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Durante todos os anos 60 se falou na colonização cultural,
no subdesenvolvimento cultural mas, na realidade,
o intelectual latino-americano continuou colonizado,
porque continuou inclusive usando a razão burguesa colonizadora
como seu próprio instrumento de ação, não?
Mesmo tendo um conteúdo revolucionário e anticolonizador,
seu pensamento continuou sendo expresso
através de uma linguagem colonizadora.
...porque ele aprendeu a ler em Francês, em inglês,
aprendeu o pensamento europeu, americano,
a aplicar esse pensamento para investigar sua própria realidade
e Ficou numa contradição, paralisado
por não fazer a prática política, a revolução social e política,
não conseguiu chegar a uma nova linguagem
e se desvincular do racionalismo
da cultura burguesa.
Bom, o cinema latino-americano
reflete exatamente a situação política latino-americana.
Os dois movimentos iniciais mais importantes Foram: o cinema cubano,
que surgiu com a revolução,
e o Cinema Novo brasileiro, que surgiu depois do cinema cubano, em 62/63,
trabalhando em condições diferentes, porque o cinema cubano
é Feito num país socialista e o Brasil é um país capitalista.
Mas os dois cinemas se identificaram em várias perspectivas, que eram:
um cinema de independência cultural diante do cinema imperialista,
tratando diretamente dos problemas sociais,
políticos e culturais da América Latina.
Inclusive porque têm problemas comuns
de conquista de mercado dominado pelo imperialismo;
têm problemas comuns de deficiências técnicas
provocadas pelo subdesenvolvimento técnico;
têm uma grande organização espontânea
porque os cineastas latino-americanos estão unidos,
mesmo que tenham pequenas diferenças estéticas ou ideológicas
com relação à especificidade de cada país,
estão unidos no ponto comum de que devem...
conquistar o mercado latino-americano,
libertar o mercado latino-americano da ocupação americana,
e isso está ligado à libertação econômica geral dos povos e...
substituir a linguagem imperialista de colonização
pela linguagem nova do cinema latino-americano.
Nos anos 70,
Cuba era um país diplomaticamente isolado,
mas ao mesmo tempo em que Cuba estava sofrendo essas vicissitudes
começam a chegar no país
personalidades da cultura latino-americana.
...um cineasta brasileiro, um homem já famoso, Glauber Rocha...
...e latino-americanos, o que significa que,
exceto o Cinema Novo que está extinto
...mas os cineastas do Cinema Novo ou estão no Brasil ou estão Fora,
na clandestinidade, tentando prosseguir Fazendo a luta política
e também o cinema nesse processo, ambicionando essa visão.
Então o cinema latino-americano será, em poucos anos, um Fenômeno novo,
muito importante do ponto de vista político porque será
o primeiro movimento artístico de unificação cultural e política
na América Latina, será o cinema.
- 0 cinema? - O cinema.
Um grande revolucionário como artista
porque foi um inovador da linguagem cinematográfica
e foi também um
revolucionário essencial.
Glauber começou seu período cubano
como um de nós...
e a figura de Glauber foi crescendo e o cinema cubano foi surgindo.
E desde o princípio marcamos nosso destino com América Latina,
marcamos nosso destino com
o cinema latino-americano, mais que com o cinema socialista.
Cuba... o cinema cubano
era um pouco o sustento do cinema latino-americano
do ponto de vista econômico, ou seja,
os cineastas latino-americanos não tinham recursos
nem subvenção, nem apoio,
então as pessoas filmavam seus filmes e depois vinham finalizá-los aqui,
pois tínhamos laboratórios, estúdios de som,
toda a pós-produção.
Éramos um pouco o irmão
que ajuda o outro...
E sobre alguns filmes nossos as pessoas dizem...
"olha a influência do Cinema Novo!" Era uma atitude semelhante...
Você me pergunta, concretamente, por que eu faço cinema.
Bom, na realidade eu faço cinema porque existe imperialismo.
Se não houvesse imperialismo, eu não faria cinema.
Não se estava lutando
simplesmente para alcançar o socialismo, se estava lutando
para alcançar um sistema mais independente
dos interesses econômicos dos Estados Unidos,
fosse capitalista ou socialista,
mas se tratava de alcançar
a verdadeira independência do nosso continente.
Histórias da revolução em que transcorre a epopéia de todo um povo
nos dias finais da luta contra a longa noite de tormento.
Desde o princípio estávamos muito conscientes
de que não podíamos competir
com uma cinematografia que tem todos os recursos do mundo,
enquanto nós tínhamos apenas uma realidade muito rica.
Procurávamos ter criatividade suficiente e,
apenas com os elementos essenciais, poder realizar filmes
que fossem interessantes e que se colocassem num terreno
diferente do cinema americano.
Já no ano de 68, o cinema cubano saiu pelo mundo,
foi descoberto em todos os lugares.
Há um prestígio, uma história, uma tradição
que eu acho que se deve fundamentalmente ao documentário.
...a desintegração do lmpério Americano,
a rebelião das vanguardas, Revolução Total,
Revolução Chinesa, política, ***, Revolução Cubana,
Revolução do Terceiro Mundo...
Todos, de alguma maneira, tínhamos surgido do neo-realismo italiano,
pela força que nos anos 40 e 50 teve o neo-realismo no cinema mundial
e em particular, na América Latina.
E no transcorrer desses anos buscamos nossa própria autenticidade,
nossa própria maneira de expressar nossos sentimentos,
nossos pensamentos... nossa realidade.
Glauber fez Deus e o Diabo na Terra do Sol em 64.
Isso significa que se adiantou a todos nós
na sua colocação do fenômeno do neo-realismo italiano,
e posso dizer que me lembro de Glauber
como dos primeiros a romper e acrescentar algo novo.
Glauber foi realmente como quando você acende uma luz na escuridão.
Abriu caminhos, era uma tormenta, um ciclone, teorizava...
não eram só os seus filmes, mas também seu pensamento estético.
A estética da fome comoveu muitos cineastas
e contribuiu para que víssemos o cinema
de uma forma mais objetiva diante das necessidades latino-americanas.
E isso foi Glauber na minha opinião. Foi um ponto muito importante.
Era uma maré de sentimentos,
de afirmação da identidade de cada país,
da autenticidade da cultura de cada país.
Cada um buscava sua própria imagem,
não queria ver-se refletido em um espelho que refletisse
o mais externo da sua figura,
mas queria ver-se em um espelho poético
que refletisse o mais profundo da sua figura.
Esse era o diálogo que sustentávamos Glauber e eu.
Hoje, os intelectuais de vanguarda no mundo
já não querem ser chamados de intelectuais.
Não por culpa de serem intelectuais,
não porque desmereçam
ou considerem inútil a Função de pensar,
de Fazer a especulação Filosófica, a criação artística, a pesquisa científica.
Não, pelo contrário, sobretudo por valorizarem
mais profundamente essa capacidade
de produzir para a coletividade
é que os intelectuais de vanguarda não querem mais
ser um personagem de elite...
de elite entre aspas, porque sempre estiveram submetidos
economicamente ou moralmente aos interesses
da aristocracia ou da burguesia.
Então esse tipo de intelectual desapareceu
para integrar-se na sociedade como um operário,
como qualquer outro homem.
Abandonando essa posição de elite,
identificado socialmente com as outras classes de homens
que trabalham dentro da sociedade, ele penetra
mais nesses problemas para produzir uma arte que,
por exemplo, não Fale sobre o povo mas que seja a voz do povo.
Aí então a arte é revolucionária,
a ciência social é revolucionária, a Filosofia é revolucionária...
...e existe uma espécie de comunidade ideológica e profissional
que justifica minha presença em Cuba.
Porque vindo a Cuba para Ficar algum tempo
trabalhando com os companheiros do ICAIC,
eu me sinto praticamente em casa,
porque não existe nenhuma diferença,
nem ideológica, nem técnica,
nem profissional ou cultural no meu trabalho
e no meu diálogo com os cineastas cubanos.
Quanto às artes de espetáculo,
por exemplo, o cinema, o teatro,
a música são artes que só podem se desenvolver
com a criação coletiva.
Ou seja, é impossível
Fazer um teatro sobre o povo ou para o povo,
sem que o povo tenha uma participação profunda nisso.
Porque o artista é sempre aquele que aborda a realidade
sem conhecimento científico.
Essa Falta de conhecimento científico impede, é verdade,
impede um conhecimento rigoroso da sociedade.
E por Falta desse conhecimento
não há possibilidade de uma intuição mais além das ciências
sobre determinados problemas.
A arte hoje está na retaguarda.
A arte tem que se transformar numa expressão sintética, não?!
De síntese, uma expressão dialética de todos esses conhecimentos.
C0MITÊ DE DEFESA DA REV0LUÇÃO
A arte é individual.
Se a arte é iluminada, ela ilumina algumas pessoas,
ou todas as pessoas.
Mas eu não me interesso por cinema nem pela arte
que eu acho uma atividade divina e sagrada,
eu acho que então não se pode pensar em dinheiro com a arte.
Eu gostaria que as pessoas Fossem ver o meu trabalho Fora
um trabalho de "descolonização cultural",
HAVANA, 1971 um diretor brasileiro
Filmando Fora o grande apocalipse do Cinema Novo
a degola Fatal e Final do cinema colonizador
então, só por essa atividade mística.
Como o meu cinema é um cinema revolucionário claro,
um cinema que passou por vários *** em várias telas
e por vários públicos do mundo,
eu sou um cineasta independente.
Eu não sou liderado nem patrulhado
nem sou patrulheiro, estou na minha, Fazendo meu trabalho.
Eu parto do princípio que o público brasileiro
nem conhece o meu trabalho, muito menos a crítica.
Quer dizer, apenas uma minoria de pessoas
conhece os meus Filmes aqui no Brasil,
que são muito mais conhecidos Fora do Brasil,
infelizmente pra mim e pros brasileiros
mas somos muito mais conhecidos, seriamente conhecidos...
Esse trajeto era conversando com meia Havana,
ele assistia o filme com o público para sentir a reação.
Parava na porta e como todo mundo já o conhecia,
ficavam centenas de pessoas durante duas horas
conversando com Glauber sobre seus filmes.
Ele se converteu em um personagem de Havana...
Era um cineasta extremamente admirado aqui,
pelo menos pelas pessoas que conhecem algo de cinema,
porque era um tipo de cinema muito
novo pra nós!
E além disso, apresentava um personagem muito problemático,
muito difícil de apresentar porque se tornava simpático.
Era o "matador de cangaceiros".
E digo que esse personagem era complexo
porque os cangaceiros eram ladrões,
mas ao mesmo tempo era gente do campo
e estavam de alguma maneira lutando contra a exploração do camponês.
E era surpreendente como ele
conseguia fazer com que o personagem, que era um matador,
fosse simpático.
Além das rebeliões de caráter religioso,
com o Fim do século passado,
surgiram no interior os primeiros grupos de cangaceiros,
que viriam a construir o Nordeste, em festas de heroísmo e bondade.
Mas qual a origem do cangaceiro?
..porque aqui em cuba também foram publicados romances brasileiros,
como um que até se chamava Cangaceiros,
e que explicaram um pouco aqueles personagens
bastante brutos e selvagens
que foram característicos de uma época no Brasil.
Então o cangaceiro era conhecido aqui,
não só pelo cinema como também pela literatura.
...no meu caso, pela crítica cinematográfica,
pelas revistas culturais
às quais freqüentemente tenho acesso.
Cada vez que se fala de cinema, do nosso cinema,
cada vez que se faz história e se faz referência a um "Titon"
ou a algum realizador argentino, está sempre onipresente Glauber Rocha.
Abriu um caminho no cinema latino-americano!
Pela força dos personagens, pela combinação
com a música, pela forma violenta daquele filme...
Eu vi esse filme há mais de vinte anos, depois não voltei a vê-lo,
me lembro pelo nome, pela impressão...
Era um cinema muito bom!
Lamentavelmente depois desapareceu.
Não o vimos mais nos anos seguintes, não vimos mais nada dele.
Aliás, há dez anos que eu não Filmo no Brasil.
Há onze, porque o último Filme que eu realizei no Brasil
Foi O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, em 1968,
que ganhou o prêmio de Direção no Festival de Cannes de 69.
Em seguida, eu Fui para a África
onde Filmei O Leão de Sete Cabeças
e, depois, para a Espanha, onde Filmei Cabeças Cortadas.
Voltei para o Brasil, Cabeças Cortadas Foi proibido,
eu cheguei à conclusão que aqui não era possível
levar o meu discurso avante. Senão eu é que seria degolado.
Aí, Fui-me embora para o exterior, onde realizei História do Brasil,
uma parte em Havana, Cuba, outra parte na ltália.
Realizei Claro, na ltália,
concluí a montagem do Filme Câncer.
Os negativos de Deus e o Diabo na Terra do Sol, Terra em Transe,
Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro,
Câncer, História do Brasil e Claro,
toda a minha obra é no exterior, porque eu tive que tirar do Brasil
porque Foi ameaçada de ser destruída, queimada!
Era no Rio de Janeiro, em agosto de 1968.
Tinha uma agitação arretada, os estudantes na rua, os operários.
Tinha operário ocupando Fábrica em Minas Gerais,
tinha operário ocupando Fábrica em São Paulo e estudante...
E era a ditadura do Costa e Silva, que tinha sido o segundo ditador,
depois de Castelo Branco, e tinha derrubado o presidente Jango,
que estava Fazendo a Revolução de 64.
Quer dizer, o presidente Jango é quem estava Fazendo a Revolução de 64,
não era o marechal Castelo Branco
porque este era um marechal reacionário.
Então, estava uma onda terrível, os estudantes na rua.
O líder era Vladimir Palmeira. Tinha Marcos Medeiros,
Elinor Brito, o psicanalista Hélio Pellegrino,
Franklin Martins, a barra-pesada toda.
Mas não era mesmo uma revolução, quer dizer, era agitação,
tinha um Francês também, tava uma onda arretada.
Nego dizia o seguinte: que era revolução,
mas era só classe média radical, burguesia liberal, reformista na rua.
E os operários, tinha muito camponês morrendo de Fome no Nordeste,
aliás, continua morrendo até hoje. Estão morrendo há mais de 400 anos.
E os intelectuais estavam lá no Museu de Arte Moderna
naquela noite, exatamente discutindo sobre a arte,
a arte revolucionária,
porque estava começando o Tropicalismo, uma onda arretada.
Quando eu cheguei em Havana, e aí, no ICAIC,
a sincronização Foi Feita pelo Raul Garcia
e eu montei com a Tineca e a Mireta.
E Foram quatro dias pra Filmar e quatro horas pra montar
e sincronizar. Ficou com o título Câncer.
Eu adoraria ver o filme agora, depois de tantos anos...
Nunca vi esse filme montado.
Me lembro dele por fragmentos.
Foi no ano de 1971,
a direção do ICAIC, Alfredo
pediu que o ajudasse em um filme que tinha problemas de som.
Ele trazia esse filme, os originais gravados.
Tinha estado na ltália e na Inglaterra tentando sincronizar o som direto
e nenhum estúdio de som conseguiu sincronizá-lo.
Selecionei um plano de uma pessoa falando em primeiro plano,
passei a fita numa velocidade completamente anormal,
digamos que nesse tom...
e eu dizia: mas está em outra velocidade?! Está lento...
...está sincrônico mas está lento!
E ele fazia assim...
como se estivesse maravilhado
que o filme estivesse sincrônico e numa outra velocidade.
O caráter de Glauber e o caráter da obra em que estávamos trabalhando,
o filme Câncer, tinham uma magia que não recusava isso,
estava dentro do possível, estava dentro da idéia.
No cinema o que acontece é o seguinte: Fazer um Filme é um processo
teórico e prático, então é um processo de produção intelectual técnico.
Porque a técnica também é uma produção intelectual.
A eletricidade Foi inventada por Edison,
o cinema nasceu de um trabalhador.
Então Lumière, que criou a técnica do cinema, é tão importante para o cinema
quanto Eisenstein, que criou a estética do cinema,
a técnica e a estética estão paralelamente juntas.
Quando se Faz um Filme, Fala-se muito do diretor
e se omite praticamente todos os outros que participaram do Filme.
Participaram duzentos, trezentos homens
e esses homens Ficaram no anonimato.
Precisa-se de câmeras, de montadores, de maquinistas, de eletricistas...
Nesse processo de servilismo dos intelectuais ao poder,
o problema da razão sempre Foi colocado.
Uma coisa criada pela sociedade burguesa
para justificar sua própria ideologia de classe.
E essa razão determinou uma política,
uma estética, um comportamento Filosófico.
No cinema também aconteceu a mesma coisa, as câmeras Foram criadas
e logo em seguida Foi criada toda uma estrutura de produção cinematográfica,
de dramaturgia cinematográfica,
de mecânica de distribuição em Função desta razão burguesa.
Toda a dramaturgia do cinema criada pelo imperialismo
Foi uma dramaturgia convencional, de acordo com
os interesses da burguesia, todo um esquema psicológico,
um esquema dramático, um comportamento...
O diretor de cinema é uma espécie de "maître", como um "maître" de hotel
que decide "Você se senta à direita, você se senta à esquerda..."
A tal ponto que o cinema se converteu numa mecânica completamente ridícula
e inútil de convenções dramáticas, de close-up para dizer "eu te amo".
Uma coisa completamente absurda e que não reflete
verdadeiramente o comportamento... do homem verdadeiro.
Me dizem "às vezes você Faz cenas que são irracionais!"
lrracionais em relação
ao racionalismo da cultura burguesa!
Para mim a razão burguesa é que é irracional!
Se você der uma câmera a um camponês ou a um operário
para Filmar a sua vida,
ele Fará um Filme diferente de um Filme imperialista,
Fará um outro tipo de Filme.
Principalmente se For alguém que não tem a educação
do Filme burguês na cabeça.
Se estou fazendo isso como intermediário,
é porque ainda não chegou o momento em que
Foi dada a oportunidade às pessoas para que Façam seus próprios Filmes.
O Filme tem essa Forma estranha porque é uma interpretação
próxima daquilo que as pessoas Fariam se elas mesmas Fizessem o Filme.
Eu acredito que o público cubano pode entender muito bem o Filme,
porque o público cubano está ligado às tradições africanas,
à simplicidade das coisas, não?!
Talvez uma coisa que possa parecer estranha a um branco civilizado,
a um intelectual civilizado,
não pareça estranha a uma pessoa simples que está mais ligada a isso.
Está sendo exibido o seu filme O Leão de Sete Cabeças.
Você poderia explicar quais são as chaves fundamentais desse filme?
É o primeiro Filme Feito na África
onde verdadeiramente se vê a luta política africana
do ponto de vista de um latino-americano,
um homem do terceiro mundo, como eu, que inclusive tenho sangue africano.
O Leão de Sete Cabeças é um Filme
sobre o colonialismo na África e a Revolução Africana.
...aquele que tem uma compreensão diferente do marxismo,
do método dialético, vai ver que o Filme é uma discussão dialética
sobre a realidade africana baseada em Fatos concretos
que provocam qualidades novas.
Então essas novas qualidades são um novo tipo de linguagem.
No Filme eu coloquei a câmera e a tela abertas para o povo se manifestar.
É um tipo de cinema onde o povo verdadeiramente
cria seu movimento de cena, seus diálogos,
que é diferente do cinema imperialista, do cinema burguês,
em que o diretor determina da sua cabeça como o povo deve Funcionar.
O Filme Foi todo improvisado. Todas as cenas
em que participam os africanos Foram criadas por eles mesmos.
Eu explicava os temas,
inclusive usando atores de vários graus políticos diferentes,
e eles improvisavam a discussão política.
Não existe diferença entre teatro e cinema.
O problema do teatro é que é uma representação no palco.
O cinema é uma representação na tela.
As pessoas dizem "isso é cinema, isso não é cinema"
porque o cinema imperialista criou um tipo de narrativa
dizendo que aquilo era cinema, mas você também pode colocar
a câmera aberta diante de um palco e as pessoas representam.
Foi acusado de ser um Filme intelectual,
mas quem o acusou de ser intelectual
Foram intelectuais ligados à arte burguesa.
O Filme é uma ruptura, uma inversão completa de um sistema dramático.
É um Filme que eu considero que rompeu totalmente
com a linguagem do cinema europeu,
com a linguagem do cinema imperialista.
Morte ao Colonialismo!
Me pareceu a melhor Forma de propor
um cinema revolucionário de Terceiro Mundo.
É UM MITO REVOLUCI0NÁRIO *** NO BRASIL
EU COLOQUEI O NOME
NO LÍDER AFRICANO
PARA FAZER UMA RELAÇÃ0 CULTURAL.
Porque Guiné-Bissau é um estado novo,
Moçambique é um estado novo, Angola, toda a África é nova.
Filmei na África sobre o problema africano
mas também poderia ter Filmado na Bolívia sobre o problema boliviano,
no Brasil...
O problema aFro-latino me interessa muito.
Eu achei que precisava ir à África,
seria também um ato político e cultural
de colaboração para o entendimento da luta tricontinental.
Porque a História é implacável, não?!
Num determinado momento em que os próprios intelectuais revelaram
todas as contradições políticas da América Latina
se via que as resoluções dos problemas políticos da América Latina
não podiam Ficar no puro plano do criticismo.
Necessitamos de uma transformação histórica.
Então a primeira coisa que o intelectual latino-americano
tem que Fazer é se desmistificar completamente, abandonar esse papel
de intérprete e crítico da História
sem uma participação concreta política na História.
Essa contradição Foi resolvida, inclusive
no seu nível mais significativo, não só para a América Latina
como para todo o mundo, na Figura do Che Guevara,
que Foi ao mesmo tempo um pensador político e um prático político.
Então o que Fez com que o Che se convertesse
em um mito extremamente importante para todo o mundo,
para toda a juventude revolucionária do mundo, do oriente ao ocidente,
Foi justamente porque encarnou uma...
encarnou essa contradição em si, não?
Foi a síntese de uma nova proposição do homem.
Irradiou uma Força mítica para isso.
Na realidade em qualquer processo social,
um médico, um engenheiro,
um aviador,
um marinheiro, um telefonista,
um mecânico é tão importante quanto um Filósofo ou um poeta,
porque a sociedade se compõe de tudo isso.
Uma das grandes tragédias da sociedade capitalista
é justamente a especialização criminal do homem,
a pessoa que se especializa somente numa coisa. Então você encontra,
por exemplo, músicos incapazes de dirigir um carro,
esportistas incapazes de se sensibilizar para ouvir música,
você encontra pintores incapazes de tocar música,
um mecânico completamente concentrado nas máquinas,
que é uma anomalia, um desastre completo
na Formação do homem na sociedade burguesa.
Em todo o mundo capitalista
e especialmente na esfera dos países subdesenvolvidos,
existe uma classe econômica de características bem definidas.
Então o que acontece é que qualquer homem é capaz de produzir música,
é capaz de produzir sons, como qualquer homem é capaz de pintar,
qualquer homem é capaz de construir uma máquina.
Qualquer cérebro não educado, pelo menos na primeira infância,
tem a possibilidade integral de se desenvolver em todos os sentidos.
Então é uma deformação da educação do homem
provocada pela sociedade burguesa,
porque o homem não tem a capacidade
de se desenvolver integralmente dentro da sociedade burguesa,
não tem uma oportunidade de educação por causa da opressão econômica,
então é setorizado desde criança...
Na América Latina morrem quatro crianças por minuto
devido a doenças provocadas pela desnutrição.
Ao fim de dez anos são vinte milhões de crianças mortas por essa causa
que é o mesmo número de mortos produzidos
pela Segunda Guerra Mundial.
...demonstrando que o homem educado dentro de um sentido liberador
pode realmente ser ao mesmo tempo um engenheiro e um pintor.
O que seria dar ao homem a plenitude total dentro da sua existência,
ou seja, a ciência não exclui a poesia.
Sara Gómez é Cayo Hueso.
Sara é Brasil. Sara é América. Sara é África.
Sara nos dá ânimo porque não está morta... taí!
Uma das primeiras mulheres cubanas
que gozou do privilégio
de ver o que foi a liberação da mulher,
porque mesmo sendo muito difícil
ser cineasta pela cor da sua pele, foi cineasta!
Não sei como chegou ao cinema, porque o cinema
é um meio que requer uma grande complexidade técnica,
uma série de mediações para se conseguir dizer algo com clareza.
Sara teria desejado fazer cinema sem câmera, sem microfone, sem nada,
teria desejado fazer cinema diretamente...
Não uma busca da nossa identidade, mas nossa identidade à flor da pele.
Sara foi ali naquela raiz. Sem raiz não existe nada!
0 resto é ficção e a ficção todo mundo inventa...
Eu nunca vi os dois juntos, mas soube depois por Sara,
enfim, do respeito, da admiração que todos tínhamos por ele,
pelo cinema que tínhamos visto,
todo o movimento do Cinema Novo e o que ele significou
dentro desse movimento. 0 encontro dele com Sara foi para ela
definitivo como cineasta, como realizadora.
Mais que seu cinema, conhecer o homem que fazia aquele cinema,
como era, como assumia, como enfrentava a vida
e a relação com as pessoas,
para ela e para todos nós foi realmente uma comoção.
Conhecê-lo, vê-lo e principalmente escutá-lo,
aquele delírio poético constante que era a sua fala...
Além disso, tem algo que meu amigo
não disse e que deve ser dito.
0 público cubano, ainda que seja o menos informado,
é o público latino-americano mais conhecedor do cinema latino-americano,
não somente Glauber Rocha,
mas todos os grandes realizadores, os grandes artistas latino-americanos.
Meu estilo de Filmar está profundamente ligado
à cultura popular brasileira,
aos símbolos...
o que consideramos símbolos e alegorias não são abstrações,
são expressões diretas de elementos da cultura popular.
É um cinema Feito sobre o povo e com a colaboração cultural desse povo.
Então eu, que por uma deficiência profissional
não tenho capacidade de Fazer documentários,
Faço Filmes Ficcionais,
ligados à realidade latino-americana
e daí surge uma linguagem que expressa os mitos
mais profundos do povo americano, herdados
da cultura negra, da cultura índia,
das imagens, da imaginação visual, da...
Aqui mesmo no bairro de Cayo Hueso tem gente que poderia falar sobre ele,
que o conheceu, que o contactou nos sobrados, nos parques e nas esquinas
onde as pessoas se reuniam.
Foram muitos os versos que escutei naquele dia, ele os inventava na hora.
Tudo o que ele pensou e fez foi em termos de imagens poéticas,
o tempo todo. Sua obra é um poema enorme...
Foi um escritor tanto quanto um cineasta, um homem de imagens
que buscava uma relação com a palavra e com
um mundo mais além do que se estava vendo.
Eu dizia brasileiro, ele me dizia que era baiano. Eu nunca entendi isso,
depois me dei conta que sim, parece que o baiano é outra coisa,
não tem nada a ver com as pessoas do Rio de Janeiro.
Sempre me dizia que era baiano: "Eu não sou brasileiro, eu sou baiano!"
É como se eu dissesse que sou de Cayo Hueso. Nunca entendi isso...
Mas isso foi há muitos anos...
A MEMÓRIA NÃO SE GRAVA COMO UM FILME
...Faz o papel de Jesus Cristo
reencarnado no corpo de Che Guevara.
Você entende? É uma espécie de cangaceiro surrealista.
Naquela época ele me falava dos cangaceiros, já tinha me irritado com
isso de cangaceiros... Então eu disse: "0lha! Meus cangaceiros estão aqui!"
Era um domingo, isso estava lotado de gente. E todo mundo fez um silêncio...
É a viagem onírica ao centro mítico do inconsciente hispano-americano.
Cabeças Cortadas é um Filme sobre a loucura...
a loucura, meus amigos! A loucura da violência.
A arte é, aliás,
tanta violência...
cometida em nome da paz, do humanismo, do amor,
da esperança. Cabeças Cortadas é isso. Você entende?
Das minhas paranóias, das minhas loucuras...
Poema...
das minhas Fantasias.
Poema de Portugal...
É toda uma jogada com a morte.
Francisco Rabal no papel do ditador Porfírio Diaz,
do exílio ao Eldorado.
Não, para mim o cinema cubano é um cinema de oportunidades.
Existem momentos em que se faz coisas muito boas
e outros momentos que têm sido
de manter o cinema cubano como cinema.
Cuba nunca pode ser vista fora do contexto econômico internacional,
porque o povo cubano é um povo muito politizado
e que depende muito da economia estatal,
diferente do povo de outros países que depende da sua economia individual.
Não existe arte Feia,
não existe arte bonita.
O conceito de beleza está ligado ao conceito de verdade política.
Então a verdade revolucionária é bonita.
Uma verdadeira colocação teórica de um problema
resulta num estilo bonito.
Então a crise da arte hoje, que dizem...
que o teatro está em crise, que o cinema está em crise,
que a literatura está em crise...
o que aconteceu é o seguinte...
Um personagem,
Glauber Rocha era um personagem.
E o Brasil tem não sei quantos milhões a mais que nós
e o Glauber no Brasil era um diretor super importante.
No Brasil que tem não sei quantos milhões de habitantes...
e Glauber estaria aqui sentado,
ninguém iria reparar nele, era um sujeito normal,
e fazia seu cinema...
e isso me conquistou, sua honestidade,
a simplicidade de ser um homem comum.
Porque nós, cineastas cubanos somos assim,
aqui não tem essa coisa de star system que são as estrelas de cinema.
Aqui não, por sorte não se vive isso. Porque a Revolução eliminou isso
e foi mostrando que
tem que ser primeiro um ser humano e depois diretor de cinema,
mas tem que ser primeiro um ser humano!
Pode ser bom diretor de cinema, pode ser bom fotógrafo,
bom bombeiro, bom chofer, bom carpinteiro, bom médico...
Então, hoje eu acredito que o intelectual deve
se retirar dessa posição privilegiada
e se integrar no processo político. À medida que ele se integra
no processo político, que se transforma também num combatente,
num revolucionário, num prático político, aí ele está,
justamente se transformando, se coletivizando
e passa a ser um homem que trabalha dentro do processo revolucionário,
evidentemente estudando e dando sua contribuição
para o estudo, para o esclarecimento do próprio homem,
mas sem se colocar nessa posição privilegiada.
Por quê? Porque estamos no meio de um processo que não se concluiu,
um processo que cada vez mais nos deve aproximar
de uma sociedade ideal,
em que cada um possa exercer seu critério livremente, sem coações,
em que as pessoas sejam mais descontraídas
e vivam mais intensamente a vida
nos seus aspectos mais importantes.
Uma sociedade à qual aspiramos,
essa sociedade ainda não foi alcançada.
Existe um momento no filme que para mim é chave, é essencial.
Quando as reflexões de Sérgio
o levam a dizer
e a pensar
que em uma sociedade subdesenvolvida,
como esta em que ainda vivemos, entre outras coisas,
as pessoas necessitam que alguém pense por elas.
E isso para mim é um problema que tem que ser resolvido,
quer dizer, é necessário que cada cidadão pense por si mesmo.
Então, no dia em que isso acontecer,
o filme será um filme velho e eu estarei muito feliz
que o filme tenha realmente envelhecido
e fique apenas como um testemunho
de um momento de luta,
de um momento difícil.
NÂO CABEM SOB UMA LÁPIDE
NOSSOS PROBLEMAS
SÂO OS PROBLEMAS DO SUBDESENVOLVIMENT0
No momento em que o intelectual se revoluciona, se desmistifica e passa a
ser um mensageiro,
um intermediário mais profundo,
mais coerente das necessidades do povo,
a atividade da criação e do espírito
ganham um valor muito maior.
É claro o exemplo do nâo-intelectual,
do intelectual a serviço do povo, na história de Cuba
está claro na Figura de José Martí,
que é o melhor exemplo do que seria o intelectual latino-americano.
Mas Martí não pode ser considerado um intelectual no sentido burguês.
Martí é o poeta e político do povo.
Para nós, Glauber naquele momento representava uma janela para o mundo,
uma espécie de porta para o mundo.
Estávamos vivendo uma época de informação muito limitada,
havia começado há pouco tempo o bloqueio dos Estados Unidos
e a informação cultural que chegava era muito pouca.
Então Glauber representava essa entrada da América Latina
por uma grande porta, para Cuba e para nós cubanos.
Isso já faz uns 30 anos.
Faz quase 30 anos que nos encontramos com ele em Havana, não?!
Foi quando ele entrava em Cuba pela primeira vez
para mostrar seus filmes e viver aqui.
Nos víamos muito na casa de Nancy Gonzá***.
A casa de Nancy era uma espécie de
centro de reuniões e ali passavam diretores de teatro, cineastas,
escritores, poetas, todo mundo passava por lá.
Uma das pessoas que ia muito à casa de Nancy era Titon,
Tomás Gutiérrez Alea, que já partilhava uma grande amizade com Glauber.
Todo o temor que tive no início quando disseram
que iam me apresentar um cineasta muito famoso, Glauber Rocha...
tive um pouco de timidez pelo encontro,
falavam tantas coisas daquele monstro do cinema,
daquela pessoa tão premiada, tão importante,
eu tive um pouco de temor, não?!
Mas quando nos encontramos com Glauber,
ele me pareceu como um menino grande,
alguém que devíamos proteger e querer muito...
uma pessoa muito necessitada de afeto.
Acima de todas as coisas do mundo, ele agradecia o afeto
e também me dizia que a casa era muito agradável, muito grande,
que gostava do espaço,
"Eu gosto de caminhar assim,
passear pelo corredor até o Fundo, olhar...
...aqui tem um espaço que eu gosto."
Às vezes ele subia no terraço
e olhando para Havana começava a narrar estórias,
pensando que talvez um dia pudesse fazer um filme,
que talvez pudesse escrever uma estória com aquilo.
É o seguinte, nunca na história do Brasil os intelectuais
tiveram um papel político tão importante...
Como agora?
Não, como naquele momento.
Inclusive porque o movimento estudantil
nasceu sobretudo da inspiração nos movimentos intelectuais.
A resistência começou primeiro nos jornais,
logo em seguida no cinema e no teatro,
com um trabalho de cinema revolucionário, de teatro revolucionário
e de uma imprensa de esquerda que cresceu violentamente.
Esses grupos de trabalho intelectual se encontraram
com a *** estudantil e também com setores da *** operária
e chegaram a tal ponto de agitação no país que Costa e Silva,
pressionado pelos setores Fascistas...
Foi obrigado a editar o Ato Institucional Número 5.
O 5 Fechava o congresso,
dava poderes ditatoriais ao presidente da república,
separava o crime político do crime civil,
retirava o habeas corpus, concretizava
a ditadura e revogava completamente a constituição republicana.
0s jornais argentinos disseram hoje...
...e até alguns diziam, nas matérias de capa
que os grandes teriam... os "grandes" seriam o Brasil...
Vivendo nos agrestes, utilizavam a tática da guerrilha
enfrentando as organizações agrárias mais famosas,
como Cabeleira, Antonio Silvino...
0 capitão Lamarca sai da Vanguarda Popular Revolucionária,
entra no Movimento Revolucionário 8 de 0utubro,
tenta instalar um foco camponês...
A História avançou, e tem que haver um reencontro.
E com uma posição crítica.
Porque quem fez a autocrítica do militarismo,
conquistou o direito de manter as suas críticas.
- E manter as suas posições. - E manter suas posições.
Porque a repressão foi brutal, e na verdade se constituíram
as primeiras, as primeiras figuras,
os primeiros movimentos de uma revolução.
Quer dizer, na verdade, a repressão agiu pra destruir
a repressão, atingindo as bases e as vanguardas.
Porque eu nasci... Já faz mais de 60 anos que eu nasci...
SE QUISEREM, VENHAM AGORA e desde que eu nasci
PELO CAMINHO DA ILUSÃO que se ouve falar em reforma agrária,
seca e fome no Nordeste.
Eles tiveram, no mínimo, 60 anos pra cuidar disso
e até agora não foi cuidado.
Então, é isso que nós queremos. Nos chamam de comunistas,
mas não somos comunistas, somos operários,
somos trabalhadores brasileiros.
Glauber imediatamente se impôs a tarefa de preparar um filme
pelo qual tinha uma paixão imensa,
que era a História do Brasil.
Sua visão do Brasil e de sua história,
mas querendo chegar à época contemporânea e a eventuais soluções.
Começamos a trabalhar, supostamente íamos fazer uma história do Brasil.
Quando cheguei na sala de edição
percebi que tinha uma quantidade enorme de materiais de arquivo,
fotoanimaçôes,
trucagens, todo tipo de película,
porque realmente materiais sobre o Brasil ele tinha poucos...
Então tive que reconstruir muita coisa através de fotos e jornais,
ou seja, documentos.
Eu estava rodeada de caixotes com película,
e eu disse: "Bom, vamos começar. Como vamos Fazer?"
E Glauber pega uma caixinha de fósforos
e começa a cantar atrás de mim com a caixinha
e começa a sambar atrás de mim.
Ele cantando... imagino que eram coisas
que tinham a ver com o que ele estava fazendo, coisas que o inspiravam...
mas aquilo me fazia rir muito!
E eu esperava que ele me dissesse o que íamos fazer.
Em um determinado momento montei uma coisa,
uma fotoanimaçâo que tinha mais ou menos uma coerência
e eu sabia como fazer,
mas quando tínhamos que passar para outra coisa,
eu disse: "Bom, e o que vem agora?"
E ele disse: "O que você quiser". E eu:
"Como assim o que eu quiser
se estamos Fazendo a História do Brasil e eu não a conheço...
...você tem que me ajudar!".
E ele: "A História do Brasil não existe.
Vamos escrevê-la agora, entre você e eu."
O que acontece é que o país está dividido em dois.
Uma parte, que sem encontrar os obstáculos dos conflitos sociais
promove um desenvolvimento econômico,
desenvolvimento superficial mas crescente...
...e o nazismo, a repressão nazista.
Aquela era uma época muito dura para os brasileiros,
era a ditadura e estavam todos fugindo,
acredito que ele tivesse outros compromissos,
compromissos políticos talvez, porque por essa época
me lembro de pessoas brasileiras que passaram por aqui,
pelo ICAIC, e que depois nunca mais vi.
Acredito que alguns até morreram tentando entrar no Brasil.
Glauber, uma última pergunta.
Qual sua opinião sobre a luta revolucionária no Brasil?
Bom, eu deixei o Brasil e hoje, definitivamente,
estou com todo meu tempo e minha vida
inseridos na luta revolucionária do Brasil.
Nessa maquininha ele ficava batendo durante horas...
Era um momento muito difícil para Cuba,
uma grande escassez, não tinha papel em loja alguma,
nenhuma fita para máquina-de-escrever, se acabasse,
tínhamos que pedir no ICAIC, ou seja, o bloqueio é verdade,
o império é verdade, isso existe, está aí, e nenhum ser humano,
nenhum cubano, nem os que estão lá, nem os que estão aqui podem negar
que efetivamente esse é um país bloqueado e cheio de problemas
para seguir em frente com qualquer projeto, com qualquer idéia.
E Glauber vivia entre nós, como nós,
comia o que comíamos, andávamos a pé ou em um...
Glauber trazia sempre uma estória pra contar,
me lembro que sempre trazia um conto
e quase sempre pouco relacionado com o cinema, eram coisas do Brasil,
da cultura brasileira. Me lembro de que um dia ele disse:
"Trouxe pra vocês a história do Brasil,
de como se Formou o Brasil.
Me dê aqui lápis e papel!" Então estávamos ali Nancy e eu,
não me lembro que outros amigos também estavam,
trouxemos um papel e uma folha branca
e ele começou a desenhar um mapa do Brasil e a contar
como se formou o Brasil,
como se criou o Brasil, com os imigrantes,
com todo o conglomerado
de grupos étnicos e depois ele recuou ainda mais na história do Brasil...
Tem o clero, tem o Partido Comunista,
tem as associações operárias, entendeu?
Tem a umbanda, tem a quimbanda,
tem as organizações, o resto das organizações camponesas...
entendeu? Tem os setores progressistas do Exército,
tem uma classe média radical, liberal,
que é positivista ainda, ou romântica, ou lírica.
São várias tendências que existem.
Tem as várias organizações políticas,
que se reivindicam do marxismo-leninismo.
Glauber via como o início de uma grande loucura,
que a história do Brasil era a história de uma loucura,
e que tinha muito a ver com a loucura dos países latino-americanos.
As revoluções latino-americanas,
como a uruguaia, a chilena ou a peruana,
todos os processos latino- americanos que Foram à esquerda...
...a unidade revolucionária do continente
é muito importante hoje para a luta,
porque a libertação do Brasil
será Fundamental para o destino da América Latina.
A América Latina ainda não resolveu boa parte
dos problemas institucionais, da formação política.
Eu acredito francamente na importância, na vigência
de um pensamento um pouco enlouquecido, muito apaixonado,
um pensamento e um sentimento que acreditava
firmemente no Brasil em primeiro lugar,
acreditava firmemente na América Latina e no Terceiro Mundo
e se comprometeu com atos, não apenas com palavras.
A luta de liberação,
os movimentos guerrilheiros que existiam na América Latina...
...nos sentíamos como o braço audiovisual desse movimento.
...com o compromisso de um cinema artística e politicamente liberador,
renovador de estruturas, de liberação nacional.
Começávamos, uns mais rápidos que outros,
a entender que tínhamos que fazer um reajuste de ilusões.
A década de 60,
que começa sua via crucis justamente no final de 68,
significou - para dizê-lo já com toda clareza - o triunfo da direita
das posições fascistas e neofascistas do continente no planeta.
Desaparece todo o espírito de experimentação.
0s mecenas perdem espaço
falando daqueles que tinham dinheiro
e consagravam a obra de inquietação cultural
com as ditaduras na América Latina, desaparecem...
Miguel Littín para o exílio, Glauber Rocha para o exílio,
todo mundo, as pessoas mais lúcidas desterradas...
O fato é que nós considerávamos
que era possível
que um filme pudesse mudar o mundo.
Quer dizer, sabíamos que era mentira, não vamos nos enganar,
nenhum filme muda o mundo nem muda nada,
mas devemos fazê-lo como se isso fosse possível.
A passagem da barbárie capitalista a uma civilização socialista
depende dessa prática de ***,
e essa Feijoada ideológica é que vai produzir o banquete do Quarup.
O povo sublima a sua rebelião nas manifestações místicas.
Você que é a favor da democracia, o que é que você me diz dela?
Eu acho uma coisa bacana...
Eu acho que os brasileiros têm que redescobrir
e refazer renascer um projeto nacional,
têm que redescobrir a sua força, a sua particularidade,
redescobrir o mito da sua cultura, o seu projeto social, político,
antropológico geral.
Como diz o poeta Carlos Drummond de Andrade,
que é um oráculo... que escreveu "Claro Enigma"...
"Precisamos esquecer o Brasil e descobrir o Brasil".
Eu preciso contar uma história pro senhor.
O senhor sabe quem descobriu o Brasil?
O senhor sabe quem descobriu o Brasil?
Você sabe quem descobriu o Brasil?
Você sabe quem descobriu o Brasil?
Quem descobriu o Brasil?
Eu quero trabalho!
Quero trabalho!
Eu estava refletindo, antes de vocês chegarem, sobre as visões.
Como a cabeça que dá voltas involuntariamente, em muitas coisas...
0 que são as visões, as pessoas que têm visões?
Pensamos nisso sempre como uma coisa distante. Por quê?
Porque se tem uma idéia bastante grosseira do que pode ser uma visão.
A visão é entendida como algo que aparece,
fantasmas que se corporizam...
Não me parece que seja bem assim.
As visões são simplesmente como sobre impressôes cinematográficas
que você tem quando pensa em alguma coisa,
enquanto está, contemporaneamente, observando a realidade.
Então se realmente as visões são isso,
acho que muito mais do que supomos e acreditamos, todos nós temos visões!
São como projeções do pensamento
que não conseguem atingir
essa condição de ectoplasmas que se corporizam;
são como pensamentos, como sonhos que se sobre imprimem...
E se isso for verdade, acho que tive
duas vezes uma visão que tem a ver com Glauber.
A primeira vez foi pouco tempo depois da sua morte.
Eu estava em Cuba, num hotel que se abria para o Caribe,
num desses entardeceres impressionantes,
que são fabulosos porque são céus
que não se pode expressar por nenhum dos cânones da pintura clássica.
Meus olhos estalavam diante daquele céu... mas em um desses céus,
num crepúsculo, de repente vi, nos vi,
e passávamos assim numa espécie de manifestação,
estávamos passando
e passava o novo cinema latino- americano com uns cartazes incríveis!
Então passava Julio Garcia Espinosa com um cartaz que dizia:
"Viva Sanjinés!",
depois vinha Sanjinés, trazia um cartaz que dizia:
"Viva Paul Leduc!",
Paul Leduc levava um cartaz que dizia: "Viva Solanas!",
Solanas levava um cartaz que dizia: "Viva Gutiérrez Alea!". Cada um
levava um cartaz que dizia viva o outro,
e por cima passava Glauber,
era um arcanjo e estava todo enrodilhado em películas
e caíam latas da sua túnica!
E ele tinha um megafone
e no megafone gritava:
"Sonhem com os olhos abertos...
sonhem com os olhos abertos..."
E isso duas vezes escutei ele dizer,
e estou esperando o momento em que passará de novo,
porque estou certo de que anda levitando por aí...
Sempre estava deixando mensagens...
Eu conheci em Glauber a autenticidade de uma pessoa,
a verdade das pessoas.
Ser o que se diz que se é,
ainda que se possa estar equivocado...
mas sempre coerente consigo mesmo; ainda que...
se possa estar equivocado e dizer uma coisa em determinado momento
e outra coisa em outro... e os outros podem não compreender,
mas na sua contradição ele era honesto consigo mesmo.
Mas o que eu mais gostava em Glauber era esse primitivismo,
essa coisa não estudada, espontânea,
essa coisa de manifestar o que sentia e como sentia,
essa coisa de não ter amarras,
isso eu nunca encontrei em mais ninguém.
E indiscutivelmente isso,
para uma pessoa como eu,
que tinha visto um único modo de vida,
que tinha nascido e vivido numa sociedade que,
justamente para sobreviver, teve que criar alguns padrões,
de repente encontrar alguém que não tinha padrões,
que era
espontâneo e rico na sua manifestação, indiscutivelmente,
isso me fez crescer muito.
Me lembro de uma vez, em um primeiro de maio,
fui convidada para ir à Praça da Revolução,
e eu desfilei...
Quando nos encontramos no hotel, ele estava tão emocionado...
Marcos me contou que Glauber tinha chorado na arquibancada
e lembro que quando nos encontramos ele me abraçou e disse:
"Teca, é a primeira vez que eu vejo um povo latino-americano Forte e Feliz."
E lembrem-se de que ele colocava muito misticismo em tudo que via,
era capaz de ser algo muito real, mas ele colocava sempre esse toque
que tinha a ver com as suas próprias origens.
Ele precisava muito de estar em contato com o que acontecia no Brasil
em matéria de decisões políticas.
Ele, como um intelectual, sentia
que tinha um papel importante naquele jogo, queria participar.
Fui testemunha de muitas noites em que eu acordava
e via Glauber caminhando pelo apartamento,
mas com uma angústia... e ele me dizia que estava pensando no Brasil.
Era uma pessoa extremamente exigente, extremamente pontual.
Lembro de que no quarto não se podia abrir as portas,
não se podia caminhar porque tudo estava no chão,
era tanta coisa e Glauber sabia exatamente onde estava cada coisa.
Ele tinha uma organização mental muito forte.
Eu nunca conheci uma pessoa tão ligada a sua raiz, a sua terra,
a Vitória da Conquista, como vi em Glauber,
e isso é o que faz com que ele seja para mim uma pessoa tão autêntica.
Porque sendo um homem do mundo, um homem famoso, um homem culto,
ele era também um homem primitivo, no melhor sentido da palavra,
e nunca perdeu aquela formação brasileira da terra,
do sertão, ainda que vivesse em qualquer lugar.
Seus vínculos políticos iam mais além de qualquer organização,
iam mais além de qualquer declaração,
era uma coisa essencial, porque era a própria vida para ele.
Ele sempre me dizia que Cuba estava em seu caminho,
fosse ou voltasse...
dizia que Cuba sempre estava em seu caminho...
Se sentia muito bem aqui. Caminhávamos pelas ruas
e ele me dizia:
"Olha Teca, olha! Sente o cheiro do Feijão preto...
igualzinho a Bahia! Como me sinto bem aqui!
É o único lugar onde posso caminhar e me sinto igual, e com as pessoas..."
"Tereza bonita Menina do laço de Fita
O amor do guru O jaburu cangaceiro do coração dela
Tereza, a princesa cubaiana morena No terreiro do meu coração
Meu sangue na tua veia Minha alma na tua mas"
"Teca morena de olhos redondos Lua serena de seios redondos
Meu coração bate por ela Tenho paixão, ave amarela
Cuba, 14 de Fevereiro Bahia, 14 de março
Dois peixes, um aquário Glauguru e Tereza"
As marcas, na minha apreciação da vida,
em minhas contradições com o que me rodeia,
com o que é autêntico e com o que não é,
indiscutivelmente,
tudo tem um início para ser superior,
e foi a partir de eu ter conhecido Glauber...
porque Glauber me estremeceu...
Não há glória sem sangue!
O Cinema Novo existe na medida em que...
Eu acho que eu sou o Cinema Novo.
Eu estou vivo e fazendo filmes novos.
O que existe em torno de mim Foi uma pirataria intelectual,
porque a estética aqui no Brasil é a Fome, né?
O cinema que se Faz no Brasil é um cinema reacionário...
o meio cinematográfico do Cinema Novo,
que era de vanguarda nos anos 60
Ficou inteiramente convencional.
A crítica de cinema no Brasil já não pode mais
ser exercida democraticamente.
Então você não pode chegar e dizer que um Filme é ruim
abrir uma discussão.
Eu rompi com o cinema brasileiro, o cinema brasileiro rompeu comigo,
de Forma que Cabeças Cortadas é isso,
todas as cabeças cortadas... é o meu passado.
Eu estou aqui brincando com uma criança,
eu estou interessado no presente e no Futuro.
EM HAVANA
DESCENDO A LADEIRA
SEMPRE SE CHEGA AO MAR
Legenda Ripada por bluciano Edição Final - Saci