tão envolvida.
e porque não havia administração direta do ocupador.
Então, a situação era extremamente diferente.
Costumava dizer-lhe que era muito difícil ampliar a nossa margem...
sob os auspícios da resolução 1483...
e ele respondia: "Sim, eu sei. E por isso devemos ter cuidado...
para eu não me tornar um Bremello"...
brincando com Bremmer e de Mello.
Ele costumava a dizer: "Não quero ser um Bremello...
não se preocupe com isso, Ghassan, não serei um Bremmello...
lutaremos por um papel autônomo para a ONU".
Ele passou um mês inteiro se reunindo com os iraquianos.
Das 8 da manhã até a noite, era um grupo depois do outro.
Ele viajou por todo o país, íamos para o Norte, Sul, Leste, Oeste...
ele se encontrou com todo mundo.
Ele ficou focado quase que inteiramente na formação...
de um conselho governamental, para garantir que esse fosse o mais...
representativo possível de todos os grupos do Iraque..
e que tal conselho tivesse a maior autoridade executiva possível.
E honestamente naquele momento...
os americanos não tinham o mesmo tipo de contatos que nós tínhamos...
que o Sérgio tinha com a mesma habilidade.
Desde o início, ele deixou claro que a ocupação devia acabar.
Não por causa dos ataques, mas por causa dos ataques que viriam.
A segurança no Iraque continua frágil...
muitos estão perdendo suas vidas quase que diariamente.
A presença da ONU no Iraque continua vulnerável a todos...
que queiram atingir nossa organização.
Nossa segurança continua a depender da reputação da ONU...
da nossa habilidade de demonstrar significativamente...
que estamos no Iraque para auxiliar o seu povo...
e da nossa independência.
A questão da legitimidade, na sua opinião, era crucial.
Não tenho certeza que a coalizão à época...
compartilhava de sua visão sobre a natureza crucial da legitimidade.
Acho que perto do fim...
ele estava um tanto preocupado sobre para onde...
estávamos indo como missão, com a ONU, e assim por diante.
Seu relacionamento com as forças de ocupação...
após a formação do conselho governamental...
tornou-se cada vez mais difícil.
E ele sentia que não estava obtendo o apoio necessário...
da sede da ONU em Nova York.
Basicamente, tanto Nova York como a missão da ONU no Iraque...
estavam igualmente sob a pressão pesada de uma ocupação...
e de uma resolução terrível.
Então não era um problema entre Bagdá e Nova York...
era um problema entre os membros do Conselho de Segurança...
que criaram uma resolução terrível que restringia muito a ação da ONU...
tanto em Nova York como em Bagdá.
Eu estava na Europa e liguei para o Sérgio.
Disse: "Sérgio, estou na Europa e antes de atravessar o Atlântico...
quero que você saia de Bagdá para me ver.
Vou te ligar amanhã...
para dizer onde e quando iremos nos encontrar".
E eu estava de férias e ele até me lembrou:
"Não se esqueça, Sr. Secretário-Geral, concordou...
que eu viajasse em outubro para visitar minha mãe.
Vou tirar um mês inteiro, seis semanas de folga".
Eu disse: "Certo, combinamos isso". No dia seguinte, ele morreu.
Então, ele foi para sua sala e eu fui para a minha.
E quando sentei na minha sala, imediatamente a explosão aconteceu.
Devia ser, eu não sei, 16h31 , 16h32, 16h35...
e eu topei com um dos guarda-costas de Sérgio, Gabi...
e perguntei: "Onde está o Sérgio?". Ele disse: "Eu não sei".
Eu disse: "Venha comigo, vamos para a sua sala.
Vamos ver se ele está lá, pois ele me disse que iria para lá".
Então, fomos até o segundo andar...
isso foi 2 ou 3 minutos depois.
E na sala dele havia muita poeira.
Tivemos de esperar na porta até que a poeira baixasse.
Então descobri que a parede que separava a sua sala do corredor...
junto com o chão do primeiro andar e do segundo andar...
tinha desmoronado. Como cortadas por um tesoura...
essas três coisas, uma sobre a outra...
e, no térreo, eu podia ver pessoas.
Alguém acenou com a mão quando me viu.
Pensei que era o Sérgio porque lá era a sua sala.
Hoje sei que era o Sr. Losher que nos visitava.
Mas então eu disse: "Sérgio, tenha coragem, estamos chegando".
O que mudou foi que uma certa inocência chegou ao fim.
Confrontados com o extremismo, o terrorismo...
que nem por um segundo associo com o Islã.
Não podemos mais acreditar na inocência da bandeira da ONU.
Todos nós somos alvos.
A verdade sobre a tragédia de 19 de agosto...
é que o prédio não estava protegido adequadamente.
A verdade é que os sistemas de segurança falharam...
e ninguém tomou as devidas precauções.
Como atuar como ONU de um bunker com guardas armados...
e carros blindados. Essa não é a definição das Nações Unidas.
A população deve ter acesso a nós. Precisamos nos movimentar.
Precisamos locomover refugiados, ajudá-los até politicamente.
Se quiser fazer uma eleição, não se pode fazê-la de um carro blindado.
Se a ONU entra junto com uma força de ocupação...
é um cenário diferente, não é uma missão de paz da ONU.
Então, isso causa dilemas fundamentais de organização...
que foram analisados em termos de segurança e que precisam ser feitos.
Por que não havia plástico em todas as janelas?
Devia haver em Bagdá e não havia. Isso teria salvado vidas.
Este é um dos aspectos, o outro é o político.
Devíamos estar lá? Sob qual argumento? Qual é o papel?
Qual é o mandato? E qual é a segurança para esse papel?
Se você se lembrar do relatório Brahimi sobre as operações de paz...
uma das recomendações era que a ONU devia deixar bem claro...
em certas situações que: "Não, não podemos realizar uma missão de paz".
Dizer não é uma opção da ONU, mas é só conversa.
A ONU não pode dizer não se o Conselho de Segurança mandar.
As nações que representam o Conselho de Segurança...
dizem ao Secretariado o que fazer...
o Secretariado trabalha para os países membros.
Mas quando recebem a missão, eles devem se proteger melhor.
Estamos nos tornando muito mais firmes.
E como eu disse nas duas últimas resoluções que negociamos...
podem nos dar um mandato, mas não iremos até que eu conclua...
que a situação é segura.
E essa avaliação é minha, não do Conselho.
Quando se tem um mandato, precisa implementá-lo primeiro.
E isso é uma novidade na nossa relação com o Conselho.
O que não mudou é que...
ao fingir libertar um povo, há meios que não podemos empregar.
A arrogância da força nunca funciona.
Às vezes, funciona durante a batalha, mas a batalha...
Sim, os poderosos podem ganhar a guerra...
mas depois é preciso ganhar a paz. E isso é muito mais difícil.
No Iraque, é preciso lidar com civis...
com a comunidade internacional...
com a ONU e com o Conselho de Segurança.
Isso não é fácil, mas Sérgio era mestre nisso.
O que vejo agora é uma vitória póstuma de Sérgio, pois agora...
reconhecemos que todo o processo não tinha legitimidade.
Acho que a doutrina da ação preventiva morreu em Bagdá.
E demorará muito para vermos um outro tipo de ação como essa.
E se qualquer governo, administração quiser seguir esse caminho...
não acho que será muito fácil convencer o congresso...
o povo americano ou o resto do mundo.
É preciso que ambos os lados encerrem de fato o capítulo da guerra...
e comecem um novo capítulo em que aqueles que foram à guerra...
reconheçam o seu erro, o seu grande engano.
E os grandes enganos que cometeram desde que a guerra terminou...
desmantelando o exército, a polícia...
e comparando Hitler a Saddam e Bagdá a Berlim.
Toda essa bobagem que ouvimos desde o fim da guerra.
Tudo isso deve ficar para trás e, por outro lado...
aqueles que se opuseram à guerra devem ficar mais conscientes que...
um Iraque instável é uma ameaça para si mesmo...
para seus vizinhos e para a segurança mundial.
Ele é um daqueles que pensei que um dia fosse ter o meu cargo.
Como chefe da organização e por ser tão próximo dele...
eu me senti responsável, pois eu os mandei para lá.
Acho que ninguém jamais entenderá como a morte de Sérgio e...
de seus colegas me abalou, exceto talvez a minha esposa.
Espero que a organização e os países membros aos quais ele serviu...
se lembrem não foi apenas o que ele fez, foi como ele fez.
Ele deixou coisas muito profundas.
Você conhece muitas pessoas na vida e você as conhece e...
elas realmente não causam um impacto profundo em você, mas ele causou.
Meu pai morreu no mesmo ano em que Sérgio foi assassinado...
eu não senti a mesma coisa. Senti amor por meu pai...
mas não senti aquele sentimento de perda sentimental...
que o Sérgio representou para todos nós.
E ele tinha esse impacto duradouro que sua ausência ainda tem.
E acredito que seja por que ele nos mostrou o que é possível.
É um pouco arrogante achar que vamos realmente mudar o mundo.
Quando se tem 20 anos, se pensa isso e depois o universo fica menor...
assim como aquilo que se acha que pode mudar.
E finalmente, quando se fica bem mais velho, se pensa:
"Talvez eu tente mudar um pouco eu mesmo e...
esperar que isso provoque algum tipo de mudança a meu redor".
Mas aceitando o fato que estamos só colocando gotas no oceano...
mas que sem tais gotas não haveria o oceano.
Sérgio colocou mais do que gotas, ele colocou muitos baldes de água.
Ele deixou não apenas admiradores, fãs e amigos...
mas seres humanos reais que foram beneficiados diretamente...
por seu trabalho. E eles podem ser encontrados...
em diferentes partes do mundo.
Tenho uma filhinha que conhece o Sérgio e dizíamos aos amigos:
"Bem, o corpo foi levado daqui para ali"...
E a pequenina disse: "Ah, aquele Sérgio, ele está sempre voando".
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