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Eu vou ligar.
Organização Nacional
de Transplantes, faça favor?
Fala Manuela, do Ramón y Cajal.
- Diz, Manuela.
Temos um possível dador;
já fizemos o primeiro electro-
encefalograma e a família consente.
Dá-me os dados.
Homem, de 35 anos...
- Grupo sanguíneo?
O positivo,
pesando uns 70 quilos...
Mamã?
Vai começar o filme!
Sim, vou já...
""Uma Despida Eva.""
Mania de mudarem títulos!
""All About Eve"" significa
Tudo Sobre Eva.
Tudo Sobre Eva soa mal...
Que escreves?
Nada...
TUDO SOBRE A MlNHA MÃE
Futuros prémios Pullitzer.
Vá, come, tens de pôr
uns quilinhos nesse corpo,
para se tiveres de ir
para uma esquina sustentar-me.
Para isso não preciso
de quilos, só de um bom cu.
Quem te ensinou a falar assim?
Não perguntasses.
- Era a brincar...
E tu?
- Eu o quê?
Eras capaz de
te prostituir por mim?
Já fui capaz de fazer
fosse o que fosse por ti.
Come.
Caçadores de autógrafos
não são gente,
são animais que avançam
em tropel, como coiotes.
São admiradores, o teu público.
- Que podem eles admirar?
Não são público mas delinquentes
juvenis, atrasados mentais,
nunca viram uma peça
ou sequer entraram num teatro.
Está lá fora uma que sim,
trouxe-a para conhecer-te...
Entra, Eva.
Já achava estar esquecida...
- De maneira nenhuma.
Margot, apresento-te
a Eva Harrington.
Não gostavas de ser actriz?
Já me custou bastante
ser enfermeira.
Se fosses, eu escrevia
papéis para ti.
Em nova pertenci
a um grupo de amadores,
e até nem era nada má.
Deve haver aí fotografias.
Adorava vê-las.
Depois procuro.
Olha, Esteban,
encontrei uma fotografia.
Fazíamos um espectáculo
sobre textos do Boris Vian.
Cabaré para intelectuais...
Parabéns.
Já?
- É meia-noite e meia.
""Música para Camaleões"".
Como sabias que o queria?
Gostas tanto do Capote...
Lê um bocadinho,
como quando era miúdo.
O prefácio.
""Comecei a escrever
tinha eu oito anos...
Vês, não sou o único?
""...sem saber ter-me
agrilhoado para a vida
""a um nobre mas implacável amo;
""quando Deus nos dá um dom
dá-nos também um chicote,
""destinado a autoflagelar-nos.
Para ver se perdes
a vontade de escrever...
Não sejas néscia,
o prefácio é lindíssimo.
Como queres festejar
amanhã os anos?
Gostava de assistir
a um dos teus seminários.
Para um artigo sobre ti
que vou mandar a um concurso.
E queria ver-te numa
das vossas dramatizações
dos cursos de doação de órgãos.
Tinha de pedir à Mamen,
a psicóloga que dirige o seminário.
Pronto, pois pede.
Não gosto nada que escrevas
sobre mim...
O seu marido morreu,
minha senhora.
Não pode ser, acabo de o ver
nos C.l. e parecia respirar!
Como já explicámos, aquilo
são as máquinas a oxigená-lo.
Quer que avisemos
alguém da família?
Não tenho família,
só o meu filho.
Meu Deus, como vou dizer-lhe?
Em vida, ele disse-lhe alguma
coisa sobre a doação de órgãos?
Ele pensava nestes assuntos?
Em vida o meu marido
só pensava em viver.
Mas suponho que fosse solidário
com a vida dos outros?
Não percebo...
O que o meu colega quis dizer
é que os órgãos do seu marido
podem salvar algumas vidas.
Mas para isso
precisamos da sua licença...
Então podem fazer-lhe
um transplante?
Não, é precisamente
o contrário...
Vamos comentar agora
os incidentes da simulação.
Presta atenção
antes de atravessares a rua.
Em que pensavas?
- Em nada, tive cá uma ideia.
Uma ideia...
Dá os bilhetes ao senhor.
Por que me olhas assim?
Estou medonha?
Não, estás mais bonita
que nunca.
Olha, deve ser o senhor
que ficou de te vir buscar.
O senhor não é mr. Huntleigh.
E você também não!
Há que cortar-lhe as unhas.
A camisa, doutor...
Mande-a largar-me.
Largue-a.
Vá, levante-se...
Apoie-se no meu braço,
miss Dubois.
Obrigada.
Toda a minha vida dependi
da gentileza de estranhos.
Vá, miúda, o pior já passou...
Não me toques.
Nunca mais, filho da puta.
Cuidado como falas.
Stella, anda cá.
Nunca mais volto a esta casa.
Nunca.
Queria pedir um autógrafo
à Huma Rojo.
Um autógrafo, com este tempo?
- E que tem a ver?
E se não sai ninguém?
Espera um bocadinho,
são os meus anos...
Olhem, já chegou o Outono.
Emocionou-te muito
a Nina Cruz, foi?
Não ela, mas a Stella;
há 20 anos o grupo de teatro ama-
dor lá da terra fez o ""Eléctrico"".
E eu fazia de Stella
e o teu pai, de Kowalsky.
Um dia destes vais ter
de me falar do meu pai;
não chega dizeres que
morreu antes de eu nascer.
Não é assunto fácil de falar...
Calculo,
senão já me tinhas contado.
Estive quase a pedir-to
como prenda de anos.
Não sei se será
um bom presente...
Enganas-te, para mim
não podia haver melhor.
Então conto-te tudo
quando chegarmos a casa.
Fazer teatro é pior
que ser freira em clausura.
Tudo o que não seja drogares-te
com tudo o que apanhas à mão
é ser freira em clausura.
- Exactamente.
Para a Alfonso Xll, 30.
Deixa lá isso.
Esteban!
Meu filho! O meu filho!
O meu filho não!
""Amanhã faço dezassete anos
mas pareço ter mais.
""Nós, rapazes que vivemos
sozinhos com as mães,
""temos uma expressão própria,
mais séria que é costume,
""de intelectual ou escritor.
""E no meu caso é natural,
por ainda por cima ser escritor.
Fala Lola, do Ramón y Cajal.
Temos um possível dador
nos C.l.;
acabam de lhe fazer
o primeiro encefalograma
mas a mãe ainda não deu
o consentimento.
Dá-me os dados.
Não tenho,
é o filho da Manuela.
Qual, a coordenadora
que eu conheço?
Pois, ele morreu.
É horrível.
lnfelizmente...
O resultado do encefalograma
era o que temíamos.
Há que tomar uma decisão,
o tempo escasseia.
É do hospital.
Temos de ir já para lá,
há que telefonar.
Tem calma, ligo eu.
- Eu estou calmo, mas liga.
Três semanas depois
Pronto, já estamos na rua.
Que bem ele está, Mari Carmen,
até parece mentira.
Eu nem acredito.
Eu só noto respirar igual...
- Vais respirar melhor.
Com um de dezoito anos...
Os escaldadillos
que te faço mal cheguemos!
Também não exageres...
""Ontem a mamã mostrou-me
uma fotografia dela em nova
""a que faltava metade.
""Não lho quis dizer, mas à minha
vida falta também essa parte.
Já estava ralada...
E com medo,
nunca mais telefonavas.
Liguei assim que cheguei
a Madrid.
Pois, mas da Argentina,
liguei-te um montão de vezes;
devo ter assentado mal
o número da tua tia.
Não fui à Argentina,
estive na Corunha.
Foste lá fazer o quê?
Fui atrás do coração
do meu filho.
Mas quem te disse...
Como é que soubeste?
Procurei nos arquivos,
até encontrar o nome e morada
do receptor do transplante.
Não devias ter ido.
Além de ser um abuso
é a melhor maneira de enlou-
queceres... Olha-me, porra!
O melhor é que pare de trabalhar
na O.N.T. e deixe Madrid.
Eu não disse isso...
- Mas pensas, e tens razão.
Acho que nem sequer
desfaço a mala.
Devias lá viajar sozinha,
estás doente...
Descansa e recupera...
Eu durmo cá esta noite.
Então vem tu lá para casa.
- Eu quero ficar sozinha.
Sê um pouco razoável...
- Como?!
Há dezassete anos
fiz este mesmo trajecto,
mas em sentido contrário,
de Barcelona a Madrid.
Também fugia,
mas não estava só;
trazia o Esteban dentro de mim.
Então fugia do pai dele
e agora vou em sua procura.
Quer continuar por aqui?
- Sim, siga.
Pare.
Filho da puta!
Estás doido, picolho?!
Filho da puta...
Que é que lhe fizeste?
- Dei-lhe com uma pedra.
Ajuda-me a pô-lo de pé.
- Anda, levanta-te.
Vá, Juan, levanta-te.
Sentes-te bem?
Põe-te de pé.
Vá, despacha-te...
Anda, depressa.
Tu estás feita,
minha psicopata de merda!
Vês aquela fogueira
onde estão as machonas?
Pergunta pela Ursula,
diz que te manda a Agrado
e ela trata-te.
És tu?
- Manolita!
Estás ferida?
- Não, sujaste-me tu.
Salvaste-me a vida,
e as saudades que tive de ti;
dezoito anos sem um pio,
uma carta, um telefonema...
Julgava-te morta,
minha filha da puta!
Vamos para minha casa
e contas-me tudo.
Antes passamos pela farmácia,
estás toda escalavrada.
Onde há táxis, por aqui?
Com sorte não nos atacam
no caminho... Trazes a navalha?
Trago, e um pedregulho,
na mala.
Olá, boas noites.
Desculpa ter-te acordado...
Anda, chega-te cá.
- Não, que é que querem?
Que te chegues, homem,
não te comemos.
Que querem?
- Deixa, falo eu com ele.
Dê-me Betadine, adesivos
dos que fazem de pontos,
trombocid, gaze esterilizada...
Tens álcool em casa?
Ontem estava péssima e bebi-o.
- Do de desinfectar...
Não, mas tenho vaselina,
preservativos e pensos.
Mais alguma coisa?
- Alcool, se faz favor.
Ai, Manolita, a Barceloneta...
Que tempos, lembras-te?
Lembro, mas agora
está quieta com a cara.
Sabes alguma coisa dela?
- De quem, da Lola?
lnfelizmente.
- Porquê, que houve?
Dei-lhe um tecto,
de mal que estava.
Como sempre, com tudo
o que se injecta...
E uma manhã, ao voltar da Zona,
cansada de trabalhar,
descubro que me tinha
esvaziado a casa.
Relógios, jóias, revistas em que
me inspiro, 300 mil pesetas...
Mas o que mais me doeu
foi uma imagem da Virgem del Pino,
um presente da minha mãe.
Para que porra a quis,
se não acredita em nada?
Talvez andasse metida
numa seita satânica
e a quisesse para
as cerimónias deles.
Já vi que não mudou...
Fazer-me aquilo a mim,
a quem devia tudo;
desde Paris, há vinte anos,
que a trato como a uma irmã.
Pusemo-nos as mamas juntas,
como bem sabes.
Não voltaste a vê-la?
Não e não quero.
Porquê, andas à procura dela?
Temos um assunto pendente...
Por que fugiste daquela maneira?
Não me vais contar nada?
Não consigo...
Outro dia.
Mas não voltes a sumir assim,
gosto de me despedir
das pessoas de quem gosto,
mesmo que fique inchada
de chorar, filha da mãe.
Não acredito...
Pareço o Homem-Elefante!
Que exagero...
Estás só um pouco inchada.
Um pouco inchada?
Que faço com estas trombas?
Anda é comer.
- Mulher, tu não devias...
Salada, que bom!
Ai, dói-me tanto mastigar!
Como vou fazer broches?
Hoje não deves ir trabalhar.
- E faço o quê?
A Lola deixou-me tão lisa
que tenho de trabalhar.
Que bom, doce de leite.
E provoleta!
Também preciso de emprego;
vamos procurá-lo juntas?
Desde que desapareceste
nunca mais comi como deve ser.
Claro, como sou modelo
tenho de me cuidar...
O mal desta profissão é teres
de ser gira que te fartas
E sempre à coca dos últimos
avanços da cirurgia e cosmética.
Estás fantástica.
Não há como um Chanel
para te sentires respeitável.
Tu estás e eu não?
Não estou com ar de putéfia?
Ainda bem, elas só ajudam
putas e travestis, portanto...
Esse é mesmo Chanel?
Achas que ia gastar meio-milhão
num Chanel com tanta fome por aí?
A única coisa verdadeira
que tenho são os sentimentos
e os litros de silicone,
que pesam toneladas.
E já não me sinto
com idade, Manolita.
lsso é da tareia.
Da má vida que levo
há 40 anos, diz antes.
Procuram alguém
ou posso ajudá-las eu?
Vimos ver a que vai à Zona,
aquela muito bonita...
Ah, a lrmã Rosa.
Está na oficina; entrem.
Rosa, tens visitas.
Que é que te fizeram à cara?
Uns murros, ossos do ofício...
Podemos falar?
Claro, venham lá para fora,
temos mais sossego.
A minha amiga e eu queremos deixar
a vida, mas isso só trabalhando.
Seja no que for,
até lavando escadas.
Muito mais não há...
Ou varrer ruas, ou aprender
aqui algum artesanato,
como toalhas de renda,
centro de flores secas...
Eu quase prefiro varrer...
E tu, que mais sabes fazer?
- Fui cozinheira num restaurante.
E é meia-cirurgiã, vê-me só
esta cara; nem o Pitanguí.
É patrícia da Lola.
Sabes dela?
Há 18 anos que não a vejo.
- A mim, despejou-me a casa.
Esteve cá há uns quatro meses.
Ajudámo-la a desintoxicar-se.
Tratei-a enquanto ressacava
mas sabem como é,
de repente levou sumiço.
Se a virem, queria despedir-me
antes de ir para El Salvador.
Vais para El Salvador?
lmagina que sempre achei
que o 3- Mundo é que me convinha.
Vem comigo, já não ia sozinha.
- Cá a rua está cada vez pior.
Das putas há pouca concorrência,
mas as drags dão cabo de nós.
Não posso com drags,
são umas mamarrachas.
Confundem circo com travestismo.
Circo... Uma farsa!
Uma mulher é cabelo, unhas,
uma boa boca
para mamar ou criticar...
Mas onde já se viu
uma mulher careca?
Não posso com elas,
são umas mamarrachas!
Em Salvador deve haver poucas,
estão em plena guerrilha.
Ah sim? Não sabia...
Vou substituir
uma freira assassinada.
Não sei se o que mais me convém
neste momento será uma guerra.
És tão estúpida...
Portanto, foste cozinheira?
Esta? Não há melhor.
Que surpresa...
- Olá, mamã.
lncomodamos?
lmporta lá, por uma vez
que nos visitas...
Mamã, esta é a Manuela.
Entrem, não fiquem à porta.
A Manuela é cozinheira, e como
a Florinda se despediu, pensei...
Obrigada, mas a Vicenta e eu
cá nos arranjamos.
Como, se só o papá
precisa de duas pessoas?
Aliás, onde está?
- Na rua, com o cão.
Foram sozinhos?
E se se perdem?
O cão sabe voltar,
não te preocupes.
Que pena, queria tanto vê-los...
Já saímos a chamá-los,
mas antes temos de conversar.
Vem comigo ao atelier...
E pena ter vindo para nada.
E se a experimentasses
uns dias?
E não tinhas de te ralar
com o papá, ela é enfermeira.
Além de cozinheira?
Não preciso que ninguém trate
do teu pai, gosto de o fazer eu.
Eu acho bem, e agradeço
de qualquer maneira.
Espera-me aqui, eu não demoro.
Como ousas trazer uma pêga
cá a casa?
Não é fácil arranjar-lhes
pessoal, ninguém vos aguenta.
Mas uma pêga!
Não é razão para seres
tão grosseira.
Não gosto que estranhos
me vejam falsificar Chagalls;
será tão difícil de perceber?
E aliás ela resolveu deixar
de ser puta.
Há quanto tempo a conheces?
- Conheci-a esta manhã.
Esta manhã...
Tu és incrível, Rosa.
O meu trabalho é ajudá-las,
mesmo acabando de as conhecer.
Pois o meu, não.
Não ponhas essa cara,
isto não implica intolerância.
Vou propor-te uma troca...
Eu dou-lhe uma oportunidade
desde que não vás para El Salvador.
Não me arranjes mais
dúvidas das que já tenho...
Como ias não ter? Essa ida é um
suicídio. Ou antes, um parricídio!
Bom, vou andando,
tenho a Manuela à espera.
Claro, qualquer pêga ou salva-
dorenho importa mais do que nós.
Não comeces...
Tu devias era ir
a um psiquiatra.
Sim, não fazia mal
a nenhuma das duas.
Não querias ver
o teu pai e o cão?
Outro dia...
- Tu estás bem?
Adeus, mamã.
Olá, Vicenta.
- Rosa, querida!
Que magra...
A menina não come?
Como, claro... Passaste
por uma rapariga loura?
Cuide de si e coma.
Desculpa a minha Mãe,
Manuela...
Vamos?
Não posso com a minha Mãe,
põe-me louca.
Tu tens pais?
- Morreram os dois.
Portanto, estás sozinha?
- Suponho...
Estás com tão má cara...
- É por não me sentir bem.
Tenho tal vontade de vomitar...
Foste ao médico?
Pois é melhor que vás,
isso pode ser só uma gastrite.
lmportas-te que vá para tua casa
até me passar?
Tu tens casa?
Tenho, mas acabo de a alugar
e quase não tem mobílias.
Não ligues à desarrumação...
Só me mudei há quatro dias.
Queres deitar-te
um bocadinho?
Não, sento-me aqui no sofá
até que passe.
Quem é este miúdo tão giro?
O Esteban, o meu filho.
Mas tu não eras sozinha?
- Ele morreu num desastre.
Que pena, Manuela...
Não mexas no caderno, sim?
Vá, miúda, o pior já passou...
Não me toques.
Nunca mais, filho da puta.
Cuidado como falas.
Stella, anda cá!
Nunca mais volto a esta casa.
Nunca.
Entra, Nina.
Eu chamo-me Manuela...
Você não pode entrar aqui!
A Nina saiu.
Onde está a Nina?
Não sei,
só a vi sair a correr.
Disse que me esperava
no camarim dela!
Não pode ser...
Estamos só há duas semanas,
não pode fazer-me isto.
Tu tens carro?
- Não, mas aonde queria ir?
Não sei...
Sabes guiar?
Não digas nada, mas ela
é viciada no cavalo.
Não conheço Barcelona; sabes onde
pode ter ido comprar a esta hora?
Não, mas é fácil saber-se.
Obrigada; sejas quem fores
toda a vida dependi
da gentileza de estranhos.
Não sei guiar,
quem guia é a Nina...
Queres?
Comecei a fumar por culpa
da Bette Davis, para a imitar.
E aos dezoito já fumava
como um camionista.
Por isso me chamo Huma
(Fuma).
É um nome bonito...
O fumo é a única coisa
que tenho de meu.
Também tem o êxito...
- Ele não tem sabor nem cheiro,
e quando te habituas
é como se não existisse.
Deus, onde se pode
ela ter metido?
Parece-me vê-la ali.
Fique aí, eu vou.
É um filho da puta, está a dar
produto estragado a todos.
Não me toques!
- Olá, Nina.
A Huma está ali à espera.
E tu quem porra és?
- Está no carro.
Tenho de tudo.
Merda, a mala.
Eu tenho de tudo,
ecstasy, coca...
Quem é?
- Eu, a Rosa.
Olá, Manuela. Estás sozinha?
Estou, acabo de acordar...
Entra.
A estas horas?
Ontem saí
e deitei-me às tantas.
Tomas o pequeno-almoço?
Não tens fome?
Então, voltaste à vida...
Vinha propor-te uma forma de
ganhares dinheiro sem sair de casa.
Pois propõe, eu não sou puta;
já me fizeram muitas putices,
mas não sou puta.
Por que me mentiram?
Coisas da Agrado...
A roupa também era dela.
Mas diz lá como ganho
dinheiro sem sair de casa,
estou morta de curiosidade.
Quanto me levavas
pelo aluguer de um quarto?
Alugava-te um quarto porquê?
Vou deixar a ordem
por uns meses.
E a ida para El Salvador?
Não me sinto bem,
posso lá viajar assim...
E querias instalar-te aqui,
ainda por cima doente?
Estou é grávida.
E que vais fazer?
Vou tê-lo, que queres que faça?
E achei que aqui, em tua casa,
dava menos escândalo.
O pai não te podia
dar uma ajuda?
Deus sabe onde estará o pai...
- Mas tu sabes quem é?
Claro que sei,
por quem me tomas?
Foi a tua patrícia, a Lola.
A filha de uma grande puta!
Por que te pões assim?
Por que me ponho assim?
De quanto estás?
De três meses, acho,
e estou muito preocupada.
Não me admira nada.
Tive uma hemorragia, esta manhã.
- E foste ao médico?
Vou amanhã ao Hospital del Mar;
achas que podes vir comigo?
Posso, claro.
- Obrigada.
E o quarto?
Desculpa,
não te posso ter cá.
Boa tarde, incomodo?
Ainda bem que vens, não sabia
para onde te mandar a mala.
Aqui a tens.
Está tudo?
- Claro...
Obrigada por aquilo de ontem.
Adorava ficar a conversar,
mas já estou atrasada.
Precisas de alguma ajuda?
- Se me abotoasses isto...
Tu chamas-te...?
- Manuela.
Gostavas de trabalhar para mim?
- Fazendo o quê?
De tudo.
De tudo menos dormir comigo,
para isso já me chega a Nina.
Por acaso até procurava
trabalho...
Preciso de assistente particular,
de alguém de confiança.
Mas não me conheces...
- Bastou-me ver-te em acção ontem.
Mas a Nina odeia-me.
Odeia o mundo inteiro,
incluindo a ela e a mim.
E começava quando?
- Já, se pudesses.
Pergunta à Nina
o que quer jantar.
Para mim só uma exqueisada
à Can Pintxo.
E se lhes arranjasses um ansio-
lítico, está hoje tão nervosa...
Eu tenho Lexatin.
- Fantástico!
Não digas nada do pai.
- Odeias tanto a Lola...
Porque tem o pior dos homens
e o pior das mulheres.
Eu conto-te uma história...
Tive uma amiga
que se casou muito nova.
O marido foi trabalhar
para Paris
e combinaram que a chamava
quando estivesse instalado.
Passaram-se dois anos.
O marido juntou uns dinheirinhos
para montar um bar em Barcelona
e ela veio para cá,
ter com ele.
Dois anos é pouco tempo,
mas o marido tinha mudado.
Já não gostava dela?
A mudança era bem mais física;
exibia um par de mamas
maiores do que as dela.
A minha amiga era muito nova,
estava num país estrangeiro,
não conhecia ninguém...
Tirando o par de mamas,
ele não tinha mudado muito...
E ela acabou aceitando-o.
Nós, mulheres, fazemos tudo
para não ficar sozinhas.
Somos é mais tolerantes,
mas isso é bom...
Somos umas burras.
E um pouco fufas...
Mas ouve o fim da história.
A minha amiga e o marido
das mamas montaram um quiosque,
ali mesmo, na Barceloneta.
Ele passava o dia enfiado
num biquini miscroscópico
e atirando-se a tudo
o que se mexia,
mas mal ela punha um biquini ou
uma mini-saia, fazia-lhe cenas.
O estupor...
Como se pode ser machista
com um par de mamas daqueles?
María Rosa Sans?
Sentem-se...
Qual é a doente?
A minha irmã está grávida
de três meses, calculamos nós.
Esta é a primeira consulta
a que vem.
E ontem e hoje
tive hemorragias...
Deite-se na marquesa
e dispa a parte debaixo.
Vista isto.
Em princípio e pela ecografia,
o feto está bem...
Vivem juntas?
Não.
- Sim.
Em que ficamos?
Ela vive com a nossa mãe,
mas ainda não lhe contou.
Sabe que tem a tensão alta?
- Sei, sou hipertensa.
Há riscos de abortar,
deve mexer-se o menos possível.
Posso lá não trabalhar...
Trabalho, agora, só ficar
quieta e não fazer disparates.
Diga à sua mãe
que lhe vigie a tensão;
tem de fazer dieta sem sal,
e repousar.
Eu digo-lhe.
Eu trabalho com gente
de alto risco,
portanto entre as análises
quero fazer à da sida.
Trabalha em quê?
É assistente social...
Quando estão prontas as análises?
Daqui a quinze dias.
Tens de dizer à tua mãe,
precisas de alguém que te trate.
Eu ontem arranjei trabalho
e vou passar o dia ocupada.
Ouve, pedes-me que seja
tua mãe e não tens esse direito,
mesmo que não gostes
tu tens mãe.
E os pais não escolhemos!
Eles são o que são.
Por favor, não faças
chantagem comigo...
Não sei se fiz bem,
chamando a clínica.
Fizeste o que tinhas
de fazer...
É que, se acredito nela,
não posso continuar com o Stanley.
Pois não acredites;
o importante és tu e o teu filho.
Mas se a minha irmã
falou verdade?
A Blanche está lá
em estado de falar verdade,
mesmo que quisesse...
O meu coração?
Refere-se à caixa de jóias
em forma de coração.
Acho que a vi por aqui...
Pronto, toma.
Preciso de um colar.
Como se chama o senhor
com quem tu estiveste?
Huntleigh... Ligou
enquanto estava no banho?
Que estranho...
Por que me olhas assim?
Estou medonha?
Se estás mais bonita
que nunca...
Com o colar fico bem melhor.
- Queres ajuda?
Então vais de férias? Que sorte,
tenho-te cá uma inveja...
Aí o tens, o tal senhor
que te vem buscar.
Duas semanas depois
Segunda chamada, 15 minutos.
- Entra.
Ainda não apareceu?
- Não sei onde estará...
Passei o dia na televisão,
não as vi!
A Nina?
- Não estava contigo?
Acabo de a deixar em casa,
na cama.
Que tem ela?
O jantar fez-lhe mal,
hoje sente-se péssima.
E porque não me disseste,
quando liguei da televisão?
Não te queríamos nervosa,
ias gravar...
Chamaram um médico?
- Claro, tem uma gastroentrite.
Dei-lhe a limonada que o médico
recomendou, e amanhã já está boa.
Então, anulamos?
- Deixas-me falar com a Huma?
Espera lá fora.
Cinco minutos.
- Está bem!
Diz-me a verdade.
- Nem fala, de tão pedrada.
Saiu mal foste para a televisão,
não sabia que hoje ia lá a casa,
pensou que ficasse contigo.
Que fazemos agora?
Se não te der um enfarte,
proponho substituí-la.
Sei o papel de cor
de o ouvir pelo intercomunicador.
Tu sabes representar?
Sei mentir lindamente,
e estou habituada a improvisar.
lsso já vi...
O meu filho achava-me
óptima actriz.
Nem sequer sabia
que tinhas um filho.
Terceira, cinco minutos!
Huma, que fazemos?
Não podemos esperar mais.
Parabéns, Blanche,
toma a prenda de anos.
Obrigada, não te devias
ter incomodado...
Espero que gostes.
É um bilhete de camioneta,
de ida, para Terça.
lnsinuas que me vá embora?
- Que é que achas?
Por que fizeste tal coisa?!
- Estou farto que me insulte.
E até aqui de as ver
aos cochichos nas minhas ventas!
Não te vás, por favor!
Larga-me, porra,
rasgas-me a camisa!
Bruto...
Bruto já eu era
quando nos conhecemos.
E lembro-te que para ti
isso nunca foi problema.
Um dia mostraste-me
a vossa casa numa fotografia,
uma mansão enorme
e cheia de colunas.
Pois arranquei-te às colunas
e ensinei-te a seres feliz.
E ríamos
e éramos felizes juntos.
Até aparecer a tua irmã Blanche.
Stella, que foi?
Leva-me ao hospital,
por favor.
Parabéns por ontem,
já soube que foste brilhante.
Nem imaginas...
Que pena não teres ido.
Sentia-me malíssimo...
Mas ligou-me a Agrado a contar.
Deve ter telefonado
a meia-Barcelona.
E tu, tens feito tudo
o que recomendou o médico?
Venho de lá agora.
Fui buscar as análises.
- Esqueci que era hoje...
Estou seropositiva.
Repetimos as análises.
Como pudeste tu
ir para a cama com a Lola?!
Não sabes que se injecta
há quinze anos?
Em que mundo crês tu viver?
Em que mundo?!
Não sei...
Contaste à tua mãe?
E às tuas colegas?
- Também não.
Vamos buscar as tuas coisas
e instalas-te aqui.
Olá, Manuela.
Ontem estiveste um espanto.
Obrigada.
Olá, boa tarde.
- Olha a mosquinha morta...
Tinhas tudo planeado,
não era, filha da puta?
Nina, não insultes...
És igual à Eva Harrington,
decoraste o papel de propósito!
las lá aprendê-lo todo só de
o ouvir pelo intercomunicador!
Julgas-nos estúpidas, ou quê?
Ajudou-me a refrescar a memória,
há anos que sei o papel de Stella.
Olha a coincidência...
- Nem tu podes imaginar.
Eu não disse?
Por que vieste aqui
aquela primeira noite?
Ou dirás que foi
também por acaso?
Não, não foi por acaso...
Bom, não as maço mais;
pego nas coisas e vou-me.
Acho que nos deves
uma explicação, Manuela...
""Um Eléctrico Chamado Desejo""
marcou-me toda a vida.
Há vinte anos fiz de Stella,
com um grupo amador.
E lá conheci o meu marido,
que fazia de Kowalski.
Há dois meses
vi a vossa peça, em Madrid.
Fui com o meu filho.
Fazia anos naquela noite
e apesar de chover a cântaros
esperámos-te na rua, Huma,
para ele te pedir o autógrafo.
Era um disparate esperar à chuva,
mas como eram os seus anos
não quis dizer-lhe que não.
Vocês apanharam um táxi,
ele correu atrás dele...
E um carro que descia
a Alcalá atropelou-o.
E matou-o.
É essa a explicação, Huma.
Eis a explicação...
Entra, senão não passo.
Huma, que fazes aí?
Vim pagar-te,
vieste-te embora sem receber.
Ela é a minha irmã Rosa...
Deixa que te ajude.
O elevador é já ali...
E a Nina?
Deixei-a com o Mario;
manda-te beijos.
Pousa aí os sacos, Huma.
Vai-te deitar um bocado,
Rosa.
Não estou cansada...
- Não discutas.
Senta-te, Huma.
Bebes alguma coisa?
É como uma miúda pequena...
Não dormi a noite inteira,
só pensei no teu filho.
Lembro-me perfeitamente dele,
à chuva e com o caderno na mão.
Parece-me estar a vê-lo...
Não quero falar do meu filho,
não consigo.
Além de pedir desculpas,
a Nina e eu queremos que voltes.
A Rosa está doente, precisa
de quem cuide dela todo o dia.
Tenho pena
mas não a posso deixar.
Não sei que fazer, Manuela...
Porque não metes a Nina
numa clínica?
Se não terminamos o contrato,
a companhia processa-me.
Arranja-lhe uma substituta
até terminar o teu contrato.
Sem ela não represento;
está viciada no cavalo,
mas eu estou viciada nela.
Quem era?
- A Agrado.
E tu abriste?
Devias ter dito que estávamos
ocupadas, principalmente por ti...
Deita-te aqui no sofá
e pára quieta.
Que teve ela exactamente?
- Um acidente.
Como foi?
Como não me ocorreu antes?
A Agrado ocupa o meu lugar.
Quem, aquela a quem
não querias abrir a porta?
Cá por coisas,
mas para ti era ideal.
Que idade tem a Agrado?
Aí entre os trinta
e os cinquenta...
Agrado é mesmo o nome dela?
- E o artístico, como o seu.
Sabe por que o escolhi?
- Sei. A Manuela contou-me.
E que mais contou?
- Tudo, contou-me tudo.
O que há entre vocês,
aquilo do cavalo...
E que terão
um final muito triste.
Ai sim? E que mais?
Eu sou muito curiosa...
Que, como actriz,
é maravilhosa.
Mas que, como pessoa,
está muito baralhada.
E que mais?
Que não dissesse nada.
Que trazes aí no saco?
Anda, entra...
Vinho e gelado.
Para comemorar o teu êxito
de ontem no teatro, puta!
Mas que surpresa...
Três mulheres sozinhas
numa casa quase sem mobília
faz-me sempre pensar em
""Como Casar com um Milionário"".
Huma, ela é a Agrado.
- Prazer, sou sua fã.
Huma, tu és uma deusa,
uma lenda viva.
Sou tua fãs
- assim plural e tudo -
mas como foi a Manuela...
Não sei como foste à tarde,
mas à noite, o que eu chorei...
E tu não ias para El Salvador?
- la mas já não vou, fico cá.
Já não trabalho para a Huma
e, mesmo antes de chegares,
comentávamos que podias tu
ocupar o meu lugar.
Eu, fazer de Stella?
Vejo-me mais como Blanche...
Substituir-me a mim, não à Nina.
E muito menos à Huma.
Agradeço-te, mas não acho...
Põe-a à prova uns dias,
não é tão burra como parece.
Sou sim, e muito. Por exemplo
agora, não percebo nada.
Vá, abra a garrafa
para nos alegrarmos um pouco.
Traz gelo.
lsso, bebemos
que até nos descontrai.
Vou buscar copos.
Só quero gelado,
não posso beber álcool.
Eu arrisco o vinho.
Que tem a Manuela,
acho-a tão esquisita...
Não lhe terá subido o êxito
à cabeça assim de repente?
Quer é impingir-te à Huma.
A mim Prada parece-me ideal
para freira.
O meu problema é, como tudo
me fica bem, ser muito eclética.
Sabem que me vieram frieiras
desde que cá cheguei?
Acabou... Vou buscar mais?
- Adorava, mas não posso.
Onde é a casa-de-banho?
Vocês têm de me pôr a par
do que se passa nesta casa...
Amanhã explico-te.
Não lhe digas nada, é incapaz
de manter a boca fechada.
Sei muito bem como manter
a boca fechada.
Não me portei à maneira, para que
a Dona Sumé não desse por nada?
Eu sou um modelo de discrição!
Até a mamar uma pichota
sei ser discreta;
não têm conta as que mamei em
locais públicos sem que ninguém
- tirando o interessado -
desse por nada.
Há tanto tempo que
não mamo numa pichota...
Pois eu adoro a palavra.
E picha!
Tenho de ir...
- Sentes-te bem?
Se te sentes bem.
- Melhor que nunca.
E se a fosses ajudar
a apanhar um táxi?
Já esquecia, isto é para ti...
Bom, então adeus.
Hás-de ensinar-me a ladrar.
Fui um pouco ordinária
com a Huma, disse-lhe tudo.
Não te preocupes.
Que irmãs menos parecidas...?
- Ah, elas são irmãs?
Foi o que disse a Manuela.
- Bom, se ela disse...
Vocês são um pouco aldrabonas?
- Há que aceitar-nos como somos.
Tu sabes guiar, Agrado?
- Sei, em nova fui camionista.
Em Paris, antes de pôr
as mamas.
Depois deixei o camião
e fiz-me puta.
Que interessante...
- Muito.
É um cheque.
De cento e cinquenta mil.
- Que generosa...
Que é?
Um autógrafo da Huma,
para o Esteban.
""Querido Esteban, eis o autó-
grafo que não cheguei a dar-te.
""Não porque não o tentasses...
Fui uma estúpida,
dando pérolas a porcos.
lsso é comigo?
- E com o teu amigo, mr. Mitchel;
veio visitar-me e repetiu a por-
ção de mentiras que lhe contaste.
E pu-lo na rua.
E voltou com um ramo de rosas
para se desculpar.
""Perdoe"", disse,
mas há coisas indesculpáveis.
A crueldade não merece perdão;
é a única coisa imperdoável
e uma que jamais eu...
Também tu estudas o papel?
Eu cá, não.
- Mas aprende, nunca se sabe...
Achas?
- Deixas-me sozinha?
Porquê, vais fumar um charro?
Já nem podes esperar pelo fim?
Se sabes, por que perguntas?
Se não queres que diga à Huma
fuma no lavabo, onde não veja;
não quero ver
certos espectáculos.
Então tranca a porta.
Bem sei que quando se é nova
- apesar de não seres nenhum bebé -
essas coisas não têm valor.
Mas tu és gira, bem feitinha,
para o pequeno mas gira...
Estás magra, também com
as merdas que ingeres...
Mas o importante
é estares magra.
Tens talento...
Limitado, mas algum tens.
E sobretudo tens uma mulher
que te adora.
E trocas tudo pelo cavalo;
achas que compensa?
Pois não compensa mesmo.
Não compensa.
Troco-lo por alguma paz...
Vá, ajuda-me.
Estás a ficar lisa.
Comparada contigo, claro.
Que viciosa tu és...
Nunca pensaste cortar tudo?
As operadas não têm trabalho;
os clientes preferem-nos
penumáticas e bem dotadas.
Reumáticas?
Que esquisitos são os homens.
Reumáticas não, pneumáticas;
um par de mamas duras
como pneus acabados de encher,
e um bom cu.
Mostra-me a tua picha.
- Que bem te fica o caracol...
Sabe-se lá se também gosto.
Os teus gostos já te dão complica-
ções que cheguem, não queiras mais.
Anda, põe-te a andar. E vê se
não vomitas em cima de ninguém.
O público adorava,
como faço de grávida
julgava que era do papel
e flipava.
Pois, mas na próxima cena
já pariste o boneco.
Eu vou, mas depois
mostras-me a picha?
Mostro-te a picha
e chupa-la um bocadinho.
Esta juventude
não diz não a nada...
Meses depois
Vou chamá-lo Esteban.
O teu filho?
E porquê?
- Por causa do teu.
Este menino vai ser das duas.
Quem dera que estivéssemos sós
no mundo, sem compromissos.
Tu e o teu filho, só para mim.
Mas tens família, Rosa...
Vou pentear-te
e pintar-te um pouco.
Para quê?
- Gosto de te ver bonita.
E a tua mãe ligou
e vem visitar-te hoje à tarde.
Tu tens mãe, lembras-te?
E que lhe digo?
O que quiseres; eu sei lá.
Entra, Huma!
Não é a Huma...
Posso entrar?
Claro, Mario.
Mas que cedo vens hoje?
Que fazias?
Passava umas coisas a ferro...
Tens alguma coisa?
A noite passada mal dormi,
ando todo o dia nervoso...
Não me fazes um bico?
Não lhes entra na cabeça
que já me reformei?
Não é isso, é que visto
passar todo o dia nervoso,
pensei que uma mamada
me acalmava.
Mama tu o meu,
também me sinto nervosa.
Seria a primeira vez que faço
um bico a uma mulher,
mas sendo necessário...
Vocês vivem obcecados
pela minha picha,
até parece que é a única...
Tu não tens picha?
E lá por teres andam todos pela
rua a pedir que mames nas deles?
Não? Pois então...
Mas eu faço-te o bico
para veres como sou aberta
e sensível a coisas dessas...
Onde está o telefone?
Está bem, não te rales,
eu trato de tudo.
Vamos para o meu camarim?
Só porque se entra aí a Huma...
A Huma não pode vir,
está no hospital com a Nina.
Porquê, que aconteceu?
- lam-se matando uma à outra.
Credo...
Então hoje cancelamos?
- Não digas nada.
Alguém terá de dizer...
Pois, mas não a verdade;
alguma coisa hei-de inventar.
Bom, e...?
Olá, como está?
Entre.
Onde está ela?
- Ali, no quarto.
E eu ralada imaginando-te
em El Salvador.
Portanto, aprendeste a mentir?
- Não sabia como to dizer.
E agora que vais fazer?
Deixar a ordem, casar?
Tu perguntas cada coisa...
Contigo nunca se sabe.
Pelo menos eu, não sei.
Até isto tive de saber
pela tua amiga.
Não sei o que teria feito
sem a Manuela...
Como está o papá?
- Sei lá, como sempre...
Pior.
Se não te importa,
prefiro não lhe dizer nada.
De qualquer maneira
também não ia perceber...
E o Sapic?
- Está bom.
Rosa, não sei que fazer...
Que queres tu que faça?
Nada, mamã.
Não esperas nada de mim?
Não é isso...
Quis foi dizer que não
dificultes ainda mais as coisas.
Sirvo-lhe alguma coisa?
Estou a fazer chá...
Não, obrigada.
Que tem ela, exactamente?
Ao telefone não percebi bem.
Segundo a ecografia,
tem placenta prévia;
quando chegar a hora há que
fazer-lhe uma cesariana,
mas até lá precisa
de repouso absoluto.
Acha que a devia levar
para casa?
Sabe como está o pai,
depende de mim como um bebé...
A senhora é mãe dela, sim,
mas ela está melhor aqui.
Também tive essa sensação...
Se precisarem de dinheiro, peça.
E por favor, mantenha-me a par.
Fique descansada.
- Muito obrigada.
Eu acompanho-a.
- Não se incomode.
Não sei em que falhei
com a Rosa...
Desde que nasceu que é
como uma extra-terrestre.
Tem filhos?
Um...
- E dá-se bem com ele?
Morreu.
Desculpe...
Por razões alheias
à sua vontade,
duas das actrizes que diaria-
mente triunfam neste palco
não podem estar aqui hoje,
pobrezinhas...
O espectáculo foi,
por isso, cancelado.
Aos que o quiserem será devol-
vido o dinheiro dos bilhetes.
Mas para os que não tenham
nada de melhor para fazer
e já que vieram
ser uma pena irem-se embora,
se ficarem prometo entretê-los
com a história da minha vida.
Adeus, desculpem lá...
Se os aborrecer ronquem assim...
Eu percebo imediatamente
e juro que não me ferem
a sensibilidade...
Chamam-me Agrado
por toda a minha vida
só ter querido tornar
a vida agradável aos outros.
Além de agradável,
sou muito genuína.
Reparem neste corpo,
todo feito por medida.
Olhos rasgados, 80 mil pesetas.
Nariz, duzentas.
Atiradas ao lixo, porque passado
um ano puseram-mo assim a murro.
Já sei, dá-me personalidade;
soubesse antes e não lhe tocava.
Continuando, mamas.
Duas, porque não sou
nenhum monstro.
Setenta cada uma, mas essas
já estão super-amortizadas.
Silicone, em...
- Onde?!
Lábios, testa, maçãs do rosto,
ancas e rabo.
Umas cem mil por litro;
façam as contas porque
já não sei a quantas ando.
Aparar o queixo,
setenta e cinco mil.
Depilação defintiva por laser
- visto a mulher também
descender do macaco,
tanto ou mais que o homem -
sessenta por sessão, depen-
dendo do barbudo que se seja;
o normal são quatro sessões.
Mas se fores folclórica
precisas de mais, claro...
O que dizia é que custa muito
ser genuína, minha senhora.
E nestas coisas não há
que ser forreta,
porque somos tanto mais genuínas
quanto mais nos parecemos
com o que sonhámos.
Vou virar-te, agora.
Cuidado, por favor...
Subimos agora um pouco...
E pronto.
Estás bem?
Ponha-ma ali e eu baixo-a.
Eu trato disto.
- Obrigada.
Consegues?
Hospital del Mar,
se faz favor.
Podemos passar
pela Praça de Medinacelli?
A tua mãe não ficou
de ir ter ao hospital?
Só quero vê-la de passagem...
Pare, pare aqui.
Aqui brincava eu em miúda.
Sapic?
Sapic!
Vem, anda cá.
Olha o meu menino bonito...
Este cão vai ter
seja com quem for...
A senhora tem cão?
- Não, mas gosto muito deles.
Que idade tem?
- Vinte e seis anos.
E mede quanto?
- Pouco, 1 m e 68.
Anda.
- Vá, vai com o papá.
Adeus, papá...
Não tens dores?
Que bom, parir sem dores...
A que horas entra
para o bloco operatório?
Dentro de hora e meia.
Dá-me quase tempo de ir
tratar do teu pai e voltar.
Não precisas de vir, mamã...
Quero estar aqui, contigo.
Um beijo ao papá.
- Mas este fico eu com ele.
Até já, Manuela.
Espero que o terceiro Esteban
seja o definitivo, para ti.
O terceiro Esteban?
A Lola foi o primeiro,
o teu filho, o segundo.
Sabias que a Lola
foi também pai do meu?
Não foi precisa
muito esperteza...
A Lola não sabe que tivemos
um filho, nunca lhe disse.
E o teu filho, sabia?
- Também não.
Mas não falemos de tristezas,
hoje é um grande dia;
meteram o Videla na cadeia
e o teu filho vai nascer.
Promete-me uma coisa.
Se acontecer alguma coisa...
- Que há-de acontecer?
Promete que não
lhe escondes nada.
Não tenho de prometer nada,
dizes-lhe tu o que quiseres.
Promete.
Se isso te sossega...
Está bem, eu prometo.
Manuela, é tão bom ver-te.
É só pena que seja aqui...
Não podia ser noutro sítio,
não és um ser humano, Lola,
és uma epidemia.
É, sempre fui excessiva...
E estou muito cansada.
Manuela, eu estou a morrer.
Ando a despedir-me de tudo.
Roubei a Agrado para pagar
a viagem à Argentina.
Queria ver uma última vez
a aldeia,
o rio, a nossa rua...
E gosto de poder
despedir-me também de ti.
Só me falta conhecer
o filho da lrmã Rosa.
O meu filho.
Sempre sonhei ter um,
como tu sabes.
Quando fugi de Barcelona
ia grávida de ti.
Portanto, também tu...?
E tiveste-o?
- Um menino lindo.
Quero vê-lo;
trouxeste-o contigo?
Ficou em Madrid,
mas não podes vê-lo.
Nem que seja de longe,
juro-te que ele nem me vê.
É a última coisa que te peço.
- Não podes vê-lo.
Há seis meses
um carro atropelou-o...
E matou-o.
Só vim a Barcelona
para to dizer.
Lamento, lamento tanto...
O menino.
De onde vens a estas horas?
O Sapic ainda não foi à rua?
- Como não estavas...
Mas agora já estou.
Estou a aquecer o biberão.
- Traz-mo, se faz favor?
Vicenta, ocupa-te do senhor,
não o deixes entrar aqui.
Está impossível, meteu-se-lhe
na cabeça que o filho é seu.
Eu sei.
É muito ciumento.
Disse-lhe que o menino é teu,
não ousei contar a verdade.
E não a percebia...
- Quem me dera que fosse.
Quem é essa mulher?
- A Manuela, a nova cozinheira.
Há quatro dias que cá está
e arranjámos-lhe este quarto
para poder ficar com o filho.
Lembras-te de to dizer?
Quantos anos tem?
- Trinta e oito.
E quanto mede?
- 1 m e 70.
Vá, vai agora dar um passeio.
O biberão, minha senhora.
Pronto, pronto,
já vamos comer, pois...
Não digas a ninguém
dos anticorpos.
As freiras sabem?
- Não.
Um mês depois
Olá, Lola.
Pega-lhe.
Que disse o médico?
- Que está muito bem, como vês.
Estás com o papá...
Posso dar-lhe um beijo?
- Claro, mulher.
Meu filho, lamento deixar-te
uma herança tão pesada.
Não digas isso, ele está bem,
não há razão para que
a doença se manifeste.
Este é o nosso Esteban.
Chamaste-o também Esteban?
Obrigada.
Queria ser escritor...
Este era seu o bloco de notas,
nunca o largava.
Olha, isto escreveu
na manhã do dia em que morreu.
Lê.
""Ontem a mamã
mostrou-me uma fotografia
""à qual faltava metade.
""Não lho quis dizer, mas à minha
vida falta também essa parte...
Não pares, continua.
""Esta manhã remexi as gavetas
e encontrei um molho delas
""e a todas faltava a metade.
""O meu Pai, calculo...
""Quero conhecê-lo.
""Tenho de fazer a mamã perceber
que não me importa quem seja,
""nem como seja,
nem como se portou com ela;
""não me pode roubar
esse direito.
Fica com a fotografia.
Obrigada, Manuela.
Olá, Rosa.
Não gosto que toda a gente
beije o menino;
quem era a mulher
que estava contigo no bar?
A mulher era o pai dele.
É o pai dele,
e está muito doente.
Foi aquele monstro
quem matou a minha filha?
Não pense nisso, Rosa.
Há quem pense que os filhos
são coisa de um dia.
Mas é um dia
que não acaba mais...
Por isso é horrível ver o sangue
do meu, derramado pelo chão.
A fonte que corre um minuto
a nós custou-nos anos.
Quando encontrei o meu filho,
ele estava caído no meio da rua.
Molhei as mãos no sangue
e lambi-o com a língua.
Porque era o meu.
Os animais não o lambem?
Eu não tenho asco
ao meu filho.
Tu não sabes o que isso é...
Numa custódia de cristal
e de topázios
poria eu a terra
empapada do seu sangue.
Continua a amassar, faz a tris-
teza passar para as mãos.
Trabalha,
não pares de trabalhar.
Nota-se muito o catarro?
- Não, estás muito bem.
Venha, não pode estar aqui.
Trago um ramo para Agrado
e para Huma Rojo.
Assine-me aqui, sim?
- Ele é mesmo para a Agrado?
É o que vem aí escrito...
Sabe por que me chamam
Agrado?
Por na vida sempre ter querido
tornar a dos outros agradável.
""Queridas Agrado e Huma,
volto a fugir sem dizer adeus.
""E gostando tu tanto
de despedidas, Agrado...
""A vida com os pais da Rosa
tornou-se insuportável;
""a avó tem medo que o menino
a infecte só por arranhá-la.
""Levo o Esteban para onde não
tenha de aturar tal hostilidade.
""Agrado, sabes o quanto
gosto de ti;
""cuida de ti e da Huma.
""Sinto não ficar para a estreia;
""de certeza que será
um êxito, a homenagem a Lorca.
""Depois escrevo, mas para já
é melhor não saberem mais.
""Ah, rasga a carta.
Vossa, Manuela.
Dois anos depois
Volto a Bercelona
ao fim de dois anos,
mas desta vez não venho fugida
mas a um congresso sobre sida
organizado por Can Ruti.
O meu Esteban negativizou
o vírus em tempo recorde,
e querem investigar o porquê.
Estou tão contente...
lncomodo?
Manuela, a minha Manolita!
Ela é minha, também!
Estás tão bonita
e cresceu-te tanto o cabelo...
A ti, também.
- lsto é a peruca da peça.
Espera, o brinco abriu-se...
Eu fecho-to.
Aprende, burra.
Posso ser burra, mas ninguém
te trata como eu.
Que bom, aquilo do teu filho.
O vírus negativizou,
assim de noite para o dia?
Pois, o Esteban demonstra
que o vírus pode desaparecer,
e não sabem como
e por isso vão investigar.
Mas é um milagre.
Eu sabia, o que eu rezei
por aquele menino...
Onde vais ficar em Barcelona?
Porque não vens lá para casa?
Vamos ficar em casa dos avós.
Não calculas a alegria
da mãe da Rosa;
aquela mulher mudou tanto,
tanto...
Terceira, cinco minutos!
- Tenho de ir.
Tens o retrato do Esteban?
- Deu-mo a Lola, antes de morrer.
Só tomei conta dela
até que aparecesses.
Fica com ela.
Obrigada...
E a Nina?
Bom, vou.
A Nina casou-se.
Vive na aldeia dela
e também tem um filho,
gordo e horroroso. Feiíssimo!
Vejo-te daqui a pouco.
""A Bette Davis, Gena Rowlands,
Romy Schneider...
A todas as actrizes
que fizeram de actrizes,
a todas as mulheres que representam,
aos homens que representam
e se converteram em mulheres,
a todas as pessoas que querem ser mães.
A minha Mãe.""
Tradução de Correia Ribeiro
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