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MOSFILM
Quarta União Artística
Qual é o teu nome completo?
O meu nome é Luri Jari.
Donde vens?
Venho da cidade de Kharkov.
Onde estudas?
Estudo numa escola técnica.
Vamos tentar curar-te.
Olha só para mim.
Fita-me nos olhos.
De frente.
Vira-te de costas.
Concentra toda a tua atenção
na minha mão.
A minha mão puxa-te para trás.
Volta as mãos.
Concentra-te. Toda a tensão passa
para as tuas mãos.
As tuas mãos estão tensas.
Concentra toda a tua vontade,
todo o teu irresistível desejo
de vencer nas tuas mãos.
As tuas mãos estão
cada vez mais tensas.
As tuas mãos estão tensas. Mais.
Olha para os teus dedos.
Os teus dedos estão tensos.
Toda a tensão que tens aqui
passa para os teus dedos.
Olha para as tuas mãos.
Lura, concentra-te.
Quando eu disser ,
as tuas mãos ficarão imobilizadas.
Um, dois, três!
As tuas mãos estão imóveis.
Não podes mexer as mãos.
Fazes um esforço para mexer
as mãos, mas não consegues.
Custa-te muito fazer um movimento.
Quando eu anular esta tensão,
falarás alto e bom som!
E assim falarás inteligivelmente
durante toda a tua vida.
Olha para mim.
Eu tiro a tensão das tuas mãos
e da tua fala.
Um, dois, três!
Alto e bom som:
O ESPELHO
Margarita TEREKHAVA
nos papéis da Mãe e de Natália
Argumento: Aleksandre MICHERINE
e Andrei TARKOVSKI
Realização - Andrei TARKOVSKI
Fotografia -
Gueorgui RERBERG
Cenários -
Nikalai DVIGUBSKI
Música - Eduard ARTEMIEV
Som - Semion LITVINAV
Legendagem em português -
Alexandre BAZINE
No filme participaram:
I. DANILTSEV,
L. TARKOVSKAIA, A. DEMIDAVA
A. SALANITSINE
N. GRINKO
T. AGARODNIKAVA
I. NAZARAV, O. IANKOVSKI
F. IANKOVSKI,
I. SVETNIKAV, T. RECHETNIKAVA
A voz do autor -
I. SMAKTUNOVSKI
Versos - Arseni TARKOVSKI
ditos por ele mesmo.
Trechos musicais de Bach, Pergolése, Purcell
O ESPELHO
O caminho, que começava na estação,
cruzava a aldeia de Ignatieva
e virava um pouco antes de chegar
à nossa pequena quinta,
onde, antes da guerra, passávamos
todos os Verões.
Depois, adentrava-se no cerrado
carvalhal e corria para Tomchina.
Qualquer viajante via-se da nossa casa
mal alcançava o arbusto
que se erguia no meio do campo.
Se, ao atingir o arbusto, derivava
para a nossa casa, era o meu pai;
se não o fazia, é que
não era o meu pai,
e nunca viria.
Desculpe, é o caminho para Tomchina?
Não devia ter virado no arbusto.
- Mas... porquê...
- Porquê, o quê?
O que faz aqui sentada?
- Moro aqui.
- Onde? Na cerca?
Que quer saber, afinal? Como se vai para
Tomchina ou onde moro?
Trago todos os instrumentos,
mas esqueci-me da chave.
Não tem um prego
ou uma chave de parafusos?
Não tenho pregos.
Porque está tão tensa?
Dê-me a sua mão. Sou médico.
Não me deixa trabalhar.
Quer que chame o meu marido?
Não tem marido nenhum.
Não tem a aliança.
Aliás, hoje, poucos usam aliança.
Talvez só os velhos.
Não me empresta um cigarro?
Porque está tão triste?
E porque está o senhor tão animado?
É um prazer cair com uma mulher
tão atraente.
Caí, e que vejo eu...
Raízes, arbustos...
Nunca lhe pareceu que
as plantas também sentem, pensam,
raciocinam até?
As árvores, a aveleira...
- Isto é um amieiro.
- Tanto faz.
Estão calmos. Livres da correria,
da azáfama. Também das banalidades.
Tudo isto só a nós respeita.
Porque não acreditamos
na natureza que está em nós.
Sempre desconfiados, agitados.
Sempre sem tempo para pensar.
Não lhe parece que...
Isso não me ameaça. Sou médico.
E ?
Foi invenção de Tchekhov!
Venha visitar-nos a Tomchina.
As nossas festas são boas.
Tem sangue!
- Onde?
- Atrás da orelha!
Cada um dos nossos encontros
Foi para nós uma aparição divina -
Em todo o mundo sós.
Audaciosa e ágil qual passarinho.
Pela escada abaixo corrias,
Como uma vertigem, por dois degraus
pulando e o lilás molhado perfurando,
E no teu feudo, atrás do espelho,
te escondias
A noite chegou,
E com um obséquio me agraciou,
O portão de altar abriu,
E na escuridão a tua divina nudez
luziu.
- disse à visão
Que para mim se inclinou.
Era ousada a minha bendição
Que me acordou,
pois estavas a dormir.
E o lilás sobre a mesa,
te estendeu a flor da sua mão,
Para com ela o teu rosto cobrir.
As tuas pálpebras dormiam, calmas,
Enquanto
Na esfera de cristal pulsavam rios,
E montes fumegavam,
E mares a costa fustigavam.
E a esfera, tinhas tu na mão,
Deitada na tua soberania.
E, Deus meu! Tu eras minha!
Acordaste, e o vocabulário corrente
Da Humanidade mudou,
Encheu-se de força viva a fala
mundana
E a palavra
Um novo significado conquistou:
Rainha, minha dama!
No mundo mudou tudo, até
As coisas simples: A bacia e a bilha
- quando,
Qual sentinela, em sólidos estratos,
A água fluiu, nos separando.
Desconhecemos a força que nos uniu,
E só sabemos que as cidades,
por um milagre construídas,
Qual miragem, perante nós abriu;
A hortelã caía aos nossos pés,
E pássaros nos acompanharam
com timidez
Os peixes da água saltando
nos saudaram,
Os céus aos nossos olhos se rasgaram,
Quando o destino nos foi seguir a pista,
Qual um maníaco de lâmina em riste.
Ai, meu Deus! Dúnia!
Que é, Pacha?!
Um incêndio, mas não berrem.
Põe-te a pau!
Vitka, não estará lá?
E se ele ardeu?
Onde está Klanka?
O quê?
Papá!
- Aleksei?
- Olá, mãe.
Que tens com a voz?
Nada de especial. São anginas.
Há três dias que não falo com ninguém.
Até gostei de andar calado.
As palavras não têm capacidade
de traduzir sentimentos.
As palavras são moles.
Sonhei contigo.
Como se eu fosse uma criança...
A propósito, quando nos abandonou
o meu pai?
Em 1935. Porquê?
E o incêndio? Lembras-te?
Quando ardeu o palheiro?
Também em 35.
Deixa-te de perguntas tolas.
Sabes... Liza morreu.
Trabalhei com ela na tipografia.
- Meu Deus! Quando?
- Hoje de manhã. Às 7 horas.
E que horas são? Que dia é hoje?
- São quase seis.
- Da manhã?
Que se passa contigo? Da tarde.
Mãe, porque anda a gente sempre
à bulha?
Perdoa-me, se tenho alguma culpa.
.
A seguinte: .
Que pressa é essa?
Bom dia.
Onde estão as provas que eu li?
Sei lá. Um momento.
Estão aqui, lelizaveta Pavlavna.
Marússia, que aconteceu?
Há alguma coisa com as provas?
Na edição oficial? Calma!
Vê no armário.
Não deve haver problema.
É a edição oficial!
Nenhuma edição deve sair com gralhas.
Cala-te, idiota.
- Que aconteceu?
- Nada de importante.
Só quero ver, conferir...
Pareceu-me...
Tem calma.
Quero verificar sozinha.
Toda a gente tem pressa!
Acha que eu tenho medo?
Claro, o medo é para os outros,
não é?
Que trabalhem, que tenham medo.
Então, que aconteceu?
Se já aconteceu, nada a fazer.
Estivemos a imprimir toda a noite...
Esperei-te ontem toda a manhã,
Sabiam eles que tu não vinhas.
Mas o tempo, sabes?
Estava uma maravilha!
Mas hoje, quando estás aqui,
Fizeram eles um dia escuro,
Com a chuva.
E pelos ramos frios as gotas deslizam,
E nada, nem as palavras, nem o lenço
as paralisam...
Então? Tudo bem?
Tudo bem... Seria uma gralha clamorosa.
Porque estás a chorar?
Até vi a palavra impressa.
Qual palavra
Ora, essa!
É álcool. É pouco,
mas vem a calhar.
Estás toda molhada, espantalho!
De facto, estou toda molhada.
Vou tomar um banho. Onde está
o meu pente?
Sabes quem me fazes lembrar?
- Quem?
- Maria Timafeievna.
Que Maria Timafeievna?
Toma. Querias o pente.
Que Maria Timafeievna? Diz-me!
A irmã do capitão Lebediakine.
Não te lembras?
Estás assombrosamente parecida
a essa tal Maria Timafeievna.
Em que sentido?
Dostoievski é sempre Dostoievski...
Quer o queiras quer não.
O quê?
Mas, em vez de lhe levar água,
o irmão batia-lhe.
Não compreendo. Explica.
Toda a tua vida é traz água!
Arremedos de independência.
Quando não estiveres de acordo
com alguma coisa,
fazes de conta que essa coisa
não existe.
Que estás para aí a dizer?!
Admiro a paciência do teu ex-marido.
Eu teria fugido muito antes.
Não me lixes!
Nunca aceitas a culpa.
Até a mais óbvia! Nunca!
Tu própria é que criaste esta situação!
Se o teu caro marido
não caiu neste estado
absurdo, emancipado,
é porque deu à sola a tempo.
Farás os teus filhos infelizes.
Podes ter a certeza.
Chega de palhaçada!
Vem cá, Macha!
Deixa-me em paz!
Ao passar metade da vida em terra,
Perdi-me nas sombras da floresta...
Sempre disse que te pareces
com a minha mãe.
Foi por isso que nos separámos?
Ignat começa a parecer-se contigo!
Isto horroriza-me.
Horroriza-te, porquê?
Nunca soubemos falar como gente
civilizada.
Mas quando recordo a infância e a
minha mãe,
vejo-a sempre com o teu rosto.
Por que será?
De resto, eu sei por quê.
Tenho igual pena de ambas:
De ti e dela.
Porquê?
Ignat, deixa o copo em paz!
Nunca te darás bem com ninguém.
Pode ser que não.
Não leves a mal, mas estás convencido,
não sei por que razão,
que o próprio facto da tua
existência ao lado de alguém,
é uma dádiva do céu.
Não fazes mais que exigir.
É porque fui educado por mulheres.
Se não queres que Ignat seja assim,
casa-te o mais depressa possível.
- Com quem?
- Não sei.
Ou dá-me o Ignat.
Porque não fizeste as pazes com a tua
mãe? A culpa foi tua.
Qual culpa?
Ela julga saber melhor do que eu
como eu devo viver
e onde está a minha felicidade.
Quanto à minha mãe, sinto isso
mais do que tu.
Sentes o quê?
Estamos a divergir,
e não há nada que eu possa fazer.
Natália, distrai-o!
Quer falar de Espanha.
Vai dar mais uma bronca.
Queria pedir-te uma coisa...
Estamos em obras.
Ignat queria viver contigo uma semana.
Fico muito contente.
Que está ele a contar?
Está a representar o famoso
matador Palomo Linares.
O que mais o impressionou
foram as despedidas.
A cidade em peso despediu-se dele,
cantando e dançando.
A minha mãe não foi despedir-se de mim
porque estava doente.
O meu pai estava triste e soturno.
Dei-me conta, então, de que estávamos
a pensar a mesma coisa:
Voltaríamos a ver-se?
Estás a gozar comigo?
Ensinei-te durante tanto tempo,
e nunca dançaste nada.
De repente, começas a dançar muito bem!
Estive em Espanha
e não compreendi nada.
Gostaria de voltar para Espanha?
Não posso, o meu homem é russo.
E os filhos também são russos.
Eu falo com ela!
Ignat!
Anda cá! Vou-me embora.
É sempre a mesma coisa,
sempre com falta de tempo...
Não arrumes, dá-mo assim mesmo!
- Senti uma descarga.
- Que descarga?
Tenho a sensação de ter vivido isto...
Porém, estou aqui pela primeira vez.
Passa-me o dinheiro e deixa-te
de fantasias.
Limpa aqui.
Não toques em nada.
Diz a Maria Nikalaievna
para ela me esperar.
Entra. Bom dia.
Mais uma chávena para o moço.
Por favor, vai buscar o caderno que
está na terceira estante.
Lê a página marcada com a fita.
Lê o que está assinalado
a lápis vermelho.
Não é isso!
Da carta de Puchkine a Tchaadaiev.
Aos 19 de Outubro de 1836
Abre.
Desculpa, enganei-me na porta.
Ignat, como estás?
Maria Nakalaievna não está?
Não... Só uma velhota...
se enganou na porta.
Não tens que fazer?
Convida os teus amigos.
Tens amigas?
Da minha classe? E se tivesse?
Na tua idade, já me apaixonara...
Foi durante a guerra...
Era ruiva... E tinha os lábios
sempre rachados.
O nosso instrutor militar arrastava-lhe
a asa. Não regulava da cabeça.
Estás a ouvir-me?
Para onde disparaste?
Achas que eu não vi?
Disparaste para cima.
Porquê? Não está lá ninguém!
E se estivesse?
Lá só há árvores.
E se estivesse alguém na árvore?
Volver! Eu disse volver!!
Pousa a espingarda no chão.
Foi o que fiz.
Conheces o regulamento?
Volver em russo significa
exactamente o que eu fiz.
Volver significa uma volta
de 360 graus.
Que graus? Volver!
Ocupar as posições de fogo!
E tu, vai buscar os teus pais.
Que pais?
Os teus pais. Entendido?
Que posições de fogo?
Deita-te no colchão.
Os pais dele morreram no bloqueio
de Leninegrado
A posição de fogo é...
uma posição de fogo.
- Markav.
- Presente.
Enumera as principais partes do...
Da espingarda.
A coronha.
- A boca.
- Só se for a tua.
Que será então a boca?
Malta, granada!
Granada de mão!
Não!
Deitar!
Mata!
Não é verdadeira!
Viveste o bloqueio
de Leninegrado?
Não acredito em pressentimentos.
Nem tenho medo dos maus ventos.
Nem fujo à calúnia nem ao veneno.
A morte não existe neste mundo pleno.
São todos imortais,
É tudo imortal.
Temer a morte aos quinze é um absurdo.
Aos setenta é igual...
Além da vida e da luz nada existe.
Nem a escura noite, nem a morte;
Vivemos todos à beira-mar,
A minha sina é as redes apanhar
Que trazem muito peixe.
Sem inquilinos a casa
tem que se desmoronar.
Portanto, para habitar
qualquer dos séculos
Eu posso convocar.
E é por isso que à minha mesa tenho
Os vossos filhos, mães, esposas,
Bisavós, netinhos.
Pois construímos hoje o futuro.
E quando eu levantar a mão,
Os seus cinco raios convosco ficarão.
As clavículas serão suporte
De cada dia que passou.
Medi o tempo às braçadas,
Galguei-o, escolhi-o
Como me mandavam as minhas alçadas.
Nós cavalgámos para o sul,
e a poeira ficou para trás.
Deitava fumo o capim,
De súbito o grilo perspicaz
Ao sentir as ferraduras do cavalo
com as antenas
Profetizou-me morte ruim.
Prendi à sela, pois, o meu fado,
E levantei-me nos estribos
A contemplar o tempo em que vivo
e o que me será dado.
Alegra-me a sina imortal,
E que de século em século
o meu sangue correrá.,
Mas vou dar a minha vida insurrecta
Por um cantinho de calor seguro,
Conquanto a sua agulha voadora
Qual uma linha, não me conduza
pelo mundo fora.
Marússia! E os filhos?
Onde estão os filhos?
Vou denunciar-te. Roubaste um livro.
- O quê?
- Denuncio-te.
- Que se passa?
- Anda, denuncia-me!
Denuncio mesmo!
Marina!
Não podes aparecer mais vezes?
Tem tantas saudades tuas.
Deixa Ignat viver comigo.
A sério?
Então, não dizias que ele queria?
Tomas tudo à letra...
Queres dizer que o inventei
para me divertir?
Vamos perguntar-lhe.
Ele que decida...
Também ganhas com isso.
O que é que eu ganho?
Arrumaste os manuais?
Vem despedir-te do teu pai.
Eu e tua mãe queríamos perguntar-te...
O quê?
Não queres viver comigo?
Como?
Viveremos juntos. Não pediste
isso à tua mãe?
Pedi o quê? Quando? Não, não!
De facto, somos muito parecidas.
Absolutamente nada.
O que é que queres da tua mãe?
Que relações procuras?
As da tua infância? Já não é possível.
Dizes que te sentes culpado
por a tua mãe vos ter dado
toda a sua vida...
Agora não podes refazer nada.
E ela quer ver-te como uma criança
outra vez.
Para poder pegar-te ao colo
e proteger-te.
Meto-me sempre onde não sou chamada.
Sempre...
Porque gemes? Explica.
Casar ou não casar?
- Eu conheço-o?
- Não...
É um ucraniano? Pronunciaste isso
com um sotaque...
Isto não tem qualquer importância.
- Que faz ele na vida?
- É escritor.
Acaso se chamará Dostoievski?
Sim, Dostoievski.
Não escreveu nada em toda a vida.
Ninguém o conhece.
Aí uns 40 anitos? Quer dizer,
uma nulidade.
Estás muito mudado.
É uma nulidade, não escreve nada.
Escrever, escreve, mas não publica.
Vem ver, o nosso querido inapto
já ateou um incêndio.
Não compreendo estas tuas ironias
gratuitas.
Não vai terminar a escola,
vai para a tropa;
terás de correr de chefe em chefe
para tentar livrá-lo.
São frutos da tua educação.
De resto, a tropa não lhe faria mal.
Porque não telefonas à tua mãe?
Depois da morte da tia Liza,
esteve três dias de cama...
Esperei-a aqui às cinco.
Custa-te assim tanto
dar o primeiro passo?
Estamos a falar de Ignat.
Talvez a culpa também seja minha.
Ou será que nos tornámos comodistas?
Entretanto, até o nosso comodismo
é besta, é asiático.
Não temos propriedade privada,
mas prosperamos.
Não compreendo nada.
Porque estás tão irritado?
Um rapaz de 15 anos, filho
de conhecidos meus, disse-lhes:
Bom rapaz. Não é como o nosso paspalho.
O nosso nunca diria tal coisa,
infelizmente.
Imagino esses teus conhecidos.
Porquê? São como nós!
Ele trabalha num jornal.
Também se considera escritor.
Mas não entende
que não se pode escrever por dinheiro.
Escrever é um acto de coragem.
A obrigação do poeta é
causar emoções espirituais,
não educar idólatras.
Mas que hei-de fazer?
Casa-te.
Quem é que viu a sarça
em chamas? Não te lembras?
Foi um anjo, numa chama de fogo?
Não me lembro. Não foi Ignat,
podes ter certeza.
E se o metesse na escola militar?
O anjo em labaredas de fogo no meio
de uma sarça apareceu a Moisés.
Depois, levou o seu povo pelo mar.
Porque nada disso apareceu a mim?
Um sonho perturba-me
com uma persistência espantosa.
Chama-me de volta
à aldeia do meu avô.
Àquela casa, onde eu nasci
há 40 anos em cima da mesa de jantar.
A visão é-me tão cara
que até me dói.
Mas, quando quero entrar nessa casa,
aparece qualquer coisa a impede-mo.
Tenho este sonho com frequência.
Mas quando vejo as paredes de madeira
e a escuridão,
sei, mesmo a sonhar,
que não passa de um sonho.
E a minha imensa alegria perde-se
na sombra da espera do despertar.
Por vezes, porém, deixo de sonhar
com a casa e com os pinheiros
em torno da casa da minha infância.
E tenho saudades.
E espero impaciente
o regresso deste sonho,
onde voltarei a ver-me
criança
e a sentir-me feliz, porque tudo
está ainda pela frente
e tudo será ainda possível...
Mãe.
- Mãe, estão a abrir.
- Que tens?
Boa tarde.
Boa tarde.
- A senhora é Nadejda Petrovna?
- Não a conheço...
Sou a enteada de Matvei Ivanov.
Era amigo do seu marido.
Qual Matvei?
Médico, viveu aqui
antes de se mudar para lurievets,
onde se tornou médico legista.
Vêm da cidade?
Somos de Moscovo.
Temos um apartamento em lurievets.
Fomos evacuados no Outono passado.
Moscovo foi bombardeada,
mas tenho dois filhos.
A minha mãe possui aqui
antigas relações...
O meu homem não está, está na cidade.
Não te coces!
Queria falar-lhe. Tenho
um pequeno segredo feminino.
Entre. Porque estão aí parados?
Limpe os pés. A Macha lavou o chão.
Aguarda aqui. É rápido.
Porque estás às escuras?
Falhou a luz?
Porque não nos chamaste?
- Como te chamas?
- Aliocha.
Também tenho um filho,
mas não tão grande, claro.
Hoje é difícil ter filhos.
A maldita guerra.
Eu, contudo, quero uma filhinha.
Quer ver o meu? Está a dormir.
Não fazemos barulho.
É um bonito rapaz.
Há dias, perguntou ao pai:
Eu até me sentei.
O pai também não soube o que dizer.
O meu homem quer muito uma filha.
Já lhe escolheu o nome.
Eu também já fiz a roupinha,
as fitas, tudo cor-de-rosa.
De repente, tive de mudar tudo.
O trabalho que
o malandreco nos deu!
Acordámos-te?
A tua mãezinha é muito tagarelas.
Quem é que temos aqui? Não conheces?
Então? Não consegues acordar?
Dorme, meu amor.
Ficam-me bem? E o anel?
- Que tem?
- Não sei, não estou bem.
Deve ser cansaço de tanto andar.
Não pensei nisso antes.
Tome para aquecer.
Esqueci-me das horas.
Há que fazer o jantar.
Não se preocupe, por favor.
- Não vos deixo partir já.
- Comemos antes de sair.
Que tosse tão feia!
É de tanto correr na rua...
É bom que o meu marido
o examine.
Não podemos esperar. Temos
duas horas de caminho.
E os brincos? O dinheiro
está com o meu marido.
Vamos matar um galo.
Mas tenho um pedido...
Estou no quarto mês,
tenho enjoos constantes...
Até a ordenhar a vaca...
Sinto enjoos...
O galo... Não poderia matá-lo?
Eu também...
É verdade? Também?
Não, é que nunca fiz isso.
É muito simples.
Não come galos em Moscovo?
É aqui, neste troncozinho.
O machado. O meu homem
afiou-o de manhã.
- Aqui, na sala?
- Eu arranjo uma bacia.
Amanhã, leva uma galinha.
Não consigo.
E Aliocha? É um homem.
Aliocha, porquê?
Segure-o bem. Se não, foge
e escaqueira a loiça toda.
Ai, sinto-me mesmo... Então?
Calma! Vai ficar tudo bem.
É pena que só nos vejamos
quando me sinto muito mal.
- Estás a ouvir?
- Sim.
Eis-me levitando.
Que tens, Marússia? Sentes-te mal?
Não te espantes. Amo-te.
Como? Já se vão? E os brincos?
O meu homem vem já.
- O dinheiro está com ele.
- Pensámos melhor.
Até à cidade, são 15 verstas.
Daqui a pouco, cai a noite.
Não se preocupe. Não há-de ser nada.
Só um corpo o homem pode ter.
No seu invólucro, estiola a alma,
até estarrecer.
Só tem um par de olhos e de ouvidos;
Outras escapatórias não tem;
A sua pele, de ossos um recipiente.
E voa pela córnea a alma
Para o seu destino celeste,
Para o azul dos céus,
Para o reino dos pássaros.
Através da grade da sua prisão viva
a alma escuta
O barulho dos bosques e dos
campos e os cornetins dos sete mares.
Como é pecado um corpo sem camisa
Também o é a alma sem corpo,
Sem ideia, sem um acto,
Sem uma intenção e sem divisa.
Quem voltará do palco,
Onde ninguém dança?
É um mistério sem solução.
Sonho com uma alma
metida noutras vestes.
Ardendo como álcool,
Da timidez à esperança correndo
Sem ser seguida pela sombra,
Braçadas de lilases, como recordação,
atrás deixando.
Oh, pobre Eurídice,
Não chores.
Pelo mundo corre
com o teu aro de cobre.
Enquanto a Terra ressoa
no ouvido em voz baixinha,
Mas alegre e fresquinha.
Mãe, o fogareiro está a deitar fumo.
O quê?
Tudo depende só dele.
Tudo isto por causa de uma angina?
Angina?
- É um caso normal.
- Normal?
Morrem-lhe a mãe, a mulher, o filho...
Mais uns dias, e o homem falece.
Ainda que com saúde.
Mas não lhe morreu ninguém.
E a memória? E os remorsos?
Qual memória?
- Ele não tem culpa.
- Mas acha que tem.
Deixem-me em paz!
- Disse alguma coisa?
- Deixem-me em paz!
Eu só quis ser feliz.
Que será da tua mãe,
se não te puseres fino?
Isto passa, não há-de ser nada.
Tudo será...
Que queres mais: Uma menina
ou um menino?
Fim