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O CREPÚSCULO DOS DEUSES
Sim, estamos em Sunset Boulevard,
em Los Angeles, na Califórnia.
São cinco da madrugada.
Eis a Brigada de Homicídios,
além de detectives e de jornalistas.
Deram parte de um assassinato
numa destas grandes mansões.
Lerão certamente a notícia
nos vespertinos.
Vão ouvi-la na rádio
e vê-la na televisão,
porque está envolvida uma antiga
estrela, uma das maiores.
Mas, antes de ouvirem a história
distorcida e exagerada,
antes dos colunistas de Hollywood
se apoderarem dela,
talvez queiram ouvir os factos,
toda a verdade.
Se assim for,
vieram ao sítio certo.
O corpo de um jovem foi
encontrado a boiar na piscina dela,
com duas balas nas costas e uma
na barriga. Ninguém importante.
Um argumentista
de filmes de série B.
Pobre coitado!
Sempre quis ter uma piscina.
Acabou por consegui-la.
Mas o preço foi um tanto elevado.
Recuemos seis meses,
até ao dia em que tudo começou.
Eu estava a morar num apartamento
perto da Franklin com a lvar.
As coisas estavam difíceis.
Já não trabalhava num estúdio
há muito tempo.
la escrevinhando argumentos
originais. Dois por semana.
Só que parecia ter perdido o jeito.
Talvez não fossem originais.
Talvez fossem demasiado originais.
O que eu sei é que não vendiam.
Sim?
- Joseph C. Gillis?
- Sim.
- Viemos buscar o carro.
- Qual carro?
O Plymouth descapotável de 1946,
matrícula da Califórnia 40 R 116.
- As chaves?
- Para que as querem?
O banco teve muita paciência consigo.
Não pagou três prestações
e temos um mandado judicial.
As chaves.
- Ou quer que o reboquemos?
- O carro não está cá.
- Não me diga.
- Emprestei-o a um amigo.
- Levou-o para Palm Springs.
- Por motivos de saúde, não?
- Se não acreditam, vejam na garagem.
- Acredite também em nós.
Se o carro não estiver aqui amanhã,
vamos ter festa.
Diz coisas muito engraçadas.
Precisava de 290 dólares
urgentemente ou perdia o carro.
Não estava em Palm Springs
nem na garagem.
Eu tinha-me antecipado ao banco.
Sabia que eles viriam
e não queria arriscar.
Deixei-o num estacionamento,
atrás do Rudy engraxador.
O Rudy nunca fazia perguntas
sobre a nossa situação financeira.
Olhava para os nossos sapatos
e via logo.
Um argumento meu
andava a circular na Paramount,
sem êxito. Mas conhecia um tubarão
lá, que sempre simpatizara comigo,
e ia aproveitar-me disso.
Chamava-se Sheldrake.
Era um produtor espertalhaço,
com úlceras para o provar.
Tem cinco minutos.
Conte lá o seu argumento.
Um jogador de basebol, prometedor.
Esteve metido num assalto,
quer regenerar-se, mas há
uns escroques que não o deixam.
E ameaçam-no,
se não perder o Campeonato?
Sim, mas tenho uma ideia óptima
para o final.
- Tem título?
- "Jogo Viciado". E um bom resumo.
Veja o que têm sobre "Jogo Viciado"
no Departamento de Revisão.
Gostaram, na Twentieth,
mas o Zanuck não acerta.
Vê o Tyrone Power
a jogar basebol?
Têm cá o actor indicado,
o Alan Ladd.
Seria uma variante para ele,
e é fácil de filmar.
Tem muitos exteriores. Aposto
que custaria menos de um milhão.
- Desculpe.
- Há um papel óptimo para o Demarest:
um dos treinadores, antigo jogador,
salta-lhe a tampa de vez em quando.
Olá, Sr. Sheldrake. Aqui tem
a minha sinopse de "Jogo Viciado".
- Obrigado.
- Mas acho que não vale a pena.
- Qual é o problema?
- Foi ditado pela fome.
Não tem nada para o Ladd?
É um mero arranjo
de algo que nunca prestou.
Vai gostar de conhecer o Sr. Gillis,
o autor. Esta é Miss Kramer.
Schaefer, Betty Schaefer.
Quem dera um buraco para me meter...
- Se eu puder ajudar, diga.
- Desculpe, mas não gostei.
Achei-o desenxabido e banal.
Que material recomenda?
Joyce, Dostoievski?
Acho que os filmes
deviam dizer alguma coisa.
Uma história não chega.
Teria recusado "E Tudo o Vento Levou".
Não, eu é que disse "Quem quer ver
um filme sobre a Guerra Civil?"
Detestei, talvez por o conhecer
de nome. Parece que tem talento.
Tive. Agora, quero ganhar a vida.
E pega num enredo simples,
junta-lhe uns pozinhos de...
Basta.
Parecem críticos nova-iorquinos.
- É tudo, Miss Kramer... Schaefer.
- Adeus, Sr. Gillis.
Para a próxima, escrevo-lhe
"Os Nus e os Mortos".
Bem, parece que o Zanuck
arranjou um filme sobre basebol.
Eu não contava ganhar
um Óscar com este filme.
Interessam-nos filmes para
a Betty Hutton. Serviria para ela?
- Acho que não.
- Espere...
Se fosse uma equipa feminina
e introduzíssemos uns números,
podia dar um musical. "Num Campo
de Basebol - História de uma Mulher".
Não acho graça. Estou metido
num aperto, preciso de trabalho.
- Não tenho nada.
- Qualquer coisa. Diálogos adicionais.
Não há nada.
Sr. Sheldrake, empresta-me
300 dólares, a título particular?
Eu? Gillis...
No ano passado, convenceram-me
a comprar um rancho
e eu pedi um empréstimo ao banco.
Este ano, hipotequei o rancho
para pagar o seguro de vida...
Depois, fui até ao Quartel-General.
É o nome que damos
ao drugstore Schwab;s.
Um misto de escritório,
café e sala de espera.
Espera infinda
por uma oportunidade.
Arranjei dez moedas e comecei
a enviar um pedido de socorro.
É claro que não consegui
apanhar o meu agente.
Falei então a um amigo meu,
o Artie Green.
Um tipo muito simpático,
assistente de realização.
Ele podia emprestar-me 20,
mas 20 não chegavam.
Falei a uns capachos da Metro.
Disseram-me que não, na cara.
Por fim, localizei o meu agente.
Grande impostor!
Andava a procurar trabalho
para o desgraçado do Joe Gillis?
Qual! Estava ocupadíssimo
em Bel Air, a jogar golfe.
Precisas de 300 dólares?
Podia dar-tos, mas não dou.
- Não?
- Eu não sou só teu agente.
- Sou teu amigo.
- És?
As grandes obras
foram escritas de barriga vazia.
Quando um talento como o teu
se acomoda, é o fim.
O que me interessa é o carro.
Perdê-lo é como ficar sem pernas.
É a melhor coisa que te podia
acontecer. Vais ter de escrever.
Que julgas que tenho feito?
Preciso de 300 dólares.
Meu caro, talvez precises
é de outro agente.
De regresso á cidade,
fiz um balanço da situação.
As perspectivas eram desoladoras.
Tudo parecia indicar
que eu não tinha estofo.
Era chegado o momento de fazer
as malas e de voltar para casa.
Se empenhasse tudo, talvez
desse para regressar ao Ohio,
ao emprego mal pago na redacção
do; ; Dayton Evening Post; ;,
se ainda houvesse vaga. Voltava
para ser alvo da chacota geral.
Por que não tentam a vossa sorte
em Hollywood, espertinhos?
Pensam talvez que...
Olá...
Dei comigo na entrada
de uma mansão
que parecia arruinada e deserta.
Ao fundo,
vi algo que me agradou muito.
Uma enorme garagem vazia,
ali a desperdiçar-se.
Um local ideal para esconder
um carro com um furo e procurado.
Havia outro ocupante na garagem.
Um gigantesco automóvel
de fabrico estrangeiro.
Devia consumir
uma fortuna em gasolina.
A matrícula era de 1932. Talvez
o ano em que os donos partiram.
Não podia voltar para o apartamento,
com eles atrás de mim.
Ficaria em casa do Artie Green até
me meter na camioneta para o Ohio.
Em Dayton,
mandaria um postal aos do banco,
dizendo-lhes onde podiam
ir buscar a carripana.
A casa era
um autêntico elefante branco.
Daquelas que a gente do Cinema
construía nos loucos anos 20.
Uma casa abandonada
fica com um ar infeliz.
Esta tinha um ar infelicíssimo.
Parecia-se com a velha senhora
de; ; Grandes Esperanças; ;,
aquela Miss Haversham com o vestido
de noiva desfeito e o véu rasgado,
vingando-se do mundo
por ter sido abandonada.
Você aí, por que veio tão tarde?
Por que me fez esperar
tanto tempo?
Por aqui.
Meti o meu carro na garagem.
Tive um furo...
- Entre.
- Talvez seja melhor tirar o carro.
Limpe os pés.
Entre.
Não está vestido para a ocasião.
- Que ocasião?
- Manda-o subir, Max.
- É ao cimo das escadas.
- E se me ouvisse?
- Madame está á espera.
- De mim?
Está bem.
Se precisar de ajuda
com o caixão, chame-me.
Por aqui.
É aqui.
Deitei-o na mesa de massagens,
á frente da lareira.
Sempre gostou de lareiras
e de atiçar o fogo com um pau.
Vamos enterrá-lo no jardim.
Há alguma lei a proibir?
- Não faço ideia.
- Também não me interessa.
Quero um caixão branco,
forrado de cetim.
Branco ou rosa vivo.
Talvez vermelho, cor de fogo.
Uma coisa alegre.
Quanto é? Não me faça um preço
exorbitante lá por eu ser rica.
Enganou-se na pessoa.
O meu carro teve um furo.
Meti-o na sua garagem.
A casa pareceu-me estar vazia.
- Mas não está. Saia.
- Lamento.
Lamento a morte do seu amigo.
E o vermelho não é a cor indicada.
- Eu não a vi já?
- Sai ou chamo o meu criado?
É a Norma Desmond.
Era uma grande estrela do mudo.
E sou.
Os filmes é que ficaram pequenos.
Eu sabia
que tinham algum problema.
Estão mortos, acabados.
Em tempos, tinham os olhos
do mundo inteiro.
Mas isso não lhes chegou.
Quiseram ter também os ouvidos.
Então, abriram as bocarras
e começaram a falar sem parar!
Aí é que entram as pipocas.
Servem para tapar os ouvidos.
Os grandes génios,
nos seus gabinetes de executivos!
Pegaram nos ídolos
e destruíram-nos!
Os Fairbanks,
os Gilberts, os Valentinos!
Quem temos agora?
Uns zés-ninguém.
Não me culpe.
Sou apenas um escritor.
É? Escrevem palavras,
palavras e mais palavras.
Fizeram uma corda com elas
e estrangularam o cinema.
Mas há o microfone
para captar os últimos gargarejos
e o Technicolor para fotografar
a língua vermelha e inchada.
- Ainda acorda o macaco.
- Saia! Max.
Para a próxima,
trago o meu álbum de autógrafos.
Ou um bloco de cimento
para as suas pegadas.
Deixe, eu saio sozinho.
Espere.
Disse que era escritor.
- Porquê?
- É ou não é?
- Tenho carteira profissional.
- E já escreveu argumentos?
Sim. Quer que lhe faça uma lista?
Quero perguntar-lhe uma coisa.
Venha.
O último que escrevi
passava-se no Oklahoma.
Ninguém diria,
porque, na tela,
a acção desenrolava-se
num torpedeiro.
Muito acolhedor...
O vento entra naquele maldito órgão.
Eu devia mandar tirá-lo.
Ou ensinar-lhe outra melodia.
Jovem, diga-me uma coisa.
Que tamanho tem um guião,
hoje em dia? Quantas páginas?
Depende se é um Pato Donald
ou uma Joana d' Arc.
É um filme muito importante.
Levei anos a escrevê-lo.
Parece chegar
para seis filmes importantes.
É a história de Salomé.
Realizada pelo DeMille.
- DeMille?
- Fizemos muitos filmes juntos.
- E a senhora vai fazer de Salomé?
- Quem havia de ser?
Não sabia que planeava
o seu reaparecimento.
Detesto essa palavra!
É um regresso.
Aos milhões que nunca me perdoaram
por ter abandonado a tela.
- É justo.
- Salomé... Que mulher!
Que papel! A princesa
apaixonada por um santo.
Faz a dança dos sete véus.
Ele rejeita-a e ela exige
a cabeça dele numa bandeja
e beija-lhe os lábios frios.
- Vão gostar imenso, em Pomona.
- Vão gostar em todo o lado.
Leia a cena
antes de ela o mandar matar.
Outro escritor pode plagiá-la.
Não tenho medo. Leia.
Max, traz bebidas.
Sente-se. Tem luz suficiente?
- Tenho uma visão excelente.
- Mandei-o sentar-se.
Eu não tinha
nenhum compromisso urgente,
a não ser com os rapazes
do banco.
E ela tinha falado em bebidas.
Por que não?
Às vezes, é interessante ver
até que ponto se pode escrever mal.
Isto prometia ultrapassar
todas as expectativas.
O que diria um grafólogo
daquelas garatujas infantis?
O Max trouxe champanhe e caviar
num carrinho.
Vim a saber que o Max era o único
outro habitante do castelo sombrio.
E descobri algumas outras coisas
sobre ele.
Quanto a ela, sentou-se enroscada
como uma mola de relógio,
com o cigarro
preso numa curiosa boquilha.
Sentia os olhos dela cravados em mim
por detrás dos óculos escuros,
desafiando-me a não gostar
do que lia
ou talvez implorando-me, á sua
maneira orgulhosa, que gostasse.
Era muito importante para ela.
Era um ambiente acolhedor.
Aquela pilha de nervos, o Max,
o macaco morto lá em cima
e o vento a soprar no órgão
de vez em quando.
Mais tarde, para aliviar a tensão,
chegou o homem devido,
com um caixão de criança.
Foi tudo feito
com grande dignidade.
Devia ter sido
um macaco muito importante.
Talvez um bisneto
do King Kong.
Deram as onze da noite.
Eu estava um bocado agoniado,
com o champanhe adocicado
e aquela porcaria de guião,
aquela amálgama ridícula
de tramas melodramáticas.
Todavia, eu já começara
a urdir a minha própria trama.
- Então?
- É fascinante.
Claro que é.
Talvez seja algo longo e repetitivo,
mas não é uma escritora profissional.
- Escrevi com o coração.
- Claro.
É isso que lhe dá qualidade.
- Mas precisa de mais diálogos.
- Para quê?
- Digo o que quero com os olhos.
- Precisa de uma revisão.
- Não consinto que o assassinem.
- Claro que não.
Mas devia ser organizado.
Pode arranjar alguém.
Quem? Teria de ser
alguém de confiança.
Quando nasceu?
Qual é o seu signo?
- Não sei.
- Que mês?
Dezembro, 21.
Sagitário. Gosto de Sagitários.
Podemos confiar neles.
- Obrigado.
- Quero que você faça o trabalho.
Eu? Não posso. Acabei agora
um argumento e já tenho outro.
Não me interessa.
Cobro muito dinheiro.
Ganho 500 dólares por semana.
Não se preocupe com o dinheiro.
Eu pago-lhe bem.
- Leio o resto em casa.
- Não posso deixar que o leve.
- Acabe de o ler aqui.
- Está a fazer-se tarde.
- É casado, Sr?
- Gillis. Sou solteiro.
- E mora em?
- Hollywood. Apartamentos Alto Nido.
- O seu carro tem um problema?
- Lá isso tem.
- Por que não fica cá?
- Volto amanhã cedo.
Tolice! Há um quarto
por cima da garagem.
O Max leva-o lá.
Max!
Senti-me satisfeito com a maneira
como resolvera a situação.
Lancei o isco e ela mordeu-o.
O meu carro estaria em segurança
enquanto eu revia o argumento.
E ganharia muito dinheiro.
Este quarto
não é usado há muito tempo.
Nunca aparecerá numa revista,
mas serve para uma noite.
- Fiz a sua cama esta tarde.
- Como sabia que eu ia ficar?
Na casa de banho tem toalhas,
sabonete e uma escova de dentes.
Aquela Norma Desmond
é curiosa.
Foi uma grande estrela.
Não pode saber, é muito novo.
Numa semana, ela recebeu
17000 cartas de admiradores.
Os homens subornavam o cabeleireiro
para lhes dar uma madeixa.
Um marajá indiano
veio pedir-lhe uma meia de seda.
Mais tarde, estrangulou-se com ela.
Vim parar a um sítio
muito interessante.
Sem dúvida. Boa noite.
Concluí que ele também
não regulava lá muito bem.
Talvez devido a uma apoplexia.
Aliás, a casa parecia atingida
por uma paralisia progressiva,
desfasada do resto do mundo,
desmoronando-se em câmara lenta.
Havia um campo de ténis. Ou antes,
vestígios de um campo de ténis,
com linhas apagadas
e uma rede lassa.
E é claro que tinha uma piscina.
Nessa altura, quem não tinha?
A Mabel Normand e o John Gilbert
deviam ter nadado lá há muitos anos.
E a Vilma Banky
e o Rod La Rocque também.
Agora, estava vazia. Ou não?
Passava-se mais qualquer coisa.
O funeral do velho macaco peludo,
levado a cabo
com a maior das solenidades,
como se ela estivesse a enterrar
um filho único.
A vida dela seria assim tão vazia?
Era muito estranho. Mas coisas
ainda mais estranhas iriam acontecer.
Nessa noite, tive um sonho
em que entrava um tocador de realejo.
Não lhe via a cara, mas o realejo
estava coberto por panos pretos
e um macaco dançava,
a pedir dinheiro.
Quando abri os olhos,
continuei a ouvir a música.
Onde é que eu estava?
Pois, naquele quarto vazio
por cima da garagem...
Só que já não estava vazio.
Tinha recebido uma visita.
Alguém trouxera os meus livros,
a máquina de escrever, as roupas...
Que se passava?
Max, ou lá como se chama,
que fazem as minhas coisas aqui?
Estou a falar consigo!
As minhas roupas estão no quarto.
Naturalmente.
Fui eu quem as trouxe.
- Não me diga!
- Porquê? Falta alguma coisa?
- Quem o mandou fazer isso?
- Eu.
Não sei por que está assim.
Pára de tocar, Max.
Achei que era uma boa ideia,
já que vamos trabalhar juntos.
Fiquei de lhe rever o argumento.
Não combinámos que eu viveria cá.
- Irá gostar.
- Tenho o meu apartamento.
Deve três meses de renda.
- Eu encarrego-me disso.
- Já está tudo pago.
Deduzimos do meu salário.
Não sejamos mesquinhos.
Não vamos fazer escrituração.
- Desfaz as malas do Sr. Gillis.
- Já tratei disso, Madame.
- Faça-as outra vez. Não vou ficar!
- Decida-se.
Quer o trabalho ou não?
Eu queria o trabalho, o dinheiro
e sair dali sem demora.
Pensei que conseguiria acabá-lo
em poucas semanas.
Mas não era fácil dar nexo
aos devaneios delirantes dela.
E o pior era a presença constante
dela, sempre atrás de mim,
com medo que eu lhe estragasse
a preciosa obra.
Que é isto?
- Uma cena que eliminei.
- Que cena?
A do mercado de escravos.
É melhor passar logo para...
Cortar uma cena minha?
Aparece vezes de mais.
Não vão querê-la em todas as cenas.
Então, por que me escrevem
e pedem fotografias todos os dias?
Porque querem ver-me,
a mim, Norma Desmond.
Volte a pô-la onde estava.
Está bem.
Não discuti com ela.
Não se grita com um sonâmbulo.
Pode cair e partir o pescoço.
Ela continuava a viver
á sombra das glórias passadas,
completamente obcecada no que
se referia ao seu; ; eu; ; do celulóide,
a grande Norma Desmond.
Como podia ela respirar numa casa
tão cheia de Normas Desmond?
Normas Desmond
e mais Normas Desmond.
Não era só trabalho, claro.
Três vezes por semana, o Max
içava o enorme quadro a óleo,
oferecido por uma Câmara
do Comércio qualquer,
e víamos um filme,
ali mesmo, na sala dela.
Ela dizia que era
muito mais agradável do que sair.
A verdade é que tinha medo
do mundo lá fora,
medo que ele lhe lembrasse
que o tempo passara.
Eram filmes mudos. O Max
encarregava-se da projecção.
E ainda bem;
não tocava um acompanhamento
naquele órgão asmático.
Ela sentava-se muito junto a mim
e cheirava a tuberosas,
que não é, nem por sombras,
o meu perfume favorito.
Por vezes, ela agarrava-me
o braço ou a mão,
esquecendo que era minha patroa,
tornando-se uma mera admiradora,
excitada com aquela actriz na tela.
Não preciso de dizer
quem era a estrela.
Eram sempre filmes dela.
Não queria ver mais nada.
...AFASTA ESTE SONHO MAU
QUE SE APODEROU DE MIM...
Continua a ser maravilhoso.
E sem diálogos.
Não precisávamos de diálogos.
Tínhamos rostos.
Já não há rostos assim.
Talvez um, o da Garbo.
Produtores idiotas! lmbecis!
Não têm olhos?
Esqueceram-se
de como é uma estrela?
Eu mostro-lhes!
Hei-de voltar á tela!
De vez em quando, jogava-se
uma partidinha de bridge,
a um vigésimo de cêntimo o ponto.
Eu ficava com metade dos ganhos dela.
Uma vez, chegaram aos 70 cêntimos,
o único dinheiro vivo que ganhei.
Os outros jogadores
eram amigos actores,
figuras apagadas que talvez
ainda recordem do tempo do mudo.
Eu chamava-lhes
as Figuras de Cera.
- Uma de ouros.
- Uma de copas.
- Espadas.
- Passo.
- Três sem-trunfo.
- Passo.
- Passo.
- Despeja o cinzeiro, querido Joe.
- Uns homens perguntaram por si.
- Não estou.
- Foi o que eu disse.
- Óptimo.
Mas descobriram o seu carro
na garagem e vão rebocá-lo.
Onde está o cinzeiro?
Joe, então o cinzeiro?
- Preciso de falar contigo.
- Agora não posso, estou a jogar.
Vieram buscar o meu carro.
Esqueci-me
de quantas espadas saíram!
- Preciso de dinheiro.
- Podes esperar até eu ser o morto?
- Não.
- Por favor!
- Que se passa? Onde é o fogo?
- Perdi o meu carro.
Julguei que fosse
um caso de vida ou de morte.
Para mim, é. Por isso aceitei vir
para aqui escrever em teu nome.
Estás a ser tonto. Não precisamos
de dois carros. Nós temos um.
E não é um desses modernos que
não valem nada. É um Isotta Fraschini.
Já ouviste falar?
É um modelo personalizado.
Custou-me 28000 dólares.
O Max tirou aquele monstro
da garagem e puxou-lhe o lustro.
Ela levava-me a dar passeios
nas colinas sobranceiras ao Sunset.
Os estofos
eram de pele de leopardo
e tinha um telefone dourado.
- Essa camisa é horrível.
- Que tem ela?
Nada, para uma bomba de gasolina.
Estou farta dessa tua roupa.
Max, vamos á melhor
loja de homem da cidade.
Não preciso de roupa
e não quero que ma compres.
Por que me negas um prazer?
Só quero que andes bem vestido.
E tens de mascar
pastilha elástica?
Não há como a flanela azul
para um homem.
Este, com uma fileira de botões.
Agora, um sobretudo.
De pêlo de camelo.
- Trajes de cerimónia?
- Não preciso de smoking.
Claro que precisas. Um smoking,
uma casaca e um fraque.
- Uma casaca? Isso é ridículo!
- É para a passagem do ano.
- Os trajes de cerimónia?
- Por aqui, minha senhora.
Aqui tem pêlos de camelo.
Mas veja este. É vicunha.
- É mais caro, naturalmente.
- O pêlo de camelo serve.
Já que é a senhora que paga,
por que não leva o de vicunha?
Na última semana de Dezembro,
a chuva começou a cair.
Muita chuva. Um exagero,
como tudo na Califórnia.
Entrou pelo telhado do meu quarto
por cima da garagem.
Ela mandou o Max
instalar-me na casa grande.
A ideia não me agradou muito.
Só tinha momentos de privacidade
naquele quarto.
Mas era melhor do que dormir
de gabardina e galochas.
- De quem era este quarto?
- Era o quarto do marido.
Melhor dizendo, dos maridos.
Madame casou três vezes.
Deve ser deste que se avista Catalina.
O dia é que não é propício.
Que se passa com esta porta?
Não tem fechadura.
Nesta casa, não há fechaduras.
Porquê?
Deve haver uma razão.
- Foi sugestão do médico.
- Que médico?
O médico de Madame. Por causa
dos momentos de melancolia.
Houve algumas tentativas
de suicídio.
Todo o cuidado é pouco.
Nada de soporíferos nem de lâminas.
Desligámos o gás
no quarto de Madame.
Porquê? A carreira?
Foi bem sucedida, não foi esquecida.
- Recebe cartas de admiradores.
- Não olhe muito para os carimbos.
É você quem as envia.
É isso, Max?
Vou passar a ferro
o seu traje de cerimónia.
Não se esqueceu da festa
de passagem de ano de Madame?
Não. As Figuras de Cera
vêm todas, certamente.
Não sei dizer.
Madame é que tratou de tudo.
Lá estava ele.
O quarto dela,
todo cetim e folhos.
E a cama,
qual barca dourada.
O cenário perfeito para uma rainha
do mudo. Pobre infeliz...
Continuava a acenar a um desfile
que já passara há muito tempo.
Foi na festa de passagem de ano que
descobri o que ela sentia por mim.
Fui um idiota, por não pressentir
o que se avizinhava.
Aquela revelação
triste e embaraçosa.
Joe!
Que aparência divinal!
Vira-te.
- Por favor...
- Vá lá.
Perfeito! Que ombros magníficos!
Adoro este corte.
São chumaços. Não te iludas.
Vestir-me bem
era usar o meu fato azul-escuro.
Não gosto deste botão de colarinho.
Quero uma pérola magnífica.
Digo-te já que não uso brincos.
- Engraçadinho! Vamos tomar algo.
- Não esperamos pelos outros?
Max, champanhe.
Cuidado, o chão escorrega.
Mandei encerá-lo.
À nossa. O chão era de madeira,
mas mandei substituí-lo.
O Valentino dizia que não havia
como a tijoleira para o tango. Anda.
- Não rivalizo com o Valentino.
- Limita-te a seguir-me.
- Não te inclines tanto para trás.
- Essa coisa faz cócegas.
Faz?
- São 22:15. A que horas vêm eles?
- Quem?
- Os outros convidados.
- Não há outros.
Não partilharemos esta noite
com mais ninguém. É só nossa.
- Oh?
- Aperta-me mais.
Está bem.
Quando soar a meia-noite, atiramos
taças de champanhe á cabeça do Max?
- Achas tudo muito divertido?
- Um bocado.
Passou uma hora.
Sentia-me preso, como o cigarro
na geringonça no dedo dela.
Vai ser um ano maravilhoso.
Vamos divertir-nos imenso.
Encho a piscina ou abro a casa de
Malibu e ficas com o mar só para ti.
Quando acabarmos o filme, compro-te
um barco e vamos para o Havai.
Não vais comprar-me mais nada.
Não sejas tonto.
Toma. la dar-ta á meia-noite.
Não posso aceitar.
Já me compraste coisas de mais.
Cala-te. Sou rica, mais rica do que
esta gentinha nova de Hollywood.
- Tenho um milhão de dólares.
- Bom proveito.
Tenho prédios, tenho petróleo
em Bakersfield, sempre a jorrar.
Serve para nós comprarmos
o que quisermos.
- Pára de falar em nós!
- Que bicho te mordeu?
Que direito tens sobre mim?
Que direito? Queres que te diga?
Já pensaste que posso ter
a minha vida, uma mulher que amo?
Quem?
Alguma criada ou figurante?
Eu não sirvo para ti.
Tu precisas de um Valentino,
de alguém importante.
Tu não queres é que eu te ame.
Confessa. Confessa!
Eu não sabia para onde ia.
Tinha era de sair dali.
Precisava de ver gente da minha
idade. Precisava de ouvir risos.
Lembrei-me do Artie Green.
De certeza que havia uma festa
de passagem de ano em casa dele.
Argumentistas sem trabalho,
compositores sem editora,
actrizes tão novinhas
que ainda iam em conversas.
Uns miúdos que não se ralavam
enquanto tivessem bom humor.
Hollywood não nos tem tratado bem
Piscina é que a gente não tem
De vestir não há á mão-cheia
E o que ganhamos é tuta-e-meia
- Olá, Joe.
- Tom.
- Como vais?
- Olá, Joe.
- Olhem o Joe Gillis!
- Olá, Artie.
Por onde tens andado? la dando
parte de ti como desaparecido.
Todos conhecem o Joe Gillis, famoso
argumentista, traficante de urânio
e pessoa altamente suspeita.
- Dá-me o sobretudo.
- Por enquanto, não.
- Mas vais ficar?
- A ideia é essa.
Então, tira-o.
Isto é o quê? Vison?
Caramba, a quem o pediste emprestado?
Ao Adolphe Menjou?
- Quase.
- Não estás metido no contrabando?
- O bar?
- Anda.
- Bela festa.
- Sensacional.
Chamam-me a Elsa Maxwell
dos assistentes de realização.
Calma aí com o ponche.
São só três bebidas por cabeça.
- Falsifiquem o resto.
- Posso ficar algum tempo?
- Claro. Isto dura toda a noite.
- Posso cá ficar umas semanas?
- Temos uma vaga no sofá.
- Fico com ela.
Já mando alguém tratar-te das malas.
Assina aqui o registo.
- Olá, Sr. Gillis.
- Olá.
- Conhecem-se?
- Betty Schaefer. O Sheldrake?
- Claro. "Jogo Viciado".
- Calma aí.
Esta é a mulher que amo.
Que história é essa?
Ela é uma admiradora
da minha obra.
- Ficou ofendido...
- Onde está o telefone?
Mesmo á entrada da saleta.
Quando acabar,
posso fazer uma chamada?
- Esqueceu-se disto.
- Obrigado.
- Andava a ver se o encontrava.
- Para reaver a faca que me espetou?
Sentia-me culpada e resolvi ver
alguns dos seus argumentos.
- Que querida...
- Há um "Janela" qualquer coisa.
- "Janelas Escuras". Gostou?
- Não. Tirando seis páginas.
Tem um flashback...
Onde podemos conversar?
Que tal na saleta?
Joe, cedi-te o sofá,
não a namorada.
Estamos a falar de trabalho.
Parece que houve uma ínfima parte
do meu argumento que lhe agradou.
O flashback no tribunal,
quando ela revela que foi professora.
- Tive uma professora assim.
- Talvez por isso seja bom.
- É verdadeiro e comovente.
- Quem quer essas coisas?
Deixe-se disso.
Tem interesse.
- Começo já. Arranje-me papel.
- A sério. Tenho umas ideias.
Eu também. É a passagem do ano.
Vamos aproveitá-la.
Podíamos fazer uma regata
de barquinhos de papel.
- Ou abrir o *** com toda a força.
- E se conquistássemos a cozinha?
- Tem fome?
- Fome?
Depois de doze anos na selva,
estou morto de fome, Lady Agatha.
- Morto por um ombro alvo.
- Phillip, está louco.
Anseio pela frescura
dos seus lábios.
Já pode telefonar.
Não, Phillip. Temos de ser fortes.
Ainda usa uniforme.
E o telefone já está livre.
Está bem.
Receio perdê-la.
Não me perderá.
Vou buscar mais desta zurrapa.
- Fica á minha espera?
- Com um coração palpitante.
A vida pode ser maravilhosa.
Max, fala o Gillis.
Quero que me faça um favor.
Desculpe, mas não posso falar.
Claro que pode. Ponha-me a roupa
na mala. A que eu já tinha.
- E a máquina. Eu mando buscar.
- Não posso. O médico está cá.
Que médico? Que se passa?
Madame foi buscar a sua navalha
e cortou os pulsos.
O quê? Max! Max!
Já tenho a receita.
Rebuçados para a tosse
dissolvidos em sumo de uva morno...
Joe!
Feliz Ano Novo!
- Como está ela?
- Está no quarto.
Não corra. Os músicos
não podem saber o que aconteceu.
Vai-te embora.
Que idiotice foi esta?
Apaixonar-me por ti
é que foi uma idiotice.
Teria dado uns belos cabeçalhos.
"Grande Estrela Mata-se
por Escritor Desconhecido".
As grandes estrelas
são muito orgulhosas.
Vai-te embora.
Vai ter com a tua namorada.
Inventei isso,
por achar que era tudo um erro.
Não queria magoar-te.
Foste boa para mim.
És a única pessoa nesta maldita cidade
que foi boa para mim.
Então, agradece-me e vai-te embora.
Vai!
Só quando me prometeres
que terás juízo.
Voltarei a fazê-lo!
Voltarei a fazê-lo.
Feliz Ano Novo, Norma.
Feliz Ano Novo, querido.
- Está lá.
- Fala de Crest View 51733?
Desculpe incomodar outra vez,
mas preciso de falar com o Sr. Gillis.
- Ele não está.
- Onde poderei encontrá-lo?
- Talvez alguém possa dizer-me...
- Ninguém aqui pode informá-la.
E agradeço que não volte a ligar.
Max!
Quem era, Max? Que queriam?
Nada, Madame. Era a perguntar
por um cão desaparecido.
O nosso número deve ser parecido
com o do canil.
Espera. Tira o carro da garagem
e entrega o argumento na Paramount,
nas mãos do Sr. DeMille.
- Perfeitamente, Madame.
- Vais mandá-lo ao DeMille?
- Vou. Chegou o dia.
A minha astróloga leu o horóscopo
do DeMille e o meu.
- Leu o argumento?
- Ele é Leão e eu sou Escorpião.
Marte está em trânsito
em Júpiter.
Hoje é o dia da maior conjunção.
Vira-te, querido. Eu seco-te.
Os argumentos não se vendem
por cartas de astrólogos.
Não vendo só o argumento.
Vendo-me a mim.
O DeMille disse sempre
que eu era a sua maior estrela.
Quando, Norma?
Já foi há uns anos.
Mas estou melhor do que nunca.
Sabes porquê?
Porque nunca fui tão feliz.
Uns dias depois, fomos jogar bridge
a casa de uma das Figuras de Cera.
Ela ensinara-me a jogar bridge,
assim como alguns passos de tango
e que vinhos beber
com que peixes.
Aquele idiota esqueceu-se
de encher a minha cigarreira.
- Tira um dos meus.
- São horríveis. Fazem-me tossir.
Encoste ali á frente, Max.
Eu vou comprar.
És um amor.
Dê-me um maço
daqueles cigarros turcos... Abdullas.
Mãos no ar, Gillis,
ou mato-te.
Olá, Artie.
Miss Schaefer...
- É um prazer vê-lo.
- Com que então, abandonaste-nos.
Desculpa lá aquilo,
mas fui ter com um amigo doente.
Alguém importante,
com um cálculo renal de 10 quilates?
Pára com isso, Artie.
Por onde andou?
- Tenho óptimas notícias para si.
- Não me pergunte por onde andei.
Falei para o seu agente,
para o sindicato...
Até que me deram
um número de Crest View.
Uma pessoa com sotaque estrangeiro
rosnava-me sempre que não estava,
que não sabiam quem era.
Não me diga...
Quais são as boas notícias?
- O Sheldrake gostou da professora.
- Que professora?
A de "Janelas Escuras".
Ele acha que tem potencialidades.
- Onde está o dinheiro?
- Onde está o argumento?
Eu dei umas ideias.
- Mas têm de ser trabalhadas.
- Já receava isso.
Tenho 20 páginas de notas
e a personagem masculina.
Arranjam muitas tramas, para porem
mais um assistente de realização?
Cala-te. Escrevíamos
um argumento em duas semanas.
Deixei de escrever sem garantias.
- Mas já está meio vendido.
- Aliás, deixei de escrever.
- Sr. Gillis, se faz favor...
- Vou já.
O sotaque! Ele está a soldo
de um governo estrangeiro.
- Esses teus botões de punho...
- Tenho de ir.
- Grato por pensar na minha carreira.
- Trata-se da minha carreira.
Queria aproveitar a oportunidade.
Não quero ser revisora toda a vida.
Quero escrever.
- Lamento se a prejudiquei.
- E não foi pouco.
Adeus.
- Demoraste séculos!
- Encontrei uns conhecidos.
- Os meus cigarros?
- Os teus?
Norma, andas a fumar de mais.
Se ela desconfiava
que eu me aborrecia,
dava um espectáculo
só para mim.
As Variedades Norma Desmond.
O primeiro número era sempre
a beldade em fato de banho.
Ainda estou a ver-me na fila.
A Marie Prevost, a Mabel Normand...
A Mabel passava a vida a pisar-me.
Que se passa?
Por que estás tão sério?
Não se passa nada. Estou
a divertir-me imenso. Faz mais.
Está bem. Dá-me isso, para eu fazer
um bigode. Fecha os olhos.
A verdade é que se passava
algo comigo.
Estava a pensar na namorada
do Artie, aquela Miss Schaefer.
Igual a todos os argumentistas
recém-chegados a Hollywood,
cheios de ambição,
desejosos de ver o nome na tela:
; ; Argumento de; ;,
; ; Baseado na história de... ; ;
O público não sabe
que alguém escreve os filmes.
Pensa que os actores
vão inventando os diálogos.
Abre os olhos.
- Chamam-na ao telefone.
- Não me interrompas.
- É da Paramount.
- É de onde?
É do estúdio da Paramount.
Já acreditas? Eu disse-te
que o DeMille ia aceitar logo.
Não é o Sr. DeMille,
é um tal Gordon Cole.
- Diz que é muito importante.
- Claro que é.
A ponto do DeMille
me falar pessoalmente.
Mandar um assistente telefonar-me!
Diz que estou ocupada e desliga.
Perfeitamente, Madame.
E esta?
Fizemos doze filmes juntos.
Os maiores êxitos dele!
- Talvez esteja em filmagens.
- Conheço esse truque!
Ele quer depreciar-me,
reduzir o meu preço.
Esperei 20 anos por este telefonema.
Ele que espere até eu estar pronta.
Três dias mais tarde,
ela estava pronta.
Por incrível que pareça,
tinham voltado a ligar
da Paramount.
Ela maquilhou-se a preceito,
compôs-se com um véu
e saiu para falar pessoalmente
com o DeMille.
Vai perdoar-me, mas a sombra
do olho esquerdo não está bem.
Obrigada, Max.
Pouco barulho!
É para falar com o Sr. DeMille.
Abra o portão.
Ele está a filmar.
Tem hora marcada?
Não há necessidade disso.
- Trago a Norma Desmond.
- Norma quê?
- Norma Desmond.
- Jonesy!
Sim?
Olhem quem ela é! Miss Desmond!
- Como tem passado, Miss Desmond?
- Abre o portão.
- Com certeza, Miss Desmond.
- Não podem entrar sem autorização.
Miss Desmond pode. Abre.
- Onde está o Sr. DeMille?
- No estúdio 18, Miss Desmond.
Obrigada, Jonesy.
E ensina maneiras ao teu amigo.
Sem mim, não teria emprego,
porque a Paramount não existiria.
- É verdade, Miss Desmond.
- Vamos, Max.
Estúdio 18.
Avisem o Henry Wilcoxon.
Espalhem isso para eu ver.
Silêncio aí atrás.
A Norma Desmond
vem falar com o Sr. DeMille.
Iluminem o local,
para eu o ver bem.
Um pouco mais para trás.
Você aí ao fundo, afaste-se.
A Norma Desmond
vem falar com o Sr. DeMille.
A Norma Desmond?
- Espere.
- Harry Wilcoxon?
Saque da espada e levante
o pano que cobre o Sansão.
A Norma Desmond vem aí
para falar consigo, Sr. DeMille.
- A Norma Desmond?
- Ela deve ter cem anos.
Eu estaria bem arranjado.
Podia ser pai dela.
- Desculpe, Sr. DeMille.
- Deve ser por causa daquele guião...
Que hei-de dizer-lhe?
Posso despachá-la, dizendo-lhe
que está na sala de projecções.
Trinta milhões de admiradores
já o fizeram. Não chega?
- Eu não queria...
- Claro que não.
Não a conheceu quando era uma
rapariguinha adorável de 17 anos,
com mais coragem, espírito
e coração do que qualquer outra.
- Parece que ela era impossível.
- Só mais para o fim.
Uma dúzia de agentes
de publicidade frenéticos
dão cabo de uma pessoa.
Suspendam tudo.
- Não queres vir comigo?
- É o teu argumento, o teu filme.
- Boa sorte.
- Obrigada, querido.
Olá, rapariga.
- Olá, Sr. DeMille.
- É bom ver-te.
A última vez que o vi,
foi num local muito alegre.
Eu estava a dançar
em cima de uma mesa.
Como muitos de nós. O Lindbergh
tinha aterrado em Paris. Entra.
Norma, peço desculpa
por não te ter falado.
Acho bem.
Estou muito zangada.
- Como vês, estou ocupadíssimo.
- Isso não é desculpa.
- Leu o meu argumento, claro?
- Li.
Podia ter-me ligado, em vez de mandar
um dos seus assistentes fazer isso.
- Que assistente?
- Ora... Um tal Gordon Cole.
Gordon Cole?
Se não estivesse muito interessado
no argumento,
ele não me teria telefonado
dez vezes.
Estou a meio de um ensaio.
Senta-te na minha cadeira
e fica á vontade.
- Obrigada.
- Linda menina. Eu não demoro.
Traga-me um telefone
e ligue para o Gordon Cole.
Miss Desmond!
- Miss Desmond, sou eu, o Hog-eye.
- Olá, Hog-eye.
Deixe-me vê-la bem.
É a Norma Desmond.
A Norma Desmond!
- A Norma Desmond!
- Julguei que tivesse morrido.
- É um prazer vê-la.
- Bem-vinda. Recorda-se de mim?
Claro. Olá, Patsy.
- Conhece Miss Desmond?
- Muito prazer.
Gordon, fala o C. B. DeMille.
Ligou á Norma Desmond?
Sim, Sr. DeMille. Por causa
do carro dela, o Isotta Fraschini.
O motorista trouxe-o cá.
É ideal para o filme do Crosby.
- Queremos alugá-lo por uns tempos.
- Percebo.
Muito obrigado.
Hog-eye, desliga esse holofote.
Falei com o Gordon Cole.
Viu como eles se aproximaram?
Acontecem coisas estranhas
nesta profissão, Norma.
Espero que não tenhas perdido
o sentido de humor.
- Que tens, querida?
- Nada.
Nunca pensei como seria
voltar ao velho estúdio.
- Nunca pensei ter tantas saudades.
- Também tivemos saudades tuas.
Voltaremos a trabalhar juntos.
Faremos o nosso melhor filme.
- É disso que te quero falar.
- O argumento é bom, não é?
Tem coisas interessantes,
mas daria um filme muito caro.
Não me importa o dinheiro.
Quero voltar a trabalhar. É muito bom
saber que precisa de mim.
Nada me agradaria mais,
se fosse possível.
Não trabalho antes das 10
nem depois das 16h30.
- Estamos prontos, Sr. DeMille.
- Está bem.
Norma, por que não ficas a assistir?
O Cinema mudou muito.
Vamos lá.
Luzes!
Câmaras!
Acção!
Está a ver aquelas portas, Sr. Gillis?
O camarim de Madame era ali.
A fila inteira.
Não sobrava muito espaço
para o Wallace Reid.
Ele tinha uma casa enorme
sobre rodas.
Eu ficava no andar de cima. Ali,
onde diz Departamento de Revisão.
As minhas paredes
estavam forradas de couro preto.
Volto já.
É o carro esquisito de que
o Gordon Cole falou. Podemos ver?
Que tem de esquisito?
Se quiser aproveitar alguma coisa
de "Janelas Escuras", faça o favor.
Esta agora!
Entre e sente-se.
- A sério. Não faça cerimónia.
- Que lucra com isso?
Chocolates, se lhe pagarem bem,
ou o pé de um Óscar, se o ganhar.
Aceitaria, se conseguisse
fazer tudo sozinha.
- E aquelas ideias todas que tinha?
- Diga-me o que acha:
nada de psicologia barata,
de explorar a mente do assassino.
Os psicopatas têm imensa saída.
É sobre os professores,
as suas vidas vazias, a sua luta.
Ela dá aulas de dia
e ele dá aulas de noite.
Quando se conhecem...
- Não tenho tempo.
- Eu abrevio a história.
- Ela agora é sua.
- Não podemos trabalhar á noite?
Às 6 da manhã?
No mês que vem, estou livre.
- O Artie está fora.
- Que tem o Artie a ver com isto?
- Estamos noivos.
- Parabéns.
- Não podia arranjar melhor pessoa.
- Também acho.
Estão no Arizona,
a filmar um western.
Tenho as noites e os fins-de-semana.
Podemos trabalhar na sua casa.
É impossível. Não seja cobarde
e escreva a história.
- Odeio-o!
- E não a torne monótona.
Veja esta situação: ela dá aulas
de dia e ele de noite. Certo?
Não se conhecem, mas partilham
um quarto. É mais barato.
Dormem até na mesma cama.
Por turnos, claro.
Está a brincar?
Eu acho uma boa ideia.
- Eu também.
- Digo-lhe onde isso se encaixa.
- Adeus.
- Francamente...
Que se passa?
Descobri por que telefonam
tantas vezes da Paramount.
Não é Madame que querem.
Querem alugar o carro dela.
O quê?
Adeus, Norma.
Veremos o que se pode fazer.
Não estou preocupada.
Nada poderá deter a velha equipa.
A velha equipa... Sim.
- Adeus, minha querida.
- Adeus, Sr. DeMille.
- Então?
- Não podia ter corrido melhor.
Ele tem de acabar este filme,
mas o meu é o próximo.
Ligue ao Gordon Cole.
Diga-lhe que esqueça o carro dela.
Ele pode arranjar
um carro antigo noutro sítio.
Eu compro-lhe cinco carros antigos,
se for preciso.
Um exército de esteticistas
invadiu a mansão dela
em Sunset Boulevard.
Submeteu-se a uma série
implacável de tratamentos.
Como um atleta em treinos,
contava todas as calorias.
Deitava-se sempre ás nove da noite.
Estava firmemente decidida
a ficar pronta.
Pronta para aquelas câmaras,
que nunca filmariam.
- Querido, estás aí?
- Estou.
Não te vires.
Não tires os olhos do livro.
Vim só dar-te as boas-noites.
Não quero que me vejas.
- Não estou nada atraente.
- Boa noite.
- Perdi 225 gramas desde 3ª feira.
- Óptimo.
Estava preocupada com o pescoço.
Esta mulher faz milagres.
- Óptimo.
- É melhor deitares-te também.
- Vou ler mais um pouco.
- Saíste ontem á noite, não saíste?
- Por que perguntas?
- Porque sei.
Tive um pesadelo e chamei-te.
Onde estavas?
- Fui dar um passeio.
- Não foste. Levaste o carro.
Fui até á praia.
Queres que me sinta um prisioneiro?
Claro que não.
Só não quero que me deixes sozinha.
Estou a passar um momento difícil.
Tenho os nervos em franja.
Só te peço um pouco de paciência
e de carinho.
- Norma, eu não fiz nada.
- Claro que não.
Eu não deixaria.
Boa noite, querido.
Sim, eu fazia gazeta
todas as noites.
Como quando era garoto
e fugia de casa para ir ao cinema.
Agora, não era para ver um filme,
era para tentar escrevê-lo.
Aquela minha história,
que a Betty Schaefer desencantara,
martelava-me a cabeça.
Começámos a trabalhar juntos,
á noite, no estúdio deserto,
no minúsculo gabinete dela.
Recebi uma carta engraçadíssima
do Artie.
Tem chovido todos os dias
desde que chegaram ao Arizona.
Reescreveram o filme todo
e filmaram metade.
Agora, apareceu o Sol
e ninguém sabe quando voltam.
- Óptimo.
- Tenho imensas saudades dele.
- Óptimo é este diálogo. Vai resultar.
- Vai?
Principalmente
com música de fundo a abafá-lo.
- Às vezes, não te odeias?
- Constantemente.
A sério, isto está mesmo bom.
- É divertido escrever contigo.
- Obrigada.
SOU LOUCA PELO RAPAZ.
NORMA
- Quem é a Norma?
- Quem?
Desculpa. Não costumo bisbilhotar
as cigarreiras das pessoas.
Isso... É uma amiga minha.
Uma senhora de meia-idade,
muito tonta e generosa.
Isto é de ouro maciço.
Dei-lhe uns conselhos
sobre um argumento idiota.
A velha história. Ajudas uma velhinha
a atravessar a rua.
Ela é multimilionária
e deixa-te o dinheiro todo.
O mal dos revisores
é que sabem as histórias todas.
Revê a página 10, enquanto esperas
que a água ferva. Certo?
Certo.
Por vezes,
quando emperrávamos,
dávamos uma volta
pelo estúdio adormecido,
falando pouco, passeando
pelas ruas, entre os estúdios,
ou no meio dos cenários que
preparavam para o dia seguinte.
Foi num desses passeios
que me falou do nariz dela.
Olha para esta rua.
Tudo de cartão, oco, falso,
tudo feito com espelhos.
Gosto desta rua
acima de todas as outras.
Talvez por ter brincado aqui,
quando era pequena.
Foste uma actriz de palmo e meio?
Não. Nasci a dois quarteirões daqui,
na Lemon Grove Avenue.
O meu pai era chefe electricista
e a minha mãe ainda é cá costureira.
- Segunda geração?
- Terceira.
A minha avó foi dupla da Pearl White.
É uma família ligada ao Cinema.
Esperavam que eu fosse
uma estrela.
Durante dez anos, tive lições
de representação, dicção e dança.
O estúdio fez-me um ***.
Não gostaram do meu nariz.
Entortava para este lado.
Fui ao médico e corrigi-o.
Deliraram com o meu nariz, mas
não com o meu modo de representar.
- Bom trabalho.
- Pudera! Custou-me 300 dólares.
- É triste.
- Não, não é.
Vi como as coisas eram. Comecei
pelo correio e agora sou revisora.
Confessa que, de noite, choras
pelos grandes planos e pelas estreias.
Nunca. Que mal tem
estar do outro lado das câmaras?
- Até é mais divertido.
- Viva a Betty Schaefer!
- Vou beijar esse teu narizinho.
- Se fazes favor.
Cheiras muito bem.
- Deve ser o meu champô novo.
- Não é champô.
É um cheiro a lenços de linho
acabados de lavar.
Como um carro novinho em folha.
- Quantos anos tens?
- 22.
Que sorte!
Não há nada como ter 22 anos.
Se queres acabar o argumento,
sugiro que te afastes de mim.
Se vires que me aproximo,
dá-me com um sapato na cabeça.
Agora, voltemos ao trabalho,
via Washington Square.
Que se passa, Max?
Quer lavar o carro?
Ou é espião nas horas vagas?
Tenha cuidado a atravessar o pátio.
Madame pode estar á espreita.
E se eu entrar pelas traseiras
e me despir ás escuras?
Não pergunto
aonde vai todas as noites.
Por que não pergunta?
Estou a escrever um argumento.
Ando muito preocupado
com Madame.
Claro que anda.
E nós não a ajudamos,
alimentando-a de mentiras sem fim.
Prepara-se para um filme...
- E quando ela descobrir?
- Nunca descobrirá.
É essa a minha função,
há já muito tempo.
Eu descobri-a
quando ela tinha 16 anos.
Fiz dela uma estrela
e não deixarei que seja destruída.
- Fez dela uma estrela?
- Realizei os seus primeiros filmes.
Naquele tempo, havia três jovens
realizadores prometedores.
D. W. Griffith, Cecil B. DeMille
e Max von Mayerling.
E ela fez de si um criado.
Eu é que pedi para voltar,
por humilhante que pareça.
Podia ter continuado
a minha carreira,
mas achava tudo intolerável
depois de ela me deixar.
Eu fui o primeiro marido dela.
Já cá estás, Joe.
Quando chegaste?
Joe, onde estiveste?
É uma mulher?
Eu sei que é. Quem é ela?
Por que não hei-de perguntar-te?
Preciso de saber.
HISTÓRIA DE AMOR SEM TÍTULO
DE JOSEPH C. GILLIS
E BETTY SCHAEFER
Que foi?
Betty, acorda.
Por que me olhas assim?
Desculpa.
Que se passa contigo hoje?
- O que é?
- Surgiu um problema.
- Não quero falar dele.
- Porquê?
Porque não.
Que é que ouviste?
Vamos, diz-me.
É a meu respeito?
Betty, não adianta fugir.
Encaremos isso, seja lá o que for.
- Recebi um telegrama do Artie.
- Do Artie? Que aconteceu?
Quer que eu vá ao Arizona.
Diz que casar lá
custa apenas dois dólares.
Poupava-nos a lua-de-mel.
Por que não vais? Acabamos
o argumento até quinta-feira.
Não chores.
Vais casar, é o que tu querias.
Já não quero.
- Porquê? Não gostas do Artie?
- Claro que gosto. Gostarei sempre.
Mas já não estou
apaixonada por ele.
Que aconteceu?
Tu apareceste.
Só quando voltei á minha prisão
é que encarei a realidade.
Tinha o futuro da Betty Schaefer
na palma da minha mão.
A Betty Schaefer, noiva
do Artie Green, um tipo fantástico.
E ela estava apaixonada por mim.
Por mim.
Ela era uma tonta, por não ver
que a minha situação era suspeita.
Eu era um canalha,
por não lhe ter dito.
Mas não podemos dizer essas coisas
a alguém que amamos loucamente.
Talvez não fosse preciso. Talvez
eu conseguisse escapar á Norma.
Talvez pudesse libertar a minha vida
daquela imundície toda.
Fala de Gladstone 9281?
Posso falar com a Betty Schaefer?
Já deve ter chegado.
Betty! É outra vez
aquela mulher esquisita.
Que vem a ser isto?
Fala a Betty Schaefer.
Desculpe por falar tão tarde,
mas sinto que é o meu dever.
Trata-se do Sr. Gillis.
Conhece-o, não é verdade?
Que sabe exactamente
a respeito dele?
Sabe onde vive? Sabe como vive?
Sabe do que vive?
Quem é a senhora? Que quer?
Que tem a ver com isso?
Miss Schaefer,
estou a fazer-lhe um favor.
Quero poupar-lhe muito sofrimento.
Deve ser muito nova para suspeitar
que existem homens assim.
Não sei o que ele lhe disse,
mas não vive com familiares.
Nem com amigos,
no sentido habitual do termo.
Pergunte-lhe.
Pergunte-lhe de novo.
Sim, Betty, pergunta-me de novo.
Fala o Joe.
Joe? Onde estás?
Que se passa?
Melhor ainda, vem até cá
ver com os teus próprios olhos.
A morada é
Sunset Boulevard, 10086.
Não me odeies, Joe.
Fi-lo porque preciso de ti.
Preciso de ti mais do que nunca!
Olha para mim.
Vê as minhas mãos, a minha cara,
as minhas olheiras.
Como posso trabalhar
debaixo desta tortura?
Não sabes o que tenho sofrido
nestas últimas semanas!
Comprei um revólver. Pus-me á frente
do espelho, mas não tive coragem.
Não fiques aí parado
a odiar-me.
Grita comigo, bate-me,
mas não me odeies!
Diz que não me odeias, Joe.
Este é o 10079, Connie.
Deve ser ali.
- Betty, deixa-me ir contigo.
- Não é preciso.
Amo-te, Joe.
Amo-te, Joe.
Amo-te.
Que vais fazer, Joe?
Que vais fazer?
Deixe, Max. Eu abro.
Olá, Betty.
Estou com medo.
É alguma coisa horrível?
Entra.
Já tinhas entrado num destes
velhos palacetes de Hollywood?
É da época em que ganhavam 18000
dólares por semana, sem impostos.
Cuidado, o chão escorrega.
O Valentino dançou aqui.
- É aqui que vives?
- É.
- De quem é esta casa?
- Dela.
- De quem?
- Olha á tua volta.
Se não te lembras da cara, já deves
ter ouvido falar da Norma Desmond.
- Era ela ao telefone?
- Uma bebida?
Há sempre champanhe e caviar.
- Por que me telefonou?
- Por ciúmes.
Já viste tanto bricabraque junto?
Ela mandou vir o tecto de Portugal.
Olha para isto.
Um cinema privativo.
Não vim para ver uma casa.
E a Norma Desmond?
É o que estou a tentar dizer-te.
Esta casa é enorme.
Tem oito quartos principais.
Uma banheira em cada quarto.
Há um salão de bowling na cave.
Ela sentia-se muito sozinha
e arranjou uma companhia.
É um esquema muito simples.
Uma mulher de idade rica.
Um homem mais novo,
a quem a vida não corre bem.
- Consegues perceber o resto?
- Não.
- Vou dar-te mais umas pistas.
- Não! Não ouvi nada disto.
Nunca recebi aqueles telefonemas
e nunca estive nesta casa.
Pega nas tuas coisas
e vamos embora.
Nas minhas coisas todas?
Os dezoito fatos, os sapatos feitos
por medida, as seis dúzias de camisas,
os botões de punho,
os chaveiros e as cigarreiras?
- Anda, Joe.
- Vou para onde?
Para um apartamento
que não posso pagar?
Vou escrever um argumento
que pode vender e não venderá?
- Se me amas, Joe.
- Tens de ver bem as coisas.
Estou aqui muito bem.
É um contrato a longo prazo.
Gosto assim. Talvez não seja
muito digno de admiração.
Bem, tu e o Artie
são dignos de admiração.
Não posso olhar mais para ti, Joe.
E se procurasses a saída?
Por aqui, Betty.
Felicidades, Betty. Podes acabar
o argumento a caminho do Arizona.
Quando tu e o Artie voltarem,
se lhes apetecer dar um mergulho...
...aqui está a piscina.
Obrigada, querido.
Obrigada, Joe.
Joe!
Posso entrar, Joe?
Já não estou a chorar.
Já estou calma.
Diz-me que não estás zangado.
Diz-me que está tudo como dantes.
Joe.
Que estás a fazer, Joe?
- Que estás a fazer?
- As malas.
- Vais deixar-me?
- Vou, Norma.
Não vais, não. Max! Max!
Obrigado por me teres deixado usar
estas belas roupas e os berloques.
- O resto está na gaveta de cima.
- É tudo teu.
Eu aceitaria, mas é muito chique
para trabalhar num jornal do Ohio.
Isto não é nada. Podes ter tudo
o que quiseres. Queres o quê?
Dinheiro?
Estarias a desperdiçá-lo.
Eu já não sirvo para o trabalho.
Não podes ir. Max!
Não consigo viver sem ti.
- Sabes que não receio morrer.
- Isso é um problema teu.
Pensas que inventei a história
da arma? Muito bem.
Vês? Não acreditaste em mim.
Julgas que não tenho coragem?
- Se desse uma boa cena...
- Não te importas.
Muitas pessoas irão importar-se!
Matar-te-ias para uma plateia deserta.
O público desapareceu há 20 anos.
- É mentira! Ainda me querem.
- Não.
- E o estúdio? E o DeMille?
- Ele quis poupar-te.
- O estúdio só queria o teu carro.
- O quê?
O DeMille não teve coragem
de te dizer. Nenhum de nós teve.
É mentira. Eles querem-me.
Recebo cartas todos os dias.
Diga-lhe, Max. Diga-lhe
que não vai haver filme nenhum.
As cartas dos admiradores
são escritas por si!
Isso não é verdade.
Max!
Madame é a maior estrela de todas.
Vou levar as malas do Sr. Gillis
para o carro.
Ouviste o que ele disse.
Sou uma estrela.
És uma mulher de 50 anos.
Vê se cresces.
Não é trágico teres 50 anos,
a menos que queiras fingir ter 25.
Sou a maior estrela de todas.
Adeus, Norma.
Ninguém deixa uma estrela.
É o que distingue uma estrela.
Joe! Joe!
Joe!
Joe!
As estrelas não têm idade,
pois não?
Foi aqui que vocês entraram.
Voltamos á piscina.
A que eu sempre quis.
Já é de madrugada e tiraram-me
mais de mil fotografias.
Depois, foram buscar uns podões
ao jardim e pescaram-me,
com muito jeitinho.
É curioso como nos tratam bem,
depois de mortos.
Recolheram-me como se fosse
uma cria de baleia
e começaram a verificar
os estragos, por ser da praxe.
A casa fervilhava de polícias,
repórteres, vizinhos, transeuntes...
A mesma agitação
da inauguração de um supermercado.
Até apareceram
os tipos das Actualidades.
Aqui estava uma notícia
com que todos podiam divertir-se.
Os impiedosos desconhecidos...
Que fariam eles á Norma?
Mesmo que fosse absolvida, alegando
crime passional, demência temporária,
os cabeçalhos acabariam com ela.
; ; Estrela Esquecida,
Uma Assassina;; .
; ; Actriz Envelhecida;; .
; ; Rainha da Tela de Outros Tempos;; .
O gabinete do médico-legista.
Quero falar com ele.
- Quem está na linha?
- Eu. Desligue.
Isto é mais importante.
É da redacção?
Fala a Hedda Hopper.
Estou no quarto
da Norma Desmond.
Não chame ninguém, escreva
directamente. Está pronto?
O dia desponta na casa do crime
e Norma Desmond,
estrela famosa do passado,
encontra-se em estado de choque.
Um muro de silêncio rodeia-a
no quarto de vestir da sua casa...
Foi uma discussão repentina?
Já tinha havido outras?
Se foi uma discussão,
como surgiu a arma?
Onde o conheceu?
De onde veio ele?
Odiava-o? Já tinha pensado
fazer algo semelhante?
Foi um caso de furto?
Apanhou-o a roubar alguma coisa?
- Chegaram os das Actualidades.
- Mande-os embora.
Não é altura
para câmaras de filmar.
Miss Desmond,
tem alguma coisa para nos dizer?
Câmaras?
O que é, Max?
- As câmaras chegaram.
- Chegaram?
- Diz ao Sr. DeMille que vou já.
- Que vem a ser isto?
É uma maneira de a fazer descer.
Vamos pôr o carro á porta.
Está bem.
- Está tudo pronto, Madame.
- Obrigada, Max.
Vão desculpar-me, mas tenho
de me preparar para a minha cena.
- Que se passa?
- Alguma declaração?
Já confessou?
- Está tudo a postos?
- Quase.
- As luzes estão prontas?
- Estão.
Calma! Calma!
Silêncio!
Luzes!
Pronta, Norma?
Qual é a cena? Onde estou?
Esta é a escadaria do palácio.
Sim, sim!
Lá em baixo
estão á espera da princesa.
Estou pronta.
Câmaras. Acção!
Afinal, as câmaras
sempre acabaram por filmar.
A vida, que pode ser estranhamente
misericordiosa, apiedou-se da Norma.
O sonho a que se agarrara com tanto
desespero apoderara-se dela.
Não posso continuar.
Estou demasiado feliz.
Sr. DeMille, importa-se que eu diga
algumas palavras? Obrigada.
Estou muito feliz por estar de novo
no estúdio, a rodar um filme.
Não imaginam como senti a vossa falta.
Não voltarei a abandonar-vos.
Depois de "Salomé",
faremos muitos outros filmes.
Isto é a minha vida. Será sempre.
Não existe mais nada.
Apenas nós, as câmaras
e aquelas maravilhosas pessoas
ali, no escuro.
Sr. DeMille, estou pronta
para o meu grande plano.