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Os amigos nos abrem portas surpreendentes quando nos apresentam coisas que nem imaginávamos
que poderiam existir. Cores, sons, imagens poéticas que passamos a conhecer por causa
deles. Somos gratos a eles porque o que nos apresentam serve para ampliar a experiência
dos nossos sentidos: passamos a ouvir, a escrever e a falar de outro jeito, sem termos vergonha
de mudar. Quem precisa censurar e reforçar a passividade de alguém não tem como conhecer
a importância da amizade para a liberdade humana. Um amigo músico, um amigo poeta,
um amigo filósofo, um amigo cientista, enfim, um amigo qualquer que, por meio do que ele
faz, é sempre uma provocação para irmos adiante -- e não podemos ter outro interesse
na amizade de alguém além deste. Precisamos de gente assim, capaz de doar alguma coisa,
de gente que podemos chamar, sem erro, de amigo. Com efeito, coexiste na nossa obra
alguma coisa das nossas amizades: um, dois, três amigos, não importa quantos são, desde
que saibamos que por meio da amizade tecemos de modo grandioso o nosso próprio destino.
Desse modo, esculpimos a nós mesmos lentamente, silenciosamente, amorosamente, agradecidos
aos que nos doaram algo valioso.
Falar, falar, falar. Certamente falamos demais por termos pouca coisa -- ou nada -- a dizer. A tagarelice parece não ter fim. As palavras
são excessivamente desperdiçadas e mutiladas porque perdemos a dilatação das experiências
que não são faladas. Uma pausa indispensável para o burburinho das ruas, da televisão,
do trabalho. Passamos, então, a permitir que o tempo, através de nós, gere palavras
vivas. Agora, em cada palavra dita, um rasgo é feito. O desejo passa, atravessa a palavra,
toca e modifica o ouvinte: estranhamento, hilaridade, repulsa, medo, amor... De qualquer
modo, algo vai ser produzido em quem é tocado por palavras impulsionadas por um desejo livre...
É livre porque destrói tudo aquilo que a moral, a religião e a razão querem limitar
ao estabelecerem o que pode e o que não pode ser dito - o efeito disso não poderia ser
mais nocivo: as palavras mortas passam a dominar a nossa vida. Precisamos encontrar o nosso
tempo próprio de processar o que nos atinge, a nossa maneira singular de sermos tocados
por elementos da vida que não são falados... Mas também podemos privilegiar as palavras
faladas que expressam algo novo, diferente -- e isso existe. Basta selecionarmos aquelas
que nos tocam com uma força que nos impulsiona -- para aonde? Pouco importa. Uma palavra,
bem utilizada, pode fortalecer. Núpcias e não a morte! - já que as palavras mortas
não têm, de fato, algo a nos dizer.
A crença na imortalidade da alma ainda alimentaa esperança dos que querem encontrar uma resposta definitiva para os seus problemas
existenciais. Mas a crença numa vida imortal que seria alcançada somente no mundo do além,
sofreu adaptações para atender os anseios da época "moderna". A noção de "alma" ou
de "eu" ainda permanecem praticamente inatacáveis, à medida que o homem continua a viver, sobretudo,
preocupado em defender-se contra os imprevistos da vida. Essa noção é realmente muito estranha
para quem vive o momento, porque o homem criador já experimenta uma felicidade de natureza
absolutamente distinta daquela inventada pelos homens impotentes. Para ele, soa estranho
questões como "Há vida após a morte?" ou "Para aonde irá a nossa alma?". Ora, como
as religiões oferecem as "respostas" para estas questões, mais um membro doente é
adicionado por uma seita. Mas estas questões não diferem, de fato, de outras, tais como
"Quanto eu vou ganhar se eu me formar em tal especialidade?", ou então, "Qual é a profissão
que mais combina comigo?". Estas questões indicam uma aflição para buscar, alcançar
e conservar um "eu" - essa é a aspiração máxima que move a vida dos homens que não
criam. A identidade está à venda, portanto, aos impotentes... Aos homens criadores, tais
questões nem passam pela mente deles, porque já vivem de uma maneira que sentem a eternidade
vibrar a cada novo ato de superação de si. Afinal, seus problemas são muito mais nobres
do que os dos atrofiados... Durante a noite, há momentos que os criadores adiam o sono,
não por causa das preocupações que costumam assolar o homem comum, mas porque ainda sentem
reverberar os efeitos de um dia de intensa criação... A experiência da felicidade
refreia a necessidade da crença na imortalidade.
Nos momentos de respiro estamos acompanhados da nossa própria experiência porque ousamos nos entregar, mesmo que temporariamente, ao
aspecto inútil da existência. Somente assim podemos perceber que, de fato, não paramos
de mudar um só instante, que nos diferenciamos ininterruptamente -- nesse processo sentimos
emergir uma grande alegria por participarmos de uma realidade que se alimenta de si mesma.
Passamos a amar e a desejar a potencialização da nossa capacidade de sermos profundamente
afetados pelo tempo. Como aprendemos a amar as experiências dessa natureza, somos pressionados
a comunicar aos outros essa grande emoção da mente -- e é inevitável que os pensamentos
nunca antes imaginados tornem-se presentes para nós. Essa grande sensação nos coage
a vivermos cada vez mais assim: o inútil, o maravilhosamente inútil, expressa a interrupção
temporária da agitação, do barulho que provém das quinquilharias eletrônicas, da
insana correria para atender os compromissos do trabalho, do consumo das distrações,
enfim, de tudo aquilo que caracteriza o cotidiano do homem utilitário. Com uma virtude encarnada,
quem é grande esforça-se, sempre naquilo que pode, para varrer para longe de si a maior
parte das obrigações sociais estabelecidas, e trava um combate contínuo contra o automatismo
crescente dos indivíduos que reproduz uma humanidade embotada, escrava do seu fanatismo
utilitário, da sua repugnância contra tudo que é estranho, do seu ódio contra o tempo.
Mas a criação e toda grande sensação apenas podem ser filhas do inútil!... Somente assim
podemos redimir o útil... Nada nos falta quando entendemos que, para que haja a geração
do novo, basta nos aprofundarmos no nosso próprio tempo -- um tempo que maquina silenciosamente
cada modificação em nós. É através dele que encontramos o nosso ritmo para o que fazemos com amor.
Envolvida pela tecnologia, distraída pelos mais diversos aparelhos eletrônicos, a vida
humana está com o seu tempo, o seu corpo e a sua vida sugados. Mesmo quando se tem
uma vaga idéia disso, a tentação é tão forte que, como resultado, os indivíduos
se adaptam, de bom grado, ao ritmo frenético de estímulos sonoros e visuais que embotam
os seus sentidos para a experiência das sensações que são distintas de um cotidiano que se
assemelha a um videoclipe. Alguns sintomas dessa vulgarização:
dominada pela poluição sonora e visual que distrai a mente, que rouba a ocasião primordial para que as suas regiões
inconscientes possam se manifestar com toda a sua riqueza, um sujeito assim quase não
amadurece -- percebemos isso quando, ao reencontrarmos alguém após alguns anos, constatamos que
ele praticamente não mudou...; a capacidade de pensar é esmagada pelo péssimo vício
de reduzir a vida à sobrevivência e, também, à necessidade de interpretar, de associar tudo;
a escrita cada vez mais enxuta, objetiva, refém de uma linguagem vulgarizada, gregária,
que serve para os que não têm tempo disponível para leituras que demandam um mínimo de paciência
-- o que denota uma atrofia cerebral crescente; um excesso de instrução que obscurece as
coisas elementares da existência (a arte, a fruição da vida, o pensamento, a alegria,
os devires) -- assim a instrução também serve de entorpecimento;
a ignorância da importância do corpo para a invenção de tudo que serve para a superação de problemas,
ou seja, impasses num cotidiano que se tornou insuportável de ser vivido (efeitos disso:
intoxicação do corpo através de um hábito alimentar que é induzido por interesses mercadológicos
-- como a ingestão de alimentos e bebidas que até os cães se recusam a ingerir -- e
a conseqüente sensação de fome contínua... a fome orgânica e também a fome psicológica,
esta como um sintoma de uma péssima alimentação do tempo). Percebe-se que o nível de inteligência
-- não a erudita, mas a do modo de viver -- está tão baixo, que estamos caminhando
para uma época em que se alguém falar ou escrever duas ou três frases que expressam
alguma complexidade de idéias, será chamado de gênio...
Nunca será tão fácil ser um "gênio" no meio de tanta vulgaridade.
A capacidade que temos de pensar não está dissociada das relações que o nosso corpo tece com os ambientes que freqüentamos, que
moramos, que lemos, que comemos. O mais elevado estado de espírito é fruto de uma vivência
nos ambientes certos -- pensar nunca é algo passivo, mas, ao contrário, é uma potência
da vida que envolve uma atividade do nosso próprio corpo, de uma fuga dos ambientes
errados. Um pensador é esmagado quando se deixa levar pela afobação daqueles que não
costumam pensar, quando é envenenado pelo império da insensatez que assola os homens.
Daí a necessidade de vivermos nas regiões mais profundas de nós mesmos, ou seja, passamos
a pensar quando mergulhamos numa natureza que já pensa em nós. Por ser distinto da
banalidade, do senso comum, é inegável que há uma doce loucura no pensamento, ao ponto
que podemos dizer que a força de uma idéia -- e o respeito que ela exige de nós -- está
em alguma loucura que nos faz viver. O pensador e a sua loucura: eis os companheiros inseparáveis,
que não se confundem, de nenhum modo, com a opinião.
O pensamento nos liberta da mesmice e da covardia, do gosto amargo da racionalidade, da consciência que quer prever tudo.
Pensar exige coragem para dizer as coisas que não se ousa dizer, para dizer de um jeito que
habitualmente a sociedade não deseja saber. E o nosso perigo é esse: deixamos de pensar
quando somos engolidos pelo mais terrível dispositivo de anti-pensamento que serve para
distrair as massas -- a proliferação da besteira.
Um mal-entendido ocorre quando alguém imagina que, por receber um salário, por viver como função de "tarefeiro", por cumprir as ordens que mais detesta por medo de perder o seu emprego,
estará se conservando... As coisas desagradáveis são atenuadas pela sensação
de conservação do seu "poder de compra" ou de "consumo" - consumo de lazer, de tudo
que serve para aliviar o cansaço e a dor de realizar um trabalho sem sentido algum.
O mandamento "Antes a conservação do que o risco!" está impregnado por toda a sociedade
- até em reuniões sobre as alterações no clima, vemos os chefes de Estado se esforçando
para conservar o atual sistema econômico. Mas como conservar um sistema capitalista
que desconhece os limites do planeta? - eis um problema que cada vez mais demanda esforços
dos defensores do capitalismo. Distraídos pela ameaça da ruína daquilo que reforça
a sua conservação, o verdadeiro problema nem é colocado pela sociedade, porque simplesmente
não interessa aos chefes de Estado, aos empresários, aos trabalhadores, aos consumidores - onde
todos são peças de uma máquina de destruição ambiental, social e... deles mesmos!
A vontade de se conservar ainda fala mais alto. Mas essa é uma falsa concepção do que podemos
chamar de conservação. Uma outra conservação deve ser desejada: conservar a nossa natureza
de operar modificações em nós, no ambiente, no social, no mundo, de expressar o nosso
desejo de outro jeito. Apesar do imperativo social ao conformismo, é necessário conservar
o anseio de vivermos de outra maneira. É necessário conservar a chama que nos mostra
onde há vida ao nosso redor, mesmo que isso ponha em risco a conservação dos ideais
dos que estão entediados do seu cotidiano: talvez, um dia, alguns desses que abriram
mão da luta para se venderem por umas migalhas, agradecerão à chama que lhes fez despertar
o desejo por uma outra conservação - a da potência singular de ser senhor do seu próprio destino...
Querer manter-se distante de si mesmo ao interromper as experiências das mais estranhas e incômodas sensações -- que são rapidamente abortadas
com algumas doses muito bem-vindas de distrações para a mente, entre elas o telefone, a revista,
o jornal, a televisão, a internet, o amante, objetos que devem estar sempre disponíveis
e facilmente acessíveis para anestesiar uma dor que não se sabe mais como vivê-la --, não
querer enfrentar os verdadeiros impasses: isso tudo indica que há uma impostura, uma
prática criminosa contra a produção de sensações e de sentimentos, contra o processo
irrefreável da vida de realizar-se de maneira que não agrada o pobre paladar do homem da
nossa época, este que ainda se recusa a aprender que também no gosto amargo das coisas a vida
se exprime com toda a sua dádiva. Este indivíduo que sofre poderia aprender que não adianta
esconder o que não funciona mais para ele; que, onde há lodo, certamente nenhuma distração
irá fazer a limpeza que expulsaria aquelas coisas que costumam entravar um livre caminhar
sem rumo pré-determinado, sem futuro já dado ou planejado -- tal limpeza pode ter
início a partir de uma experiência realmente vivida daquilo que lhe incomodou, através
de questionamentos que fazem um hábito nocivo ser, gradualmente, enterrado. Seus impasses
devem ser solucionados de dentro -- mas isso torna-se incompreensível se este homem continua
a envenenar-se pela resignação social com o estado atual das coisas do mundo.
Portanto, a sua existência funcional e a sua memória são subterfúgios para convencer-se da sua
resignação: "Tudo que eu queria ter feito, que eu poderia ter feito, infelizmente já
não posso mais. O tempo não volta para trás. Resta-me continuar a viver assim, alimentando-me
de ilusões! Afinal, ainda bem que elas existem!". O consumo de ilusões como única saída possível
para anestesiar-se -- o entorpecimento social da indústria das ilusões (o ensino, as viagens,
o emprego, o esporte...). Iludir-se para suportar a sua própria resignação. Assim, é inevitável
que o cansaço do homem contemporâneo cresça rapidamente à medida que aumenta a sua instrução,
que é a sua ilusão de conhecimento. América, Europa, Ásia, em suma, todo o mundo capitalista
caminha para a sua inevitável ruína através do mais alto grau de instrução: o cansaço
absoluto da absoluta automatização...
A carência de relações profundamente afetivas entre os indivíduos expõe cada vez mais a importância política da produção de
afetos. Não há dúvida que as divisões hierárquicas e o confinamento servem para
tornar as relações humanas cada vez mais artificiais e utilitárias. Por isso elas
são estabelecidas em ambientes demasiado organizados, onde a eficácia das tarefas
que são consideradas "urgentes" quase não permite que relações de outra natureza aconteçam.
A privação da constituição de relações autênticas é, talvez, a maior causa do adoecimento
humano, restando ao homem relacionar-se com o mundo de modo falso, vagueando pelos caminhos
que, imaginariamente, foram construídos para ele. É impossível que seja produzida uma
revolução social que ignore as relações afetivas. As relações que são tecidas sem
a mediação do homem-parasita possuem uma sustentação própria e, além disso, têm
um poder de contágio por vários canais da sociedade. Através das nossas atividades
cotidianas devemos expandir isso, com toda a nossa força! Chegaremos a um grau de tamanho
envolvimento afetivo que, muitas vezes, já não será sequer necessário pedir um abraço
ao outro, pois apenas com o encontro dos olhares tudo já é dito... Um canto pode mudar a
vida de alguém, assim como um carinhoso toque na pele, acompanhado de palavras delicadamente
sussurradas ao ouvido do outro - é impossível que, através do afeto, não seja criada uma
outra perspectiva da existência. O amor que surge nessas experiências passa a nos guiar
por toda a nossa vida.
É notória a objeção que muitos indivíduos têm diante de um ato tão grandioso de despedir-se: talvez a despedida seja a coisa mais difícil
de ser desejada porque a idéia comum que se tem da existência ainda está impregnada
de concepções demasiado utilitárias, e de uma avaliação profundamente torpe dos
pressupostos mais essenciais à criação. Mas, apesar disso, a despedida é, talvez,
o ato mais importante para quem é impelido por uma grande inspiração: um pensamento
maior surge naquele que percebe o movimento inexorável das mudanças que estão presentes
em absolutamente tudo que existe. Para quem tem no corpo o sangue do artista, despedir-se
das coisas que, temporariamente, fazem parte da sua existência é a condição vital para
que a sublime obra de manter-se na transposição de limites não seja interrompida por uma
leviandade qualquer que pode assolá-lo em certas circunstâncias, e que, por isso, torna-se
perigosa. Melhor que seja interrompida por uma causa muito mais nobre, que é a produção
infinita da existência... A dor da despedida, por ser honesta, é infinitamente menor do
que a dor do adoecimento que, inevitavelmente, surge quando estamos dominados pelo medo do
desconhecido. Mas há tanta coisa para ser explorada nesse mundo desconhecido que, inclusive,
nos habita! É, sem dúvida, um problema nosso saber quando não podemos mais esperar para
irmos embora. Mas enquanto não partimos, um vento forte -- que se repete incontáveis
vezes durante a nossa existência -- continua a nos empurrar para efetuarmos a despedida
de tudo aquilo que tornou-se uma desarmonia -- não há dúvida que somos impulsionados,
a todo momento, à musicalidade. Somente assim podemos nos unir aos que puderam despedir-se:
eles tornam-se compreensíveis para nós porque experimentamos o que são as dores e as lágrimas
de uma despedida, mas também aprendemos que a alegria e os sorrisos também estão implicados
no ato de despedir-se... Nasce uma união dos que superaram o medo de se diferenciar.
Apenas essa união é legítima, pois, afinal, é a própria vida que quer expandir-se que
a legitima. Grande celebração dos que ousaram trocar de pele!
E tal união é radicalmente distinta daquelas que são realizadas pelas instituições que foram erguidas por aqueles
que não conseguem efetuar a despedida: é inevitável que sejam uniões artificiais,
marcadas por um ínfimo traço de vida...
Quando nada mais parece nos tocar, nenhuma música, nenhum livro, nenhuma conversa, fazemos seguidas tentativas (frustradas) para expressar
alguma idéia interessante, mas, então, finalmente percebemos que a nossa vontade de doar algo
ao mundo está, momentaneamente, entravada. A partir disso, podemos até imaginar que
a roda da criação parou de girar em nós -- mas isto é, certamente, o nosso maior
engano. Os momentos de impotência criativa nos ensinam, no mínimo, a compreender o que
constitui o cotidiano dos indivíduos que estão capturados pela organização moral:
como eles estão impedidos de evoluir conforme os seus mais sinceros desejos, são alvos
fáceis da indústria do passatempo. A "felicidade dos acomodados" (uma espécie de alegria derivada
do "tapinha nas costas") impede que a impotência criativa seja, de fato, experimentada -- ela
é covardemente escondida pelos brinquedos industriais que são produzidos para os sofredores
da realidade... Tagarelar, por exemplo, ainda é uma das vias mais fáceis para distrair-se
de si mesmo (para isso, uma boa lista de "amigos" pode ser bastante útil). Agir como todos
devem agir nos mantém distantes do conhecimento da nossa singularidade de ruminar, de escutar
as múltiplas vozes interiores que vão, gradualmente, emergindo em nós, vozes que desejam conduzir
a nossa existência, acompanhadas de cores, sons, sentimentos -- assim a nossa consciência
é enriquecida pela força da vida que nos impulsiona. Sem dúvida, existem coisas que
nos tocam, que nos mobilizam, mas, nos momentos de crise, elas parecem passar por nós sem
nos deixar nada, como se nos obrigasse a uma pausa e a um desvio necessário para que seja
possível, enfim, alguma experiência sem falsos temores, longe de questões do tipo
"onde é que isso vai dar?", como saída necessária para que possamos retornar ao nosso querer.
Outrora, o sentimento de impotência artística poderia nos levar a agir como os massificados,
isto é, desejar as distrações enlatadas e fazer a nossa própria existência simplesmente
passar, de maneira entorpecida. Mas depois de tantas mudanças e já com algum respiro
de vida autônoma, não queremos mais fugir dos momentos de crise, pois na verdade já
passamos por eles algumas vezes e sabemos que a impotência adormece quando a nossa
natureza volta, regenerada, a fluir para o mundo através das nossas obras.
É preciso ser grande para não se opor aos momentos de crise...