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LUZES DA RIBALTA
As luzes da ribalta,
que a velhice abandona
quando a juventude
entra em cena.
A história de uma bailarina
e de um palhaço...
Londres, num fim de tarde
do verão de 1914...
A Sra. Alsop saiu!
Fechou o gás?
- Que gás?
Qual é o quarto dela?
- Este.
Vamos levá-la
para outro sítio.
A proprietária?
- Saiu.
Onde fica o seu quarto?
- No segundo andar.
Pegue nos braços,
eu pego nos pés.
Pegue na minha mala.
Desculpe, mas pegue nela você.
Abra as janelas,
ela precisa de ar fresco.
Também eu.
Chamo uma ambulância?
- Não há tempo.
Vou dar-lhe um vomitivo.
Dê-me um copo de água.
Aqui tem.
Preciso de água quente
e umas toalhas.
Toalhas... Vem já.
Ela tinha este tubo na mão?
Sim. Do seu dispensário.
Entendo. Desde quando a conhece?
Mais ou menos 5 minutos.
Vai precisar de auxílio
durante uns dias.
E a ambulância?
- É inútil.
Ela está fora de perigo.
Lá no hospital, fariam um inquérito,
e ela iria para a cadeia
por tentativa de suicídio.
Dentro de 2 dias, ela ficará óptima.
Daqui até lá, deixe-a descansar.
Se tiver sede,
dê-lhe sumo de laranja.
Amanhã, se tiver fome, dê-lhe canja.
Mas nada de conservas.
Se vier ao dispensário
daqui a 10 minutos,
terei uma receita para si.
Para mim?
- Não, para ela, claro.
Dói-lhe a cabeça?
Onde estou?
No meu quarto, no segundo andar.
O que aconteceu?
Ao chegar a casa,
cheirou-me a gás no seu quarto.
Arrombei a porta
e trouxe-a até aqui.
Havia de me ter
deixado morrer.
Porquê tanta pressa?
A menina sofre?
É a única coisa que conta.
O resto é fantasia.
Tantos anos para formar
a consciência humana,
e você quer apagar tudo?
Apagar o milagre da existência?
É a coisa mais importante
em todo universo!
Que fazem as estrelas?
Nada, a não ser
rodar nos seus eixos.
E o sol?
Sopre chamas
a 500 000 quilómetros de altitude.
E depois?
Só gasta os seus próprios
recursos naturais.
Será que o sol pensa?
Tem uma consciência?
Ele não, mas você sim!
Desculpe.
Aqui está... E aí vamos nós...
Louvado seja Deus!
Olhem só para a minha porta!
Isto é vandalismo! Nada mais!
E com certeza levou tudo.
Vai acabar na cadeia.
Sabia que não era boa coisa.
Ela era demasiado tranquila...
Água parada só pode cheirar mal!
Estranho... Não levou nada.
E não leva nada mesmo
se não pagar o último mês de renda!
Arrombar a porta...
O que se vai passando
na minhas costas!
Desta vez foi-se
e não volta para cá.
COMPRAMOS
E VENDEMOS DE TUDO
Sr. Calvero?
É o senhor, Sr. Calvero?
Aqui tem a sua roupa.
Ia deixá-la na sua cama.
Um momento!
Espere, espere...
Deixou cair isto.
E aqui tem as suas laranjas.
Obrigado.
É assim que ela passa as noites!
Tire as mãos de cima de mim!
Que faz ela no seu quarto?
Não é o que você pensa.
Eu gostava de saber
quem arrombou a porta.
Fui eu.
- Você?
Tem uma fuga.
Tenho o quê?
Uma fuga de gás no quarto.
Tudo isso é muito estranho.
Quem é ela?
- Já o deve saber.
Chegou há 6 semanas.
Disse que trabalhava.
É o que dizem todas.
Que tem a ver com isso?
Ouça, ela tentou matar-se.
Bebeu veneno e abriu o gás.
Cheguei mesmo a tempo.
Foi? Então vou chamar a polícia.
Se fizer isso,
vai aparecer nos jornais.
Ela não pode ficar aí.
Eu também não a quero aqui,
leve-a para o quarto dela.
Não. Para mais, já está alugado.
Não a pode mandar para a rua.
Ela não volta para o quarto dela.
Então fica aqui.
Vai escandalizar os inquilinos!
Podemos dizer
que somos homem e mulher.
Acha mesmo? É melhor não.
Mande-a embora, e rápido.
Homem e mulher...
Cuidado com essa criatura.
Ela não é nada boa
e anda doente desde que chegou.
Será talvez caspa?
Estão prontos?
Eu sou um domador
No circo, sou o maior
Treino qualquer animal,
leão, tigre, até mesmo um pardal
Ganhei e perdi muito
em toda a minha carreira
Uns dizem que foi por causa
das mulheres, outros da cerveja
Quando fiquei falido,
foram-se os animais
Mas logo depois
tive uma ideia que foi demais
Passou-me assim pela cabeça
enquanto me coçava
Estou farto de treinar elefantes,
vou tentar com pulgas
Para quê caçar animais
no perigo da selva?
Quando posso achar tanto talento
aqui mesmo em casa
Achei uma num sitio vergonhoso
E ensinei-lhe tudo o que sabia
Ela foi andando
e acabou por arranjar uma Maria
Eu dou-lhes mesa e cama de graça
E todos os dias comem-me a cabeça
Não comem nem caviar nem bolo
Mas por vezes um bom bocado
Da minha anatomia,
da minha anatomia
Que estranha sensação
Quando decidem mergulhar
na velha plantação
Hoje ando muito contente
Sabem fazer tudo como gente
Quem me sustenta são elas,
quem me sustenta são elas
Acordem!
E vejam este espectáculo
Acordem!
E mostrem-me o dinheiro
Admirem a Phyllis e o Henry,
as pulgas educadas
Saltam e mergulham
do trapézio voador
Se sentir mordidelas,
não coce nem grite
Nunca se sabe,
poderia vir a matar um génio emérito
PHYLLIS E HENRY
PULGAS DOMÉSTICAS
Phyllis, Henry! Parem com isso!
Que estão a fazer?
Deviam ter vergonha de andar à luta.
Phyllis, tu ficas na caixa.
Podias ter ido
antes de eu abrir a caixa.
Estás a ouvir?
Queres que eu te esmague?
Pára com isso!
Anda cá!
Phyllis, estás a ouvir?
Estás de dieta!
Phyllis, estás doida?
Pára, estás a ouvir? Pára!
Phyllis, estás a ouvir?
Estás a sair da linha!
Phyllis, o que estás a fazer?
Sua sem vergonha...
Phyllis, o Henry quer-te bem.
Vem, Phyllis...
Phyllis, pára!
Phyllis, sai daí! Rápido!
Que andas a fazer? Parva!
Phyllis, pára!
Queres que eu me coce?
Esta não é a Phyllis.
Onde está a Phyllis?
Aqui está ela!
Está acordada?
O seu marido pediu-me para passar.
Quem?
- O seu marido.
Para lhe aquecer um pouco de canja.
O meu marido?
Deixe-me ajudá-la.
Sabe, não comeu nada hoje.
A canja vai fazer-lhe bem.
Obrigada. Não.
A sua esposa não come.
Que sorte para
um pobre marido como eu!
Como se sente?
Muito melhor.
Bem.
Não se preocupe
com essa história de mulher.
Foi ideia da Sra. Alsop,
por causa da doméstica.
Quando estiver melhor,
ficará livre e divorciada.
Penso estar óptima.
Ainda não. É melhor ficar aqui
mais um ou dois dias.
O senhor é muito simpático.
Acho que posso regressar
ao meu quarto.
Receio que seja impossível.
Porquê?
A Sra. Alsop alugou-o.
A partir de hoje.
Compreendo...
Mas pode ficar aqui à vontade.
Até saber o que fazer.
Que posso fazer? Nada...
Porque não me deixou morrer?
Não diga isso.
Está viva e tem que aproveitar.
Mas eu sou pobre, doente!
Ouça...
Não sei bem o que tem.
Mas está doente.
Se for o que pensa a Sra. Alsop,
tem que reagir.
A situação não é desesperante.
Se for...
Você entende...
Creio que não.
Digamos...
Uma jovem, sozinha no mundo,
fica doente...
Se for isso, pode ser curada.
Existe um novo remédio
que faz milagres. Já curou várias.
Se for isso, diga-me.
Talvez a possa ajudar.
Sou um velho pecador,
nada me choca.
Não é nada disso.
Tem certeza?
- Absoluta.
Mas esteve doente.
Sim. Passei 5 meses num hospital
com febre reumática.
Só isso? Porquê essa reacção?
Não posso mais trabalhar.
O que faz?
Era bailarina.
Bailarina!
No Empire Ballet.
Eu pensava que fosse...
Assim, é bailarina.
Mas nem fomos apresentados.
Como se chama?
Thereza Ambrose.
Toda a gente me chama Terry.
Lindíssimo.
Muito prazer. Eu também sou artista.
Calvero. Nunca ouviu o meu nome?
O grande cómico?
Era eu. Mas esqueçamos isto.
Diga-me, o que a levou
a esta situação?
A doença, sobretudo.
Então, vamos curá-la.
Existem sítios melhores
para uma convalescência,
mas pode ficar aqui
enquanto continuar a usar
o nome de Sra. Calvero.
Não o vou incomodar?
Nada disso. Já tive 5 mulheres.
Mais uma não faz diferença.
Para mais, cheguei a uma idade
à qual uma amizade platónica
situa-se num plano moral elevado.
A sua mãe era costureira
e o seu pai Lord...
Quarto filho de um Lord.
É diferente.
Como casou com a sua mãe?
Era doméstica da casa.
Parece um romance...
Tinha dinheiro?
- Não. Foi deserdado.
E só lhe resta a sua irmã.
Sim. Vive na América do Sul.
Agiu só por causa da sua doença?
Isso e...
- O quê?
A futilidade do mundo.
Vejo-a nas flores...
Ouço-a na música...
A vida não tem sentido nem razão.
Razão para quê?
A vida é um desejo, não uma razão.
O desejo é a base da vida!
Faz com que uma rosa seja uma rosa
e que cresça assim.
Que uma pedra esteja inerte
e fique assim.
Porque sorri?
A sua imitação
da rosa e da pedra...
Posso imitar qualquer coisa.
Já viu uma árvore japonesa,
que cresce assim?
Os amores-perfeitos crescem assim.
Ao murchar, ficam assim.
Dar sentido às coisas são
outras palavras para o mesmo final.
Assim, a rosa é uma rosa é uma rosa.
Nada mal, hei de escrevê-lo.
Ainda há pouco,
a sua vida não tinha sentido.
E agora, você tem
um marido temporário e um lar.
Aqui tem a sua água.
E em caso de emergência...
Primeira porta à esquerda.
Como em cada andar.
Boa noite.
Chegou a primavera
Os pássaros cantam
Os furões bisbilhotam
Dão ao rabo por amor
Chegou a primavera
Rodopiam as baleias
Enroscam-se as minhocas
Dão ao rabo por amor
Qual é essa coisa
que hoje eu canto
e que encanta todo o mundo?
Qual é essa coisa
que vem com a primavera
e nos dá comichão?
É o amor! É o amor!
O amor, o amor, o amor...
Desculpe, não tem aí
um mata-moscas?
Peço desculpa?
Se veio para pedir,
chamo a polícia.
Volto a dizer: Peço desculpa.
Não importa o que diz
ou o que come.
Não comi nada.
Nada? Tome e compre
uma sanduíche.
Exijo desculpas.
Nem a conheço! Quem é você?
Está no registro civil?
O meu apelido é Smith.
- Nunca ouvi esse nome.
Porque é ignorante.
Devia ter trazido um casaco.
Interrompeu-me
no meio do meu soneto.
No meio de quê?
Não no meio de quê, do meu soneto.
A minha ode a uma minhoca.
"Minhoca, porque te afastas de mim?
"É primavera, minhoca
"Levanta a cara,
de qualquer lado que esteja
"E ri-te para o sol
"Desenrola o teu corpo nu
e com o rabo...
"Levanta a terra com êxtase
"É primavera, é primavera!"
Ridículo.
Uma minhoca a rir-se para o sol.
Porque não?
- Uma minhoca não ri.
Testou o sentido de humor delas?
Claro que não.
Mas não tem qualquer sentido.
A poesia tem que ter sentido?
Nunca ouviu falar
em licença poética?
Espere aí. Eu não lhe dei licença.
Não dê.
O que está a acontecer
ultrapassa-nos.
Por enquanto, estou a aproveitar
do sentido da vida.
Tanta energia gasta!
Qual é essa coisa
que nos faz continuar a viver?
Está certo.
Qual é a razão de isto tudo?
Onde vamos nós?
Vai para sul,
com a mão no meu bolso.
Malandra...
Como chegou até aí?
- Puro magnetismo.
Porque é tão antagónico comigo?
Temos que ser sérios?
É difícil entendê-lo.
Leia as minhas memórias.
Você é muito engraçado.
- Como?
Ao falar assim das minhocas.
Porque não?
Até as moscas são românticas.
As moscas?
- Sim.
Nunca as viu chegar até às mesas,
voar atrás umas das outras
no açúcar e na manteiga?
Alguma vez leu "Vida da Abelha"?
- Não.
A vida da abelha
vai de bulha na bolha.
Ai é?
Santinha!
- Isso sim.
Perdão?
- Nesse traje, parece uma santinha.
Tanto pó, querida,
tanto pó. Vir-se.
Mas onde a guardam?
Na prateleira de cima?
Pó talco? Não. Óleo?
Já sei: açúcar!
Já pensou nisso?
O motivo da vida é o amor.
Que lindo!
Não é nada.
- Claro que é.
Ao contrário, é baixo, horrível...
mas maravilhoso!
Gosto muito de si.
- Sim?
É sensível, sabe sentir as coisas.
Não me incite.
É verdade. Poucas pessoas
têm a capacidade de sentir.
Ou a oportunidade.
Permita-me.
Use-a como quiser.
Entre.
Bom dia. Como se sente?
Muito melhor, obrigada.
Que lindo dia!
O sol brilha e o aluguer está pago.
Vai haver um sismo.
Sinto-o, sinto-o.
Que quer almoçar?
Temos ovos, presunto,
queijo, cebolas de primavera...
Como no meu sonho.
Actuávamos juntos.
O tema era a primavera.
Interessante.
Sonho com ideias fantásticas
e depois esqueço-as.
Ando a sonhar muito com teatro,
com antigos números meus.
Olhe só.
Arengues.
Não são lindos?
O que foi?
As minhas pernas!
Tentei levantar-me e cai!
Nem me seguro de pé!
Ainda é cedo.
Não é isso.
Não tenho qualquer sensação nelas.
Estão paralisadas! Eu sei!
Após o pequeno almoço,
iremos ver o médico.
É melhor ir para o hospital.
Vamos primeiro ouvir
o que diz o médico.
Não posso ficar aqui a incomodá-lo.
Não me queixei.
Deveria queixar-se.
Sou tão chata...
Mas a culpa não é minha,
você salvou-me a vida.
Todos nós erramos...
Lamento.
Isso, pode...
Uma jovem com ideias suicidas...
Quando tiver a minha idade,
terá amor à vida.
Porquê?
Quer-se viver,
nem que seja só por hábito.
Um hábito sem esperança.
Se não tem esperança,
viva para o presente.
Ainda tem... Ainda tem...
Ainda tem momentos
maravilhosos.
Quando não há saúde...
Há seis meses,
deram-me por morto, mas lutei.
Tem que fazer o mesmo.
Cansei-me de lutar.
Porque luta contra si própria.
Não tem qualquer hipótese!
Mas a luta pela felicidade é linda.
A felicidade...
Tal coisa existe.
- Onde?
Quando era criança, passava o tempo
a pedir brinquedos ao meu pai,
e ele dizia-me: "Aqui tens
o maior brinquedo do mundo.
"Aqui está o segredo da felicidade."
Ao ouvi-lo falar,
ninguém diria que é cómico.
Também reparei.
Por isso não arranjo emprego.
Porquê?
Porque eles não têm imaginação.
Ou então eu é que estou
demasiado velho.
Ninguém o diria
se o ouvissem falar assim.
Ou então, bebia demasiado.
Há sempre uma razão para isso.
A infelicidade, talvez.
Não, disso já tenho o hábito.
Era algo mais complicado.
Quando envelhecemos,
queremos é viver com intensidade,
ganha-se um sentimento
de dignidade triste.
É fatal para um cómico.
Afectou o meu trabalho.
Perdi o contacto com o público.
Foi isso que me levou a beber.
Precisava de estar bêbedo
para ter piada.
E mais eu bebia...
Era um círculo vicioso.
O que aconteceu?
Tive um ataque. Quase morri.
Continua a beber?
Às vezes,
quando me ponho a pensar.
A pensar em coisas más, como você.
Mas pronto, que quer almoçar?
É triste ser cómico.
Muito triste
quando o público não ri.
Mas que alegria
quando se olha e se ouvem
as gargalhadas,
essas ondas de risos
chegar até si.
Falemos de coisas mais alegres.
Aliás, quero esquecer o público.
Mentira. Ama-o demasiado.
Talvez o ame, mas não o admiro.
Eu creio que sim.
Cada indivíduo, sim.
Há grandeza em cada um.
Mas a multidão
é um monstro sem cabeça
que nunca sabe para onde virar,
que pode ser levada
por qualquer um.
E o seu pequeno almoço?
Quer uns ovos moles?
Entre.
Um telegrama.
- Obrigado.
Está-se a sentir mal?
Estava à espera disto.
Uma boa notícia?
Redfern, o meu agente,
quer-me ver.
Fantástico!
Tem razão.
Chegou o momento decisivo.
Eles quiseram despedaçar-me,
matar o meu espírito,
e agora reclamam-me.
Hoje vão pagar o desprezo
e sua indiferença.
Não. Serei magnânimo.
Isso vai pô-los no lugar.
Tenho que lá estar às 3h.
Mas antes passarei ver o médico.
Esqueci-me do seu almoço!
Que tal uns bons arengues?
Nada para si, para si ou para si.
Nada para si.
Quem está?
- A menina Parker.
Ninguém mais?
O Calvero. Está cá desde as 3h.
Tinha-me esquecido.
Mande-o entrar.
Boa tarde, Calvero. Sente-se.
Desculpe por ontem.
Não me consegui livrar
do encontro que tinha.
Tenho uma boa notícia.
8 dias no Middlesex Music Hall.
Quais são as condições?
Não sei, mas não se preocupe.
Claro, não importa.
Já que o dinheiro não conta,
que espaço terei no cartaz?
Não se preocupe.
Não serei o cabeça de cartaz
no Middlesex?
Ainda não há contrato.
Acha que vão poder
usar o meu nome
para apresentarem lá
uns pobres medíocres? Não senhor.
Calvero é um nome valioso.
Está errado.
O nome já não vale nada.
Então porque me querem?
Não querem. É um favor.
Muito simpático.
Espero que aprecie o gesto.
Ouça, vou ser sincero consigo.
Falei no seu nome durante 6 meses,
é veneno para eles.
Não o querem aproximar.
Como se pudessem!
Lamento, mas precisa
que lhe façam realizar a situação.
O senhor fê-lo com êxito.
Estou a tentar ajudá-lo.
Coopere comigo.
Farei o que o senhor quiser.
Isso mesmo!
Quando assinarem o contrato,
mando-o chamar.
Anime-se.
Se o meu nome é veneno,
actuarei sob outro nome.
Boa ideia!
Sr. doutor, e a nossa paciente?
Está fora de perigo,
e as pernas dela estão óptimas.
Falou-lhe da febre reumática?
Sim, não é nada disso.
Também teria afectado o coração.
Creio que seja psico-anestesia.
O que é isso?
Um tipo de histeria
com aspecto de paralisia
sem paralisia.
Qual é a causa?
No caso dela,
acho que é auto-sugestão.
Falhou o suicídio
e decidiu tornar-se paralítica.
Posso ajudá-la?
Ela precisa da sua própria ajuda.
É um caso de psicologia.
O Doutor Freud...
Farei o possível.
Boa tarde, Sr. doutor.
Fale-me da sua irmã Louise.
Não há mais nada a dizer.
Como não encontrava emprego,
acabou na rua.
Que idade tinha quando o descobriu?
- Perto de 8 anos.
Conte-me lá.
Foi depois da morte da nossa mãe.
Eu adorava a Louise.
Ela era tudo para mim,
ajudava-me, pagava-me as aulas...
E um dia, descobri o que fazia.
Ia para casa
com umas amigas minhas, e vi-a.
As outras também a viram.
Parada na rua...
Que fez?
Fugi a correr e chorei.
Fugi e chorei.
O que aconteceu?
Tentei esquecer.
Fui para um internato. Aos 16 anos,
entrei no Empire Ballet.
E a Louise foi
para a América do Sul.
Nessa altura, tinha algum problema
com as pernas?
Não.
Quando é que começou?
Dois anos depois.
Quando a Melise chegou.
Quem é a Melise?
Uma rapariga da escola de dança.
Estava consigo quando viu a Louise?
Freud diria que desde que voltou
a ver essa miúda,
nunca mais quis dançar.
Porquê?
Associa-a à infelicidade
da sua irmã que pagou as suas aulas
ao custo de uma vida vergonhosa.
E você tem vergonha de dançar.
Desprezaria-me se pensasse isso.
É esse o problema, todos
nos desprezamos a nós próprios.
Parada na rua...
Lutamos todos para viver.
Isso faz parte da cruzada humana
escrita na água.
Mudemos de assunto.
Já esteve apaixonada?
Não a sério.
Era um sentimento de piedade.
Uma história misteriosa. Conte-me.
É ridículo. Apenas conheci o rapaz.
Foi algo que imaginei
na minha cabeça.
Foi depois de sair do hospital.
Tinha arranjado emprego
na papelaria Sardou.
Era um dos clientes.
Um jovem Americano.
Comprava papel pautado,
muito ou pouco,
dependia do dinheiro que tinha.
Parecia só, abandonado e tímido.
Havia algo patético nele.
Um dia, alguém tentou
passar à frente dele.
Quando ignorei o fulano,
ele sorriu com gratidão.
Disseram-me que
ele se chamava Sr. Neville,
era compositor
e vivia num quarto pequeno.
Notava-se quando não comia
para comprar pauta.
No olhar dele.
Por vezes,
dava-lhe folhas a mais,
um dia, dei-lhe troco a mais.
Nunca soube se ele tinha reparado.
Depois do trabalho, passava
pelo prédio dele e ouvia o piano.
Ele treinava noite após noite.
E eu ficava ali a ouvir,
com emoção e melancolia.
E então?
Não o vi durante semanas.
Soube que tinha estado doente
e que lhe tinham tirado o piano.
Um dia, regressou à papelaria,
muito pálido.
Pediu 2 shillings
de papel pautado
e pôs a moeda em cima do balcão.
A sua última moeda.
Se o pudesse ajudar,
se tivesse tido coragem...
Queria dizer-lhe
que lhe emprestava o dinheiro,
mas eu era timida.
Mas tinha decidido ajudá-lo.
Depois de lhe ter dado
folhas a mais, antes dele sair,
chamei por ele.
"Esqueceu-se do troco. "
"Está errada",
disse ele.
"Não",
respondi eu.
"Deu-me meia coroa,
tem aqui o seu troco. "
Logo me apercebi
do ridiculo da situação.
Nisto, o azar fez
entrar o Sr. Sardou.
"Posso ajudar?",
perguntou ele.
"Não é preciso",
disse eu.
"O senhor deu-me meia coroa
e esquecia-se do troco."
O Sr. Sardou obrigou-o
a pegar no troco.
Depois dele sair,
abriu a caixa,
e desconfiou, ao não ver
nenhuma meia coroa.
Quando descobriu tudo,
despediu-me.
Que fez depois?
Tentei voltar para a dança,
e fiquei doente com a febre.
Voltou a ver o jovem compositor?
Sim, 5 meses depois,
ao sair do hospital.
Tinha entrado para o Albert Hall,
a sinfonia dele
tinha um grande sucesso.
É claro que está apaixonada.
Nem o conheço!
Logo o conhecerá.
O mundo é pequeno.
Já estou a ver isso...
Quando chegar ao sucesso,
ele aparecerá
e dirá que a viu em alguma festa.
Não o reconhecerei?
Não, deixou crescer a barba.
Como todos os músicos.
Ele lhe dirá que escreveu
um "ballet" para si.
Logo o reconhecerá,
e lhe dirá quem você é.
Como o conheceu, o serviu...
lhe deu folhas de papel a mais.
E nessa noite, irão jantar juntos
num terraço com vista para o Tamisa.
Será durante o verão.
Levará um vestido
de musselina cor-de-rosa.
Ele reparará logo na sua beleza.
Londres lhe parecerá
uma cidade de sonho.
E na elegância melancólica
do crepúsculo,
quando a luz das velas
lhe fizer dançar os olhos,
ele dirá que a ama.
E você lhe dirá que sempre o amou.
Onde vou eu?
A vida pode ser maravilhosa
se não tiver medo.
Só é preciso ter coragem,
imaginação...
e umas notas!
Que foi?
Nunca mais dançarei.
Estou paralítica!
É histeria! Auto-sugestão.
- Mentira.
Nesse caso, lute.
- Lutar, para quê?
Está a ver? Você admite!
"Lutar para quê"... Tudo!
Para viver! Não é o suficiente?
Para viver, sofrer e aproveitar.
"Lutar para quê"...
A vida é uma coisa linda, magnífica.
Até mesmo para uma medusa.
Lutar para quê?
Para a sua arte, a dança!
Não posso dançar sem pernas.
Conheço um homem sem braços
que consegue tocar violino
só com os dedos dos pés!
Mas você não luta, já abandonou!
Sempre a falar em doença e morte.
Mas...
existe algo inevitável
quanto à morte,
é a vida! A vida!
Pense no poder do universo,
que faz girar a Terra,
crescer as árvores.
Tem o mesmo poder em si.
Tenha a coragem
e a vontade de usá-lo.
Boa noite.
Vá, dança!
Lindo!
Como da última vez...
Tira essa cadeira.
Quais são as notícias?
O armamento da Europa.
Nada interessante?
Um artigo sobre os Zanzig
e telepatia.
Actuei com eles, uma vez.
Dizem que conseguem
comunicar pelo pensamento.
Ridículo.
Então como?
Não é telepatia. Já o vi
mandar um telegrama à mulher.
Quer mais café?
Só meia chávena.
Perdão, não queria...
Não, isto é um bom exercício.
Pareces uma criança de 2 anos
a caminhar.
Acho que há algum progresso.
Com certeza.
Estou farta de não fazer nada.
- Nada?
Até aprecio coser as suas meias.
Limpeza e cozinha, que queres mais?
Continua lutando.
Sabe, a Sra. Alsop
está de novo em cima de mim.
Veio ontem e perguntou-me
quando ia embora.
Que quer ela?
Não pagamos a renda?
Não! Falta este mês!
É por causa do adiamento
do contrato no Middlesex.
Não te preocupes, eu trato dela.
Depois de eu falar com ela,
teremos outro mês de crédito.
Não é melhor eu ir
para o hospital?
Não creio.
Teria uma preocupação a menos.
Após o Middlesex,
acabam-se os problemas.
Desde o dia em que te dei
aquela lição, mudei muito,
comecei a acreditar eu próprio.
Não bebi nada
desde que te encontrei.
Fantástico.
E não beberei na primeira noite.
Não precisa.
É suficientemente
divertido sem isso.
Sim...
Que é isso?
- Talvez seja a carta do Redfern.
Caro Calvero,
começa no Middlesex Music Hall
dia 5 de Setembro.
Cumprimentos.
Eis o homem que queria ver.
Que sorte a minha!
Não brinque.
Quando se vai aquela miúda?
Não tenha ciúmes.
- Ciúmes?
Que fez ao seu cabelo?
E os seus lindos caracóis?
Deixe estar isso!
Deve-me um mês de renda.
Eu neguei isso?
- É melhor não.
Sybil, quer mesmo magoar-me,
não é? Sua marota...
Porte-se bem!
Porque será que fico
tão tolo quando a vejo?
Idiota.
E aquela miúda?
Não, tenha paciência.
Mande-a embora ou...
Conte comigo.
Sei que é duro para nós dois.
"Nós dois"...
Está a brincar com quem?
Meu delicioso pudim de ameixa...
Portemo-nos bem.
A renda está paga.
Havia correio?
- Não. Era para a Sra. Alsop.
A vida de uma sardinha,
essa é vida para mim
Pular e dançar no fundo do mar,
isso é que eu quero, sim
Sem medo da rede do pescador,
de certeza serei eu o maior
A vida de uma sardinha,
essa é vida para mim
Engraçado...
Sonhei que era uma sardinha,
e que eram horas de almoçar.
Ia nadando à procura de uma isca,
quando passei perto de umas algas.
Em cima... Enfim, dentro...
encontrei a mais linda das lulas.
É o nome que lhes damos
no mundo dos peixes.
Ela abanava o rabo
com tanta fineza...
Parecia estar aborrecida...
Vamos, moço! Todos para a cama!
Talvez tenha razão. Boa noite.
Desculpe.
Estes sapatos apertam-me muito.
Boa noite.
Ainda estás de pé?
Não conseguia dormir.
Como vi a porta aberta, levantei-me.
Quer sopa quente?
Não, obrigado.
Tem um ar cansado.
Tenho?
Anda preocupado.
Se for por causa do Middlesex,
anime-se. É só um atraso.
Não há nenhum atraso.
Que quer dizer com isso?
Foi esta noite.
O Middlesex?
- Sim.
Porque não me disse nada?
Não queria que te preocupasses.
Mas esqueça lá isto. Vá descansar.
Foram-se todos embora.
Não tinha acontecido
há muito tempo.
Fechou-se o círculo.
Mas mudou de nome,
eles não o reconheceram!
Não fui divertido.
O problema é que estava sóbrio.
Havia de ter bebido
antes de subir ao palco.
Eles não sabiam quem você era.
Ainda bem.
Não pode ser um sucesso
logo à primeira,
não actuou há tanto tempo.
Vai ver, quando voltar amanhã,
será diferente.
Não voltarei.
Porquê?
Eles cancelaram o contrato.
Não podem fazer isso!
Podem. Fizeram-no.
Mas contrataram-no
para uma semana. Insista.
Não vale a pena. Acabou-se...
Estou morto!
Ridículo!
Vai aceitar que uma só actuação
o deixe de rastos?
Não, porque você
é um grande artista!
Chegou a hora de lhes mostrar,
chegou a hora de lutar!
Tente lembrar-se do que me disse...
Lembra-se?
Do poder do universo
que faz girar a Terra,
que faz crescer as árvores.
Esse poder está em si!
Chegou a hora de usar
esse poder e de lutar!
Calvero! Olhe! Consigo andar!
Consigo andar!
Consigo andar!
Imagine só, consigo andar...
Eu já não.
Tenho que me sentar.
Viste que são quase 5h?
Eu sei, mas não podia mais
ficar naquele quarto.
Compreendo.
Anime-se.
Olhe... O sol vai levantar-se.
É um bom presságio.
Eu sei. Tenho certeza.
Terá que ser.
Não fique assim.
Daqui a pouco, estará de volta.
De quê?
Veja só a nossa sorte.
Temos os dois saúde.
Logo arranjarei um emprego,
e tudo ficará bem para nós.
Nós?
Sim, nós.
Você e eu. Juntos.
Seis meses depois
Sr. Bodalink!
- Sim?
O director chamou por si.
- Obrigado.
Terry, ia agora deixar-lhe
um recado para o Calvero.
Que me venha ver amanhã
antes da sua audição.
Queremos vê-lo.
- Fantástico!
Um momento...
Terry, não te tinha ouvido entrar.
Nem podia.
Apresento-te os meus amigos.
Mademoiselle Thereza.
Muito prazer.
Estávamos ensaiando
cerveja, Bach e Beethoven.
São horas para tocar música?
Se for um nocturno...
Continuemos com o fracasso,
mas desta vez,
com mais sentimento. "Largo".
Eu continuo com a cerveja.
- Vem já.
Que dirá a Sra. Alsop?
Que miséria! Depois de ter
subido três andares,
dei agora conta que só trouxe
garrafas de cerveja vazias!
Terry! Já se acabou o espectáculo?
Não sabia que era assim tão tarde.
É mais que tarde.
Está na hora. Vamos andando.
Já vão? A festa ainda nem começou!
É quase 1h da manhã.
- E depois?
Esperem aí!
O Calvero deu-me uma dica
na corrida de cavalos.
Isso só acontece uma vez na vida.
Esperem por mim. As escadas
são traiçoeiras, eu guio-vos.
Calma aí, eu ainda posso comigo,
deixem-se estar.
Boa noite.
Desculpa, menina. Estou bêbedo.
A sua saúde é que me preocupa.
Que lhe disse o médico?
Que não podia beber.
Só faz mal ao meu coração.
E o meu espírito?
Havia de estar atento
para poder contemplar o futuro,
e juntar-me às ninfas
de cabelo cinzento
que dormem debaixo
das pontes do Tamisa.
Jamais enquanto eu for viva.
Esqueci-me de te preparar o jantar.
Que idiota!
Eu já o faço.
Primeiro, vou levá-lo para a cama.
Mas não comeste nada...
Tomou o seu remédio?
Que remédio?
Não tomou.
Era para lhe abrir o apetite.
Eu estanquei o meu apetite.
Ficará doente se não comer.
Prefiro beber.
O caracter de um homem
revela-se quando bêbedo.
Eu... sou mais divertido.
Pena não ter bebido
no Middlesex.
Tenho uma boa notícia.
O Sr. Bodalink quer vê-lo
amanhã às 9h30.
Quem é ele?
O coreógrafo. Quer que faça
de palhaço no nosso ballet.
Acabaram-se as palhaçadas.
Para mim, a vida não é mais
uma brincadeira.
A partir de hoje,
sou cómico reformado.
Tudo será diferente amanhã.
Não. Eu odeio o teatro.
Qualquer dia,
comprarei um pedaço de terreno,
cultivarei umas flores,
e ganharei a minha vida assim.
Está tudo arranjado.
Serei eu o palhaço.
Vamos nos sentar
e vai contar-me tudo.
Evidentemente,
o salário não é muito.
Duas libras?
No início. Claro, não vou usar
o meu verdadeiro nome.
Esse Bodalink é um bom rapaz.
Disse-me que dançavas bem.
Sem essa fobia do teatro,
você poderia ter visto.
Porque não me falaste
da tua audição?
Queria fazer-lhe uma surpresa.
Aliás, não está feito.
Depende do Sr. Postant.
Postant! Pensei que
já tivesse ido para a reforma.
Você conhece-o?
Da última vez que o vi,
eu era uma vedeta.
Luzes.
Tens as mãos geladas!
Ela é perfeita:
simpática e boa bailarina.
Mande-a entrar!
Thereza, por favor.
Claro, será improvisação.
Assim é que eu formo
a minha opinião.
Thereza. O Sr. Postant.
Muito prazer.
Vai dançar à música do Sr. Neville.
Ouça-a primeiro.
O Sr. Neville, o nosso compositor.
Muito prazer.
Já não a vi?
Acha?
É 12h30, vamos todos almoçar.
Encontramo-nos à 1h30.
Parabéns à nova "prima ballerina"
do Empire Theater.
Está toda suada!
Vá vestir o seu casaco!
Iremos conversar
sobre o nosso assunto.
Posso?
Os meus parabéns.
- Obrigada.
Venha ao meu escritório às 2h30
para assinar o seu contrato.
O ensaio é às 2h!
Então às 6h, após o ensaio.
Vá rápido para o camarote,
ou apanhará frio.
Onde está o Neville?
- Vou já.
Está bom, Frank, apaga as luzes.
Calvero?
Estou aqui.
Andava à sua procura lá fora.
Que faz aqui sentado às escuras?
Ficaria ridículo na luz.
Olha só. Que vergonha...
Não há nada que possa fazer.
Minha cara,
tu es uma verdadeira artista.
Uma verdadeira artista.
Isto é absurdo... ridículo.
Esperei tanto tempo por isto:
Eu amo-o.
Desejava dizer-lhe há tanto tempo.
Desde o dia em que pensou
que eu era uma mulher da rua,
que me levou para sua casa,
que tratou de mim.
Você salvou-me a vida...
deu-me inspiração.
Mas acima de tudo, eu amo-o.
Por favor, Calvero... case comigo.
Que parvoíce é essa?
- Não é parvoíce nenhuma.
Minha cara, eu sou velho.
Não me importa!
Eu amo-o. É a única coisa que conta.
Últimas notícias! Expresso!
Enquanto almoças,
eu vou ver da minha peruca.
Então vou consigo.
- Não, é melhor ir almoçar.
Vemo-nos no teatro.
Bom apetite.
Olá.
Sou o pianista que há pouco
tocou para si.
Isto está cheio.
Sempre, ao meio-dia.
São dois?
Pode ser.
Que desejam?
Ovos, tostas e chá.
O mesmo para mim.
Não vale a pena arriscar.
Está um lindo dia para ensaiar.
No jornal, dizem
que é capaz de chover.
É mesmo?
Qual é a piada?
Finalmente, posso conversar consigo
e não tenho nada para dizer.
O silêncio é algo muito eloquente.
É melhor eu mudar de mesa.
- Eu não mordo.
Quem sabe? Há bocado,
deixou-me muito desanimado.
Que quer dizer com isso?
Quando nos apresentaram.
Não entendo.
Achei que não foi muito acolhedora.
Continuo a não entender.
Desculpe.
Estou a falar sem pensar.
Mas tinha a sensação
que nos conhecíamos.
Talvez nos conhecemos.
Se não for,
você tem uma irmã gémea.
Quem é ela?
Quer mesmo saber?
Sim.
Ela trabalhava na Sardou,
a papelaria onde
comprava papel pautado.
Uma rapariga muito tímida
e discreta.
Apenas falava.
Mas tinha um sorriso caloroso
no qual eu via muitas coisas.
Eu também era tímido.
Tínhamos isso em comum.
Ela dava-me folhas a mais...
por vezes, troco a mais.
Eu aceitava, claro.
A fome não tem consciência.
Depois de tocarem
a minha sinfonia no Albert Hall,
voltei à papelaria.
Ela não estava. Disseram-me
que tinha abalado há meses.
Nunca mais a voltou a ver?
Será que voltei?
Sim, voltou.
Eu sei.
Sabe que me despediram
por causa dessas folhas?
Vai me atirar isso à cara?
- Não, claro...
Nessa altura, era muito jovem.
Ainda é muito jovem.
Não sei... Em breve serei
uma mulher velha e casada.
Desejo-lhe muita felicidade.
Obrigada.
A empregada
é mesmo vagarosa!
Antes da coreografia,
vou explicar o argumento:
É uma arlequinada.
A Terry, em Columbina,
está a morrer num sótão de Londres.
O seu amor, o Arlequim
e os palhaços estão ao lado dela.
Ela pede para a levarem à janela,
quer ver os telhados da cidade
uma última vez.
Os palhaços choram. Ela sorri.
Não trazem trajes tristes,
mas cómicos.
Ela quer vê-los actuar,
fazer truques.
Eis a parte da comédia.
Enquanto ela morre.
- Sim.
Onde é que eu ia?
Durante a actuação deles,
ela delira.
Espíritos de Columbina
dançam à sua frente.
Aí, ela morre.
Fim do primeiro acto.
O segundo acto começa no cemitério.
O Arlequim entra sozinho,
à luz da lua.
Com a sua vara mágica,
tenta ressuscitá-la.
Mas não consegue.
Os espíritos dizem-lhe
para não se afligir:
o amor dele não morreu, está vivo.
Nesse momento aparece a Terry.
Eis o solo e o final.
Despacham-se, só temos
três semanas de ensaios.
Calvero!
Que foi?
Está a correr bem?
- Óptimo.
Queria já ter dançado.
- Não te preocupes.
Estou nervosa. Reze por mim.
Quem se ajuda Deus ajuda.
Boa sorte.
Não posso continuar!
- O quê?
As minhas pernas...
Não posso mexer!
São os nervos.
Não me posso mexer!
Estou paralisada!
É histeria, estás ouvir?
Vai para o palco!
Estou caindo...
As minhas pernas estão paralisadas!
Vai para o palco!
Estás a ver?
Essas pernas não têm nada.
Quem seja ou o que seja,
ajude-a até ao fim...
Perdi um botão.
Um destes.
Não faz mal.
Onde está o Calvero?
Pediu-me para esperar aqui.
Mando já alguém
à procura dele.
O jantar está pronto.
Você fica ao pé do Sr. Postant.
O jantar está servido!
Venha cá, você está
sentada ao meu lado.
Bodalink, você fica mais abaixo.
O destino deve ser despenseiro.
Porquê?
Voltou a juntar-nos à mesa.
Ou será a sua desgraça.
Nesse caso, aceito a sentença.
Além disso, parabéns.
Esta noite, foi maravilhosa.
É o que os militares
chamam de estratégia.
Neville, disseram-me
que foi chamado pela tropa.
Entrou para a tropa?
A tropa é que me chamou.
Fui recrutado.
É terrível!
Isto tudo vai levar
a guerra demasiado longe.
Mas talvez me apontarão
aqui na cidade.
Não quer dançar?
Uma boa patriota
não diz não a um soldado.
Lembro-me de o ver fazer
de viúva Twankey
no Theater Royal
de Birmingham, em 1890.
Calma aí, meu amigo, calma.
Venha beber um copo.
Calvero, meu velho,
como é que o mundo te trata?
Agressivamente, neste momento.
Não me conheces?
Fico muito contente por isso.
Isso é alguma piada?
Meu amigo, nunca o saberá.
Vá, beba um copo.
Mas vá bebê-lo
à outra ponta do balcão.
Desculpe, a Sra. Thereza
está à sua espera.
Que foi?
A Sra. Thereza está à sua espera.
Diga-lhe que não se preocupe,
que fui para a cama.
Muito bem.
Onde está o Calvero?
Foi descansar,
disse para você se divertir.
Não, vou embora. Diga adeus
ao Sr. Postant por mim.
Vou chamar um táxi.
Eu vou para casa a pé.
Deve estar a dormir.
Foi demasiada excitação para ele.
Eu também me sinto cansada.
Eu vou indo.
Votarei a vê-lo?
Abalo de madrugada.
Adeus, Terry.
Não...
Diga que me ama.
Por favor...
Tentei lutar, mas não posso.
Por favor, não vale a pena...
Você sofre tanto como eu.
Amamo-nos.
Nunca disse que o amava.
O seu olhar,
os seus gestos dizem-no.
Não diga isso...
Eu sei que lhe é devota,
mas casar com ele não é justo.
Você está no início da vida.
Essa dedicação é idealista.
Você é jovem!
Não é amor!
Não, está enganado.
Eu amo-o sinceramente.
Tem pena dele.
É muito mais que pena.
É algo com o qual vivi,
que foi crescendo.
É a alma dele, a gentileza dele,
a tristeza dele...
Nada me separará dele.
Boa noite, Terry.
Adeus.
Ouve isto:
"A Thereza fez piruetas
com autoridade irradiante.
"Foi ligeira, viva, eflorescida.
"Uma Diana tecendo
um labirinto de beleza."
Muito bem!
Conseguiste.
Como te sentes depois de famosa?
Isso. Chora e goza.
Só acontece uma vez na vida.
Vamos casar-nos. Rápido.
Se fossemos embora...
Nessa casa de campo,
conheceríamos a paz e a felicidade.
Felicidade...
É a primeira vez
que usas essa palavra.
Sinto-me feliz consigo.
- É verdade?
Claro. Eu amo-o.
Desperdiço num homem velho.
O amor nunca é desperdiço.
Pareces uma freira, a fazer
abstracção de tudo por mim...
Não é justo estragar
a tua juventude.
Mereces muito mais.
Deixa-me ir.
Que lhe aconteceu?
É assim. Se eu tivesse
a força de abalar...
Mas fico aqui atormentado.
Não é justo!
É tudo falso!
Para os meus últimos
anos de vida, quero a verdade.
É tudo o que me resta.
A verdade.
É tudo o que eu quero.
Com um pouco de dignidade.
Se me deixar, eu mato-me!
Detesto a vida!
O seu tormento, a sua crueldade!
Não poderia continuar sem si.
Não entende? Eu amo-o.
Queres amar-me.
- Eu amo-o!
Amas o Neville, e eu não te censuro.
É mentira.
É o compositor
que conheceste na Sardou.
Sim. Não lhe tinha dito
porque pensava...
Era inevitável.
Eu tinha-o dito. Lembras-te?
Um jantar num terraço do Tamisa...
É mentira!
Á luz das velas,
ele dirá que te ama.
E tu lhe dirás que sempre o amaste.
Mas eu não o amo! Nunca o amei!
Era a música, a arte dele!
Um mundo ao qual
não tinha direito.
Ficam tão bem juntos.
Mas eu não o amo! Nunca o amei!
Por favor, acredite em mim!
Tem que acreditar!
A dança foi espectacular,
mas a comédia não valeu nada.
Temos que despedir o palhaço.
Já pedi à agência
para me mandarem outro.
Sabe quem é ele?
Mesmo se fosse o próprio Calvero,
não tem graça.
Pois é ele mesmo.
- O quê?
O Calvero, sob outro nome.
Porque não me disse nada?
Ele não queria.
Pobre Calvero. Bem, é diferente,
teremos que guardá-lo.
A comédia não é assim
tão importante.
Mas eu não o vi no jantar
da primeira noite.
Não veio. Foi por isso
que a Thereza abalou.
Que tem ela a ver?
Vai casar com ele.
Com aquele velho patife?
Deus abençoado,
ainda há esperança para mim.
São horas dos ensaios.
Espere um pouco.
Vou pedir à agência
para cancelar o outro palhaço.
Se acabar cedo,
não espere por mim.
Tenho muitas coisas a fazer,
mas chegarei às 6h.
Calvero!
- Griffin!
Há tanto tempo!
Onde andas a trabalhar?
Ando à procura dum emprego.
A agência mandou-me aqui
assistir aos ensaios.
Da arlequinada?
Parece que o palhaço é fraco.
Se calhar, ficarei com o papel.
Deseja-me boa sorte.
Boa sorte.
- Obrigado.
Sra. Alsop!
Que foi?
Calma. Que aconteceu?
Onde está o Calvero? Viu-o?
Que quer dizer?
- Ele deixou-me!
Foi-se embora!
Deseja contribuir?
Capitão, deseja contribuir?
Não, não, ponha aqui.
Não tenho falso orgulho.
Sente-se e beba um copo.
Enquanto trabalho não,
mas vou sentar-me.
Posso?
Como está?
Melhor que nunca.
Está a ser bem tratado pela tropa?
Mais ou menos.
Venho a Londres
semana sim, semana não.
Tem visto a Terry?
Como anda ela?
Ficou doente depois da sua ida.
Mas está melhor agora?
Deu volta à Europa.
Anda muito melhor.
Bem.
Ela nunca me contou...
Aconteceu o inevitável.
Vê-a frequentemente?
Sim.
Bem.
Eu sabia que acabaria assim.
O tempo é um autor fantástico.
Sempre escreve um final perfeito.
Cruzes!
Como está, Sr. Postant?
Olhe lá, é mesmo o senhor
quem eu queria ver.
Deseja contribuir?
Você está com aquele grupo?
Sim, senhor.
Muito obrigado.
Isto aqui não é o seu lugar.
Porque não?
O mundo inteiro é um palco.
Pelo menos,
este é o mais verdadeiro.
Vou indo, para os meu parceiros
não pensarem que fugi com a caixa.
Obrigado.
Não quer que eu diga
à Terry que o vi?
É melhor não. Ao saber o que faço,
ficaria preocupada.
Eu não me importo.
Gosto de trabalhar na rua.
Devo ser um pouco vagabundo.
Espere aí.
Venha ao meu escritório.
Para quê?
- Um contrato.
Nunca falo em contratos.
Chame o meu agente.
Além disso, ando muito ocupado.
Au revoir.
Pare aí, dê meia volta.
Fique com o troco.
O Cyrano de Bergerac. Sem o nariz.
Vamos sentar-nos.
Disseram-te.
Andei à sua procura
em toda Londres.
Sempre a mesma Terry...
Acha?
Um pouco mais crescida.
Eu não quero crescer.
Ninguém quer.
Mas foi preciso, após a sua ida.
Foi tudo para o melhor.
Tudo para o melhor...
Talvez.
Não sei.
Algo desapareceu.
Para sempre.
Não desapareceu nada.
Só mudou.
Eu ainda o amo.
Claro.
E sempre me amarás.
Calvero, volte.
Tem que voltar!
Não posso.
Tenho que continuar em frente.
Isto é o progresso.
Então, deixe-me ir consigo.
Farei tudo para que se sinta feliz.
É isso que dói.
Eu sei que o farias.
O Sr. Postant quer organizar
um espectáculo consigo.
Não preciso da caridade dele.
Não é caridade. Ele diz que será
o maior evento do mundo teatral.
Eventos não me interessam.
Aceitarei para mostrar
que não estou acabado.
Claro.
Sabes, ainda tenho boas ideias.
Trabalhei muito
sobre um número de comédia
para mim e um amigo meu.
É uma sátira musical.
Fantástico!
Ele é bom pianista,
e eu com o violino...
É algo muito, muito engraçado.
COMPLETO
Entre.
Sente-se. Tem ar de cansada.
Trabalhei muito com a claque
sobre as piadas do Calvero.
Dei indicações para saberem
a que momento rir.
As piadas são assim tão más?
Estou preocupada.
Um fracasso esta noite o mataria.
Não será um fracasso.
O público será complacente.
Ele não quer qualquer complacência,
quer que seja
um sucesso verdadeiro.
Que creia ele? Já não é
o homem que era...
Não se lhe pode dizer.
Diga-me, minha cara,
ainda está decidida a casar com ele?
Farei tudo para que
se sinta feliz.
É um homem com sorte.
É um homem com muita, muita sorte.
Nunca pensei que
chegássemos a isto.
Nem temos criada
no camarote das vedetas.
Por uma noite, podemos passar sem.
Fred, o director de cena.
Entre, Fred.
É como nos velhos tempos,
vê-los por aqui.
Que deseja?
Actuarão 10 minutos, depois
temos mais 20 outros números.
Uma única canção
e acaba com o número musical.
Baixo o pano depois
de você cair no tambor.
Depois de me levarem no tambor.
Muito bem. Obrigado.
Se ouvir outra vez falar
em velhos tempos, salto pela janela.
Foi primeiro o porteiro,
depois o contra-regras
e agora, o director de cena.
Sou eu, o Postant.
É como nos velhos tempos,
vê-los pôr as pinturas de guerra.
Eu vou lá baixo
ver os outros números.
Sim, velhos tempos...
Só que então andava bêbedo.
Dizem que tinha mais graça.
Talvez, mais isso matava-o.
Qualquer coisa para fazer rir.
Como está a casa?
Cheia. Temos cá
as caras todas da Europa:
reis, damas e valetes!
O Neville está?
- Veio especialmente.
Que programa!
Veja só: as vedetas todas
actuam esta noite.
Têm todos tanto talento...
Não se preocupe, ao seu lado
parecem todos amadores.
No final, todos somos amadores.
Não vivemos o suficiente
para ser outra coisa.
De um amador para outro...
Boa sorte.
- Obrigado, Sr. Postant.
Entre.
Como me achas?
Engraçado.
Eu sei o que pensas.
A minha saúde e o resto...
Mas tive que beber um copo.
Sinto uma luz a acender
e apagar dentro de mim.
E isso não é bom
se quiser ter sucesso.
Acha que vale a pena?
O sucesso não conta,
mas não quero outro fracasso.
Aconteça o que for,
sempre haverá a casa de campo...
Esta é a minha casa.
Pensei que odiasse o teatro.
Também odeio ver sangue,
no entanto corre-me nas veias.
Entre.
Sr. Calvero, para o palco.
Boa sorte.
Estão todos à sua espera.
Obrigado.
Não me agrada nada.
Andam todos
muito simpáticos comigo.
Faz-me sentir ainda mais só.
Tu também.
Porque diz isso?
Não sei.
Não sei mesmo.
A sua roupa.
Ata isso aí!
A sua roupa esta pronta.
Boa sorte, querido.
Não vais ver?
Não posso.
Mas lembre-se: eu amo-o.
Sim?
Para sempre,
com todo o meu coração.
Está pronto, Sr. Calvero?
Boa sorte, querido.
Vamos!
Eu sou um domador,
no circo, sou o maior
Treino qualquer animal,
leão, tigre, até mesmo um pardal
Esta não é a Phyllis!
Onde está a Phyllis?
Aqui está ela!
Aos 3 anos, a minha ama
explicou-me tudo
Sobre reencarnação
Desde esse dia, tenho certeza
Excita-me essa antecipação
Que quando este mundo eu deixar
O meu coração até vai voar
Um dia voltarei
Noutra forma, essa é a lei
Mas eu não quero ser
nenhuma planta
Enfiiada no chão
Prefiro ser uma formiga
Também não quero ser uma flor
E ter que esperar
pelo pólen, o meu amor
No dia em que eu desmaiar
Eu quero voltar,
eu quero voltar para o mar
A vida de uma sardinha,
essa é vida para mim
Pular e dançar no fundo do mar,
isso é que eu quero, sim
Sem medo da rede do pescador,
de certeza serei eu o maior
A vida de uma sardinha
Essa é vida para mim
Já passam 3 minutos!
Veja o público.
Incline-se e acabe.
Tenho outro número.
Incline-se e acabe.
Que faço?
Acabe! Temos 15 outros
números atrás!
Temos outro número para fazer.
Por favor, deixem-me falar!
Que se passa?
Porque deixou o palco?
Os outros também querem actuar.
O problema é seu.
Ele tem outro número.
Faça o outro número.
Meu amor!
Pegue nisto.
Tenho uma dor terrível nas costas.
O Dr. Blake está cá. Chamo-o?
Sim, rápido.
Que foi?
- Doem-lhe as costas.
Mandou chamar o médico?
Levem-no para o camarote.
Vou dizer ao público
que houve um acidente.
Não, levem-me até lá.
Vou eu falar, ou estragará a noite.
Em nome do meu parceiro
e de mim próprio...
Foi uma noite fantástica.
Adoraria continuar,
mas estou entalado.
Tirem-lhe a maquilhagem.
Há um sofá no camarote?
No quarto de acessórios.
Levem-no para lá.
Os outros todos ficam de fora.
Onde está o Calvero?
Onde está esse velho canalha?
Quero felicitá-lo.
Onde está o Calvero?
No quarto dos acessórios.
Teve um acidente.
Vem aí o médico.
Chame uma ambulância.
É sério?
Muito. Teve um ataque.
Tem dores?
- Não, dei-lhe um calmante.
Não passará a noite.
Que te disseram?
Sente-se bem?
Claro.
Sou como a erva daninha.
Quanto mais me podam, mais cresço.
Ouviste-os?
Não a claque...
Fantástico!
Costumava ser assim.
E assim continuará a ser.
Vamos dar volta ao mundo.
Tenho muitas ideias.
Tu a dançar, eu com a comédia.
E na elegância melancólica
do crepúsculo,
ele dirá que te ama...
Não importa, eu amo-o a si.
O coração e o espírito...
Que enigma...
Sra. Thereza, é à sua vez.
Não demoro, querido.
Creio que estou a morrer, doutor.
Mas quem sabe...
Já morri tantas vezes.
Sente dores?
Já não.
Onde está ela?
Quero vê-la a dançar.
Um momento.
Levem o sofá para os bastidores.
Vou ver da ambulância.